Naquela noite, enquanto trocava de roupa em seu quarto, Harry ouviu os dois berrando, suas vozes se sobrepondo enquanto questionavam um ao outro. Ele havia provocado algum efeito no casamento dos dois, supôs Harry. Que pena; tinha um livro para escrever. Escrever era o demônio. Ele havia sido contratado para escrever.
Ouviu música com os fones de ouvido e esperou até ficar quase escuro lá fora, embora a luz da cozinha estivesse acesa quando saiu sorrateiramente pela porta dos fundos. Estava fumando no jardim e prestes a entrar no carro quando ouviu um grito ou talvez um guincho. Mamoon vinha saindo da cozinha e andando na direção do homem escolhido para retratá-lo.
Mamoon não estava apoiado em sua bengala, como sempre fazia ultimamente, a bengala que o próprio Harry tinha cortado para ele, esculpindo no castão o formato tosco de um coelho. Mamoon trazia a bengala erguida acima da cabeça com a verdadeira intenção, Harry supôs, de produzir um contato entre ela e o aparato cognitivo do jovem escritor.
Harry se virou e correu para o outro lado do jardim, rumo à trilha. Para surpresa de Harry, Mamoon foi atrás dele, correndo ligeiro, como se tentasse desprender-se das pernas.
“Mamoon, por favor, senhor…”, arriscou Harry.
Harry correu mais um pouco e Mamoon também. Ele ouvia Mamoon ofegando fortemente e deduziu que já devia estar ficando cansado. Harry também estava ansioso para usar a razão e discutir questões literárias. Havia tido uma educação dispendiosa e, mesmo agora, não queria desperdiçá-la.
“Escute”, começou Harry, e parou. O escritor já estava em cima dele. Harry esquivou-se da bengalada, se encolhendo e dando as costas. “Senhor, puxa, eu…”
Mamoon golpeou-o nas costas com a bengala, com toda a força que tinha. Harry caiu e Mamoon prosseguiu com mais duas bengaladas. “Olhe aqui, seu Judas. Eu ainda tenho braço para uma boa direita!”
“Meu Deus, pare com isso! Está machucando! O que o senhor está fazendo?”
“Você quer levar um smash cruzado com topspin?”, disse Mamoon, erguendo a bengala mais uma vez. Estava pronto para golpear Harry em cheio na cara. “O chicote do cavalo vai estalar… ah!”
“Não, não vai!”
Harry se afastou rastejando o mais rápido que pôde, ergueu-se, agarrou a bengala, arrancou-a da mão de Mamoon e levou-a para o outro lado do jardim, colocando-a em cima de seu carro. O velho tolo, cheio de adrenalina, avançou aos tropeções na direção dele e, depois de tentar dar um pulo, percebeu que seus dias de atleta tinham acabado. Desequilibrou-se e desabou de cara no chão, se arrastando no cascalho.
“Não toque em mim. Você fez fofoca com as invencionices da Marion”, bufou Mamoon, quando Harry o suspendeu, o pôs de pé e sacudiu a poeira que o cobria.
“O senhor precisa admitir que nos dias de hoje nenhum momento da existência fica sem registro.”
“Você ia gostar se todo mundo com que você já fodeu ficasse pegando no seu pé pelo resto da sua vida? Talvez ainda façam isso, uma sinistra multidão de almas penadas uivando imprecações hostis. Aí, eu é que vou rir.”
“O senhor sempre foi um dissidente, um inconformista, um anárquico. A maioria dos bons livros não é, afinal, sobre as nossas fraquezas sexuais?” Vislumbrando uma brecha para o debate intertextual pelo qual estava esperando havia muito tempo, Harry disse: “O senhor adora Strindberg, adaptou a obra dele para o palco, escreveu um ensaio sobre ele. As cartas histéricas e sofridas de Kafka para Felice fascinaram o senhor desde jovem. Vamos refletir sobre como os escritores homens caracterizaram a força da sexualidade feminina…”.
“Cale a boca, seu sacana! Liana está me matando, só berra sem falar coisa com coisa. Ela não consegue acreditar que eu possa ter passado bons momentos com outra pessoa que não ela. Liana me expulsou do nosso quarto para o quarto ao lado do seu. Agora ela fica insistindo para que eu lhe conte todos os detalhes da minha vida com Marion. Como posso fazer isso? Como vou conseguir Liana de volta?”
“O senhor quer Liana de volta?”
“Se eu ficar gravemente doente no meio da noite ou tiver um pesadelo, por acaso você é que vai me dar o beijo vital?”
“Meus beijos são suaves e profundos, senhor. Mas, para ser franco, essas informações iam acabar vazando de um jeito ou de outro, pelas mãos de Marion ou pelas minhas. O que mais estou fazendo senão trazer a verdade à tona ponto por ponto, como o inspetor Goole na peça Um inspetor está lá fora, de Priestley?”
“Você é um demônio tentando se passar por Deus para mim. Era um assunto extremamente particular.”
“O senhor abriu mão desse direito quando me chamou para vir para cá a fim de contar a história de sua vida. Por que se preocupar, quando sabe que a sexualidade faz todo mundo parecer tolo mesmo?”
Mamoon disse a Harry que ele não tinha como confirmar aquelas informações, mas Harry explicou que Marion havia lhe mostrado as cartas. Quando Mamoon perguntou por que Marion faria uma coisa dessas, Harry retrucou: “A vida e a escrita formam um livro contínuo. É assim com todos os escritores”.
“Marion… quer dizer, Liana disse que você é do tipo que quer aparecer na televisão! Está tentando fazer uma carreira à minha custa, meu jovem!”
“Estamos amarrados um ao outro, senhor. Ou nadamos ou afundamos, como uma só criatura.”
“Sua obra é feita de inveja e você não passa de um semifracasso de terceira categoria, um parasita que consegue sobreviver graças a um encanto de meretriz e a uma boa aparência que já está definhando. Por acaso você já viu um biógrafo capaz de escrever tão bem quanto seu biografado?”
Como se não fosse o bastante, Mamoon agarrou Harry pelas lapelas e tentou jogá-lo de encontro ao carro.
“Você está despedido, Harry. Você nunca irá terminar esse trabalho feito de papo furado, e amanhã, quando eu voltar do trabalho para almoçar, quero receber a notícia de que essa aventura desastrada e ridícula chegou ao fim! Já temos outro escritor a postos para assumir o cargo. E ele usa gravata!” Chegou seu rosto bem perto do de Harry. “Lembre-se bem disso, menino. Você não sabe nada. Você não é nada. E sempre será nada.”
Mamoon parecia esgotado e começou a tossir. Harry levou-o de volta para a cozinha, sentou-o e lhe deu um copo de uísque.
“Quer que eu chame Liana?” Harry imaginou que ela estaria em algum canto do primeiro andar, dilacerando alguma coisa ou ouvindo Leonard Cohen.
Mamoon balançou a cabeça e disse, quando Harry foi para a porta: “Por acaso pareço um ancião debilitado para você? Será que envelheci de repente? Não me deixe, não creio que eu tenha muito tempo pela frente”.
Mas Harry correu para fora e ficou sentado dentro do carro por algum tempo, se recuperando. Depois foi de carro até a casa de Julia e, lá, pegou a chave que ela havia deixado escondida para ele.
Esgueirando-se pelo corredor, ele viu Ruth na sala com a blusa cintilante que Liana usara no jantar de aniversário de Mamoon. Estava sentada diante da mesa com dois de seus amantes, no meio de uma nuvem narcótica de fumaça, bebendo o champanhe de Mamoon em copos de cerveja e, Harry logo se deu conta, discutindo um plano para ganhar dinheiro com assinaturas falsificadas, as quais já vinham treinando. Harry os cumprimentou em voz baixa. Infelizmente, eles se mostraram interessados por Harry; um dos homens se levantou e gritou para ele sentar e tomar uma cerveja, e Ruth chamou: “Harry, Harry, Harry, não vai nos honrar com um copo?”.
Harry teve sensatez suficiente para continuar em seu caminho rumo à mulher que ele tinha ido visitar.
No sótão, Julia estava na cama, à espera dele.
Harry despiu a camisa com um movimento brusco: “Veja!”.
“Fantástico. Obrigada, eu estava esperando por isso.”
Harry virou-se. “Veja as manchas roxas!”
“Ah, meu Deus, quem fez isso com você? O meu irmão? Ele voltou?”
“Por sorte, não. Foi Mamoon.”
Ela riu. “Chega disso.”
Ele pegou a mão de Julia e colocou-a em seu próprio rosto. “Ele é perigoso, para um velho, Julia, tem pulsos fortes.”
“Minha nossa, vai ficar uma cor engraçada. Você está parecendo uma berinjela.”
“Esse é um legume de que eu não gosto. Aqui está o meu celular. Fotografe os ferimentos. Deu tudo errado. Fui posto no olho da rua.”
Julia o fotografou, depois tirou o resto da roupa de Harry e sentou em cima dele. Os beijos de Julia eram tranquilizantes.
“Preciso do seu amor, Julia.”
“Eu sei. Parabéns, meu namorado.”
“Por que está dizendo isso?”
“Você foi espancado, além de demitido. Devia estar fazendo um bom trabalho.”
“Sim, bem, o velho pretende ficar acima de todas as bobagens cotidianas, contemplando o imensurável horizonte com aquele olhar superior de tartaruga dele, supostamente lamentando todas as oportunidades sexuais que evitou. Depois tem um surto com a bengala que eu mesmo esculpi para ele.”
Julia começou a transar com ele, sabendo que com isso Harry iria relaxar. “Posso te pedir uma coisa? Andei pensando nisso o tempo todo. Quantas vezes você comeu a Alice enquanto ela esteve aqui?”
“Só uma vez. A gente ia transar de novo na hora em que você nos interrompeu, obrigado. Sei que você estava de ouvidos atentos, fingindo que trabalhava do lado de fora do quarto. Acrescentei alguns grunhidos sôfregos de propósito para fazer você gargalhar e cair fora.”
“Eu não estava escutando!”
“Com Alice, é sempre e apenas nos termos dela, é como ser admitido numa audiência com a rainha da Inglaterra. A última dela agora é dizer que é alérgica a sêmen. Ela tem a rigidez de uma criança ferida.”
“Eu diria violentada. Você vai receber dela cada vez menos, menino bonito.”
“Quanto tempo essas coisas demoram para passar? Estou quase pronto para uma mudança.”
“O problema é que você não gosta de ver as pessoas irem embora.”
“Diga-me o que você pensa de verdade.”
Ela enfiou um baseado na boca de Harry e acendeu para ele. “Vocês dois talvez tenham uma chance se ela passar a admirar você. Ela não percebeu como você é engraçado e meigo. Você diz coisas fascinantes e é uma boa companhia. Ao contrário do velho, você se interessa pelas outras pessoas. E mais: tem um talento para a cunilíngua que faz de você parte do um por cento dos homens que chupam bem.”
“É preciso prática para ser um glutão como eu.”
“Sempre ponho perfume de almíscar lá para você, mas não vou pedir que faça isso comigo agora, Harry.” Ela apagou as luzes, acendeu as velas e soprou as pálpebras de Harry. “Você está parecendo meio doido; está com jeito de quem daqui a pouco vai começar a chorar.”
“Eu estou pra baixo. É a nossa última noite juntos. Se eu for demitido de verdade, nem vou ficar tão chateado assim, para ser franco. Já estou de saco cheio daqueles dois.”
“Vou pôr o relógio para despertar. Tenho um palpite de que posso ajudar você. Sou a sua garota, lembra?”
“Se você me salvar desta vez”, disse ele, “você é um gênio. Levo você para comer num restaurante indiano.”
“Você vai fazer uma coisa por mim, Harry. E você sabe o que é. Já pedi antes. Leve-me com você, Tesudo.”
“Para onde?”
“Para Londres.”
Ele riu. “Bem que eu gostaria. Do jeito que as coisas estão, sou uma carta fora do baralho.”