Harry achou que havia algo errado com Rob quando, na tarde seguinte a seu regresso a Londres, Rob sugeriu que se encontrassem no bar frenético que ficava numa estação ferroviária. Não que Rob pretendesse viajar: disse que, agora, apenas “apreciava lugares anônimos” ou “não espaços”. Assim que se encontraram, Rob comentou sobre o número de corpos inquietos que passavam depressa em volta deles e disse que os braços e as pernas haviam perdido contato com seus donos e pareciam tocos eletrificados.
Rob tinha bebido, estava suado e tremia em excesso, mesmo tratando-se dele. Parecia ter enfiado a maior parte de suas roupas numa mochila, que não fechava, e Harry entreviu ali dentro um bolo de manuscritos, romances búlgaros, albaneses, tunisianos e livros de poesia. Como o editor exalava um cheiro de sepultura, Harry desceu de seu tamborete, explicando que estava incômodo ali, e insistiu que fossem sentar a uma mesa, assim Rob ficaria mais distante dele.
“Não pareço cem por cento?”, perguntou Rob. De olhos esbugalhados, lançava olhares furtivos em redor, como se estivesse prestes a ser atacado. Harry lembrou como seu pai se mostrava gentil com os paranoicos, falando com eles de maneira tranquila e sem fazer perguntas invasivas, muitas vezes apenas repetindo num sussurro o que eles diziam. Harry conseguiu agir assim, até Rob lhe dizer que tinha a intenção de acompanhá-lo até a casa de Mamoon no campo.
“Você? Por quê?”, perguntou Harry.
“Não acha que seria um bom lugar para eu me desintoxicar? Assim também poderemos conversar sobre o material do livro, enquanto caminhamos pelo bosque. Posso ajudar você a organizar o trabalho.”
“Rob, não estou pronto para isso”, disse Harry. “A única coisa que você precisa saber é que na Índia foi de matar.”
“E nos Estados Unidos?”
“Tive de implorar mil vezes, mas no fim acabei conseguindo uma coisa boa com a Marion. Ela é muito parecida com Liana, em sua confiança e impulsividade. Mamoon deve estar cansado de saber que as pessoas procuram sempre os mesmos tipos. Mas Marion é mais inteligente e mais astuta do que Liana. Ela o conhece melhor. No entanto acontece que ela amou por muitos anos o velho resmungão vidrado em xoxotas, e ainda ama, de forma bastante considerável. Chegou a arranjar outras mulheres para ele.”
“Não existe explicação para o gosto das pessoas. Especialmente tratando-se de gigantes da literatura, Harry, você vai descobrir que as mulheres se atiram na fogueira de cabeça. Nós, os fãs, estamos do lado errado da literatura.”
Harry disse: “Ela lhe deu tudo o que ele queria, além de muita coisa que ele não queria. Foi tanta coisa, que ele teve de fugir para salvar a própria pele, ainda que isso significasse voltar para a gemebunda e beberrona Peggy, que era capaz de engolir tudo, menos o sêmen dele”.
“Não admira que Mamoon se escondesse no barracão para escrever.”
“Ele se arrepende de ter ficado escondido, eu desconfio. Não lhe fazia nenhum bem ficar sem beijos. No entanto me alegra pensar no tormento que o sacana sofreu com as duas. Deve ter sido um alívio quando Liana apareceu, a fuga de Mamoon das agruras do amor. Deve ter imaginado que tudo seria mais fácil.”
“E deu certo para Mamoon? Como é a vida, de fato, lá no campo, com ele? Acho que eu mesmo vou acabar descobrindo logo mais, à noite.” Harry deve ter feito uma cara surpresa. “Mas já estou de malas prontas. E isso é um material apetitoso, Harry. Mal posso esperar para saber mais!”
“Quando for a hora.”
“Que papo é esse?”, disse Rob. “Não vai me deixar sentir o cheiro das meias sujas?”
“Rob, você está parecendo um louco falando. Suas palavras estão emboladas. Você não parece estar na sua melhor forma.”
Ele perguntou: “Você obteve uma confirmação objetiva das violações de Mamoon? Você não pode sair por aí simplesmente plantando fofocas vagabundas num livro meu; os advogados vão fazer picadinho do livro num piscar de olhos”.
“Entendo.”
Rob disse que estava relendo o segundo livro de Mamoon, que melhorava com o tempo. Rob via tudo: como o marxismo e o fundamentalismo exigiam e impunham o silêncio e que, onde existe silêncio, se perpetra o mal. Longe de perder a força, o escritor havia se tornado uma figura ainda mais crucial. Ele e Harry deviam berrar para o mundo que Mamoon ainda existia e que as pessoas deviam ouvir sua voz. Em seguida, Rob passou a dizer que as coisas também não andavam nada boas para ele. “Minha mulher me botou para fora de casa. Tivemos uma discussão que envolveu certa violência — da parte dela. Ela diz que eu sou paranoico e alcoólatra, que tenho distúrbio de personalidade.”
“Quem poderia imaginar uma coisa dessa?”
“Também sou narcisista, ao que parece, como é todo mundo que não pensa nela o tempo todo. Vou começar a fazer um tratamento contra depressão. Se os comprimidos não derem certo, vou pedir que me apliquem choques elétricos no corpo, para eu ganhar na marra uma saúde plena. Você pode segurar na minha mão quando me ligarem na corrente alternada e corrente contínua?”
“Rob, foi você quem sugeriu que as coisas não estavam boas para mim.”
“Desculpe, esqueci. As coisas não estão boas para você. Não podiam estar piores, não senhor.” Inclinou-se para mais perto de Harry: “Tome cuidado com tudo à sua volta, atrás, no lado e na frente”.
Harry riu. “Por quê? Acabei de chegar de Nova York, onde conversei sobre o livro com o editor americano. Estou cheio de ideias. Ele ficou satisfeito.”
Rob inclinou-se para ele. “Apareceu um jovem espertinho, ele acabou de sair da faculdade, menos sonhador e sentimental do que você, mais ligado em negócios. Quando você saiu do país, Liana deu um pulo a Londres para se encontrar com ele em segredo. Contou para ele que você era um sujeito muito difícil, com seu tesão incomum pela verdade, e ela incentivou o espertinho.”
“Ela fez isso comigo?”
“O espertinho garantiu que conseguiria pôr a biografia em circulação em um ano e que aplicaria em Mamoon um polimento embelezador e refrescante — o retrato do último gênio literário do pós-guerra, daí para a frente só haveria blogs, difamadores e amadores. Deu até para ouvir a vagina de Liana batendo palmas de entusiasmo.”
“Você está brincando, Rob. Assinei um contrato.”
“Se Liana der a ordem, você vai ser descartado como um preservativo usado. Eu e Lotte, a minha assistente superfofa, estamos fazendo um esforço sobre-humano para manter você no posto.”
“Como?”
“Estamos usando de ameaças — entre outras coisas. Liana tem de confiar em mim: eu disse que o jovem espertinho não tem sequer a metade do seu cérebro ou da sua capacidade. Parece que você tem feito um bom trabalho. Assim consegui mais um prazo para você. Só que, meu amigo, você precisa pôr o pé no acelerador. Sem a minha proteção, a coisa vai ficar feia. Eu não quero ver você tomando antidepressivos. O que é que há? Está me evitando. Você está desviando os olhos. Você vai para lá esta noite, mas, por favor, não sem mim.”
“Desculpe, Rob, não quero ser indelicado, mas marquei de encontrar Alice.”
Quando Rob respondeu que ele também precisava, Harry se levantou, pagou a conta e começou a se afastar. Rob foi atrás, ainda falando: “Puxa, vamos nos encontrar em breve, com o material do livro na nossa frente. Talvez in loco. Quem sabe lá eu me sinta purificado, no meio das cabras, dos peixes e dos excrementos de vaca?”. E continuou: “E se eu não puder confirmar que o material é quente, restarão para você as cortinas e as oficinas de criação literária, parceiro. Sacou?”.
Harry se afastou de Rob e se escondeu um pouco. Enfim, Alice, que tinha passado dois dias fazendo compras, foi à estação com o carro abarrotado de presentes. Depois do jantar, rumaram de carro até a casa de Mamoon.
“Você está de bom humor”, disse Alice. “Eu ainda não soube detalhes da sua viagem. Conseguiu o que queria?”
“Talvez eu tenha uma história. Deixe-me explicar. Existe uma espécie de centro no livro. Eventos similares àqueles descritos por Marion ocorrem em dois dos últimos romances de Mamoon. Um dos terroristas cheios de culpa gosta das mesmas coisas, de degradar a mulher com outros homens, e tudo isso. Mamoon o define como um ‘depravado imoral’, o que confirma o caso para mim.”
Alice perguntou se aquilo era o suficiente e Harry respondeu que “a fase Marion” tinha sido um período crucial para Mamoon. Depois de contemporizar durante semanas, Mamoon acabou abandonando Marion nos Estados Unidos e voltando para Peggy, para ajudá-la a morrer. Peggy havia implorado a Mamoon; ela não tinha mais ninguém, além de Ruth, que havia cuidado da casa durante anos e era sua única amiga próxima. Todo dia vinha uma enfermeira, e Julia, na época uma menina, nem adolescente ainda, vivia na rua para fazer as compras. Mas era uma vida solitária.
Peggy também havia deixado claro, pressionada por Ruth, que, caso Mamoon não voltasse, ele perderia o direito à propriedade, que estava em nome dela. Os pertences de Mamoon seriam jogados no quintal e a casa passaria para o nome da irmã de Peggy. Mamoon não era dono de nada. Ele jamais precisou se preocupar com um lugar para morar ou com o que comer. Peggy pelo menos era maternal. Dava condições para que ele fosse um artista. O que era o casamento senão sexo mais propriedade? E, no caso, propriedade era o principal.
Portanto, com a corda no pescoço, Mamoon voltou correndo. Era intoxicante; uma chantagem fatal e torturante para ele e uma interrupção da nova vida que ele estava explorando. Tinha prometido a Marion que voltaria. Pensava nela o tempo todo, mas não voltou, nem a chamou para ir morar com ele. Deixou passar um tempinho, só um pouco. E depois mais um tempo…
Os diários de Peggy eram reticentes sobre esse assunto, o que não causa surpresa, mas ela percebeu como Mamoon se mostrava gentil quando pressionado. Ela havia ficado sozinha por tempo demais e agora não suportava mais. No momento em que Mamoon voltou e entrou pela porta, o coração de Peggy deu pulos. Ele tinha voltado para casa, seu príncipe. Ela o elogiou e agradeceu mil vezes. Mamoon pôs a mala no chão. Peggy o tinha no lugar onde o queria.
Enquanto ela descansava e dormia, ele ficava sentado com ela, escrevendo à mesa, no outro lado do quarto — e continuou escrevendo: ficção, diários e anotações sobre sua vida. Harry contou a Alice que tinha descoberto alguns cadernos amarfanhados de Mamoon no meio das coisas de Peggy, no celeiro, e que estava examinando o material. Aquelas notas, na verdade entregues a ele por Julia, proporcionavam uma visão fascinante de seu método, enquanto Mamoon prestava assistência à esposa: a descrição de um corpo encolhendo para dentro da morte, as mãos dela, a boca, como ele a lavava, além dos sofrimentos e das humilhações de Peggy. E também as recordações dele da Índia, suas ideias políticas e filosóficas, personagens, ideias para ensaios etc. Durante algum tempo, para sobreviver, ele virou um zumbi. Tinha deixado de amar Peggy fazia muito, e ela sabia disso.
Mamoon confessou que Peggy, todo o seu ser, fazia mal a ele. A voz dela embrulhava seu estômago; a maneira como o puxava e se agarrava nele lhe dava calafrios. O terror era que ela não morresse. A combinação de ódio e dever o deixava esgotado: ele estava fora de controle, ardorosamente infeliz, semilouco, bebendo, se perguntando por que era tão fiel a ela. Não teria sido melhor ter ficado com Marion e deixado Peggy para lá?
Peggy acabou morrendo. Ele foi para seu quarto, comeu e chorou em sua escrivaninha, também chorou por Marion, de quem também havia se separado — pelo menos em sua mente. Portanto: ele também tinha terminado com ela. Mas o que significava “ter terminado” com tanta gente? Quem, ou o que, havia sobrado?
Com uma honestidade e uma seriedade novas, escreveu sobre o inferno que havia dentro dele. Foi então que se transformou num artista “autêntico”. Não estava mais defendendo um lado de si mesmo, mas dizendo tudo de forma direta. Harry disse que ninguém descreveu a morte tão bem como ele, e ainda como o luto, o isolamento e a privação o deixavam louco.
Harry disse: “Mamoon ficou dezoito meses sem ver ninguém”.
“Não, não…”
“Exceto… exceto aquilo que ele define como ‘sua nova família’. E escreve bastante sobre eles no diário que eu tenho.”
“O quê? A quem você se refere quando fala em família?”
Com Peggy fora de cena, explicou Harry, foi a mulher dali da região, Ruth, quem cuidou dele. Como Mamoon não conseguia dar conta da situação, e como Peggy havia insistido muito, Ruth se mudou para a casa com seus filhos, Julia e Scott, este na época um adolescente. Mamoon conhecia as crianças havia anos, claro. Peggy sempre soubera que Ruth era uma mãe muito cruel. Por isso, quando criança, Julia ficava lá semanas seguidas nas férias, permanecia muito tempo com Peggy, fazia bolos, cuidava dos animais e via aquela casa como se fosse seu lar.
Mas então Mamoon se afeiçoou a eles de um modo mais adulto, mais responsável. Ele nunca quis saber de bebês chorões ou de pirralhinhos manhosos aprendendo a andar pela casa. Mas agora, para sua própria surpresa, descobriu que gostava de ser uma figura paterna. Apreciou exercer a autoridade e ser objeto de confiança. As crianças o ensinaram que o interior de sua própria cabeça não era a única coisa interessante no mundo.
Ele descobriu que podia ser uma boa fonte de divertimento, fazendo piadas com as crianças como seus pais tinham feito com ele. Mas também era cuidadoso; via o que as crianças precisavam à medida que iam crescendo. Comiam juntos e assistiam juntos a programas de esportes e filmes. As crianças estavam acostumadas a ver Mamoon no sofá rabiscando em seus cadernos. Ruth lhe perguntava se queria um pouco de sossego. Mas, não, ele descobriu que gostava dos barulhos e das vozes do cotidiano.
Mamoon chegou a construir uma piscina para eles e os amigos deles, os meninos da região, que vinham dar uns mergulhos. Ele levava Julia de carro para a escola. Era uma menina reclamona, emburrada, nervosa, mas talvez Mamoon tivesse pena dela ou até gostasse dela. Falava com ela enquanto pensava — sua costumeira livre associação, em que entravam política, sua infância, leitura e escrita —, e ela escutava. Ele escrevia um conto e lia para ela. Julia e Scott lutavam boxe no jardim. Scott montava bicicletas e brincava com motores. Quando se metia em alguma grande encrenca com garotos da região, Mamoon ia até lá e punha a garotada para correr. Ruth beijava seus pés.
Era Julia que Mamoon adorava cada vez mais. Assustado com a ignorância da menina que crescia no campo, pagou para que ela tivesse aulas de piano e estudasse dança e artes. Começou a lhe ensinar grego e — isto é muito louco — fez Julia ler Homero e a Bíblia. Comprava discos de música clássica e sentava com ela enquanto ouvia Mahler, e ficava satisfeito quando ela chorava, pois aquilo demonstrava “sensibilidade”. Jurou que ia mandar Julia para a faculdade, porém isso não aconteceu. “Acho que foi porque, naquela altura, ele já estava com Liana”, disse Harry. “Mas desconfio que ele nunca parou de dar dinheiro a ela.”
“E por que faria isso?”, perguntou Alice de repente. “Ah, não, ele não ia para a cama com a Ruth, ia?”
“Pode ter feito isso, sim. Ainda não sei. Embora ela não estivesse tão acabada quanto hoje, já andava bebendo e tinha seus acessos violentos de desespero.”
Ruth não era de todo horrível nem semirretardada, na época. Era tremendamente entusiasmada. Queria tudo, é claro: amor, a casa, um futuro… Achava que poderia ter isso, se servisse Mamoon. Então cometeu um erro: não foi totalmente egoísta. Talvez tenha compreendido o que ele precisava de verdade. Talvez gostasse mesmo dele. Harry disse que achava que era isso. Talvez fosse assim ainda hoje.
“O que aconteceu?”, perguntou Alice.
Ruth disse a Mamoon que já era hora de parar. Não estava entrando nenhum dinheiro. Ele precisava se reorganizar e tocar sua carreira. “Minha mãe”, disse Harry, “se entregou a seus demônios. Eles a devoraram.” Mas Mamoon resistiu: ergueu-se, raspou sua barba comprida. Ruth aparou seu cabelo e o beijou. Em vez de continuar deixando as roupas prontas para Mamoon vestir todos os dias, Ruth fez a mala dele e o despachou para Londres, a fim de conversar com seu agente e seu editor. Enquanto isso, ele mandava dinheiro à família, deixando todos ficarem na casa enquanto ele estava fora. Eles adoraram ficar lá: o espaço, o silêncio, o isolamento, e Julia começou a ir todos os dias àquela linda biblioteca, e ali folheava livros de arte.
Os cadernos terminavam nesse ponto.
Harry contou a Alice que, por intermédio dos amigos de Mamoon, ele havia descoberto que Mamoon, seguindo a orientação de Ruth, foi para Londres, onde deparou com as pessoas falando sobre a nova Grã-Bretanha construída pela imigração e com uma geração mais jovem que andava escrevendo sobre multiculturalismo, etnicidade e identidade. Mamoon jamais havia refletido sobre sua identidade. Sempre tinha sido quem era. Esse o seu problema, como se pode compreender. Em Londres, não conseguia encontrar ninguém novo com quem pudesse fazer amizade, e seus amigos o entediavam. Tentou sair com mulheres, mas o encantamento era irregular; ele estava velho demais, didático demais, carente demais, tinha perdido o traquejo.
Como não podia voltar para casa derrotado, insistiu. Viajou pela Europa — Praga, Viena, Madri, Budapeste, Liubliana, Trieste —, escrevia em quartos de hotel, ficava sentado sozinho em cafeterias, com um jornal e um caderno, tão isolado quanto em sua época de estudante na Grã-Bretanha. Pegou um trem para Roma.
Um dia, afinal, encontrou uma mulher e a trouxe de volta — Liana. A atração de um pelo outro foi instantânea, magnética. A excitação foi intensa.
Então, imagine, prosseguiu Harry. Liana assumindo o comando da Casa da Esperança, admirada com tudo aquilo com que havia se casado, gritando, dando um realce na casa toda, jogando coisas fora, pondo cortinas novas, até que tudo ficasse transformado. Uma mulher nova, um mundo novo. Uma reinauguração. Ruth, Julia e Scott viraram “serviçais” ou “equipe de trabalho” outra vez. Mamoon já tinha escrito, dando orientações para que voltassem à casa deles. Mamoon não era mais o pai substituto. Simplesmente abandonou a família; tudo estava diferente. Mamoon não era muito bom para explicar as coisas.
Scott ficou arrasado, mas o que podia dizer? Ainda ia lá cuidar do jardim e fazer serviços eventuais. Chicoteou suas próprias pernas até ficarem cobertas de sangue. Perseguiu e espancou com um porrete o pai de uma família de imigrantes da Somália. Mamoon continuou a se encontrar com Scott e a conversar com ele; mostrou-se interessado e firme, lhe deu conselhos, orientação, mas nenhum dinheiro.
Liana, ainda hoje, não tinha quase nenhuma ideia do drama familiar ocorrido antes de sua chegada. Mamoon sabia que ela iria ficar com muito ciúme. Nunca permitiria que a família trabalhasse na casa. “Mulher nenhuma permitiria, para ser franco”, disse Harry.
“Mas, Harry, o que você está fazendo é obrigar Liana a encarar tudo isso — você está jogando isso na cara de Liana.”
Harry respondeu: “Alice, eu lhe garanto, esse livro vai apresentar a Liana coisas de que ela não tem a menor ideia”.
“Mas Liana é feliz. Por que perturbá-la? É perigoso demais, Harry. Eu o avisei desde o início.”
Harry lhe contou que houve um período de paz, pelo menos por algum tempo, em que Mamoon, de volta para casa em companhia da nova esposa, viveu alegre e otimista. Escreveu bem e sentiu alegria de viver.
“Só por um tempo?”
“Agora ele está alegre ou está impaciente outra vez?”
“Como é que eu vou saber? Ah, meu Deus”, prosseguiu Alice. “Esse livro vai fazê-los ter pesadelos. Mamoon vai culpar Liana. E ele pode ser duro, até maldoso. Não podemos esquecer tudo isso e apenas sermos amigos deles?”
“Não estou sendo pago para ser amigo de ninguém.”
“Mas agora eles são meus amigos. Não fizeram outra coisa senão me tratar com afeição e bondade.”
“Alice, estou avisando a você: mantenha distância.”
“O que o tornou tão brutal, Harry? Não vou ficar aqui muito tempo, mas graças a Deus eu trouxe a eles algumas coisas adoráveis.”
Alice tinha corrido por Londres, descobrindo toalhas de mesa, copos, talheres, vodca de qualidade, brincos, bolos de avelãs e uma imagem impressa de um porco, que trouxe para Liana. O carro entrou pela alameda do jardim, Alice e Harry arrastaram a bagagem para dentro da casa e ela fez uma farra com os cachorros. Por fim, ela e Liana sentaram-se para fofocar, enquanto examinavam os presentes.
Mamoon não apareceu. Pela janela, Harry viu o velho assistindo ao noticiário. Afinal, era apenas um homem, e não meramente uma narrativa. Mamoon limitou-se a cumprimentar com um movimento de cabeça, quando Harry apareceu na porta.
“Tudo bem, senhor?”, perguntou Harry, entrando a passos largos com uma garrafa na mão.
“Basta um sorriso radiante de Alice e minha vodca predileta para me alegrar, como você sabe muito bem.”
“Permita que eu lhe agradeça por sua ajuda cordial com a Marion, senhor.”
“Sim, meu ânimo caiu profundamente assim que vi que você parecia muito alegre. Ela está bem?”
“Excelente, mas frágil.”
“Ah. Antes, ela era cheia de vida.”
“Mamoon, ela me contou tudo.”
“Tudo, é? E isso levou muito tempo?”
“Ficou me devendo umas cartas e me contou como amava e admirava o senhor, como homem e como escritor. Disse que era generoso com seu tempo e sua afeição. O momento mais amargo da vida dela foi quando o senhor voltou para cá.”
“Sinto um porém vindo em minha direção entre os dentes de um cão raivoso.”
“Ela disse que a vida do senhor mudou quando esteve com ela. O senhor refundou sua sexualidade e a desenvolveu. Mamoon, ela descreveu eventos que envolviam outros homens, além de amigas dela.”
Mamoon riu: “Casanova dizia que Dante tinha esquecido de incluir o tédio em sua descrição do inferno. Como você deve ter ouvido falar durante suas pesquisas, eu sofro de tédio como se fosse uma doença, e isso pode tornar uma pessoa sádica. De fato, lembro que Marion tentou alguns truques desenxabidos, a fim de manter-me interessado. Não a acuso de nada. Diga o que quiser sobre mim, Sherlock, mas vou questioná-lo com severidade, se vier a condenar Marion por tais disparates”.
“Enquanto o senhor estava escrevendo, ela fazia um diário. Está preparando um livro sobre suas aventuras com o senhor.”
“Está mesmo?”
“O senhor não fazia nenhuma ideia disso?”
“Se qualquer fabulador semialfabetizado pode rabiscar linhas sem parar, por que eu ou você deveríamos nos preocupar com isso?”
Harry disse: “Ela diz que há um editor disposto a publicar o livro, se ela contar tudo. Eu acho”, prosseguiu, “que a única maneira de impedi-la seria o senhor mesmo falar com ela. Para convencê-la. Tenho certeza de que ela adoraria ouvir sua voz”.
Mamoon demorava muito tempo para se inflamar, mas aquela informação fez seus olhos dispararem para todos os lados. Ele se recompôs antes de falar, com sua voz lenta e sonora: “Como o gênio Nietzsche nos disse: ‘A eterna ampulheta da existência será virada muitas e muitas vezes, e você junto com ela, você, o pó do pó’”. Olhou para Harry. “E você é o pó do pó.”
Levantou-se com um movimento brusco e saiu da sala.
Harry foi ao encontro de Alice no primeiro andar e fechou a porta.