Vinte e dois

 

 

 

 

 

 

 

 

De manhã, ele gritou: “Por que puseram refletores lá fora, virados para a janela?”.

“Hmm… cale a boca. Isso é o que chamam de sol”, disse ela. “Você está doente?”

“Julia, vou desistir dessa história toda e voltar para Londres.”

“Agora você vai falar com Liana.”

“Não consigo encarar nenhum dos dois. Não consigo encarar mais nada.”

Ela puxou Harry para fora da cama, encheu-o de comida e enfiou-o no carro, dando-lhe instruções o tempo todo; ele assentia com a cabeça em silêncio. Julia tomou todas as providências para que Harry voltasse à casa deles e estivesse na cozinha à procura de um hadoque e preparando um bloody mary para acompanhar o Arnold Bennett antes que Liana por fim entrasse em cena vestida com um robe de cetim.

Enquanto ela ficou parada, de pé, avaliando mais aquele dia, apalpando a cabeça com os dedos e decidindo se ia ou não se mostrar airosa, Harry corria de lá para cá na cozinha, a fim de preparar o café da manhã predileto de Liana e pô-lo na frente dela.

“Pronto, Liana querida.”

Ciao bello, minha doçura, isso é muito amável, obrigada. Como você soube onde encontrar esse peixe? Que banquete.”

“E mais isto aqui… para você.”

“O que é?”

“Uma das coisas que você pediu.”

Entregou-lhe um pires com pílulas. Havia um vidro cheio de estimulantes no quarto de Julia, bem como um punhado de maconha e um saco de cogumelos. Julia tinha dito para ele levar um pouco para Liana. Ele foi generoso; levou um monte.

Durante a noite toda, Harry foi perseguido pelo fantasma das palavras de Mamoon, que chegavam a ele em sussurros sinistros: extremamente educado, mas medíocre, sem valor, parasita…

“Você pode ser um bom menino”, disse Liana, enfiando aquilo no bolso de seu robe.

“Uma carícia do nirvana”, disse Harry. “Mas como Mamoon pode resistir a você com esse robe de seda creme, pijama e sapato de salto alto? Até eu…”

“Feche a boca, é cedo, e aqui dentro é melhor você tirar esses óculos escuros da cara! Você é sincero comigo ou costuma ser com qualquer mulher? Você aceita de verdade algumas delas? Não acho que você seja um idiota, é apenas evasivo, difícil e, provavelmente, uma fraude. Querido, me dê um beijinho de bom-dia nos lábios.”

“Por favor, Liana, você está cheirando a peixe e eu estou com um problema que só uma diplomata do seu quilate tem condições de me ajudar a resolver. O dia chegou: fui demitido.”

“Por quem?”

“Pelo seu marido. Ontem à noite ele me perseguiu com sua bengala. Estava um pouco, digamos assim, agitado por causa das informações fornecidas pela Marion.”

“Eu também fiquei.”

“Então vou embora mesmo?”

“Por que não?”

“Tudo bem. Vou pegar minhas coisas.”

Ela disse: “Não que eu tenha acreditado em qualquer palavra daquela baixaria. Você acreditou? A puttana inventou tudo aquilo por vingança e publicidade. Por um momento que seja, você é capaz de imaginar o Mamoon se comportando daquele jeito? Os britânicos são decentes e vão entender. Era evidente que ele ia brigar com você”.

“Afinal, ele não acaba sempre travando um combate fatal com todo mundo? Especialmente com as mulheres?”

“Não comigo”, disse ela. “Aqui quem manda sou eu, tesoro, não se preocupe.”

“Vou telefonar para Alice e lhe dar a notícia de que você vai me ajudar”, disse Harry. “Ela está em casa morrendo de preocupação comigo.”

“Ela é um doce, temos de cuidar bem dela. Mas você não se preocupa”, perguntou Liana, “e por favor não me interprete mal, que ela não acha você nem um pouco divertido?”

“Obrigado por dizer isso, Liana.”

“Mas você é muito engraçado, sabe?” Liana olhou bem para Harry e disse: “E quanto a Mamoon, nunca o ignore e nunca dê ouvidos a ele. Vá trabalhar que eu vou falar com ele na hora certa”. Liana piscou um olho. “Observe com que maestria vou disparar no ponto G de Mamoon. É como dar comida a um leão sem perder os dedos.”

Mamoon entrou com um curativo na testa. Se Harry tinha ruminado se Mamoon ainda iria se lembrar ou não das ameaças da noite anterior, não precisava se preocupar mais.

Mamoon franziu a testa e disse, com uma fúria a que Harry ainda teria de se habituar: “Minhas costas estão doendo o tempo todo, não consigo olhar um metro à frente sem ficar tonto. Meu joelho parece um envelope cheio de vidro quebrado e meu pênis parece uma lesma cloroformizada…”.

“Está constipado? Teve aquele sonho outra vez?”, perguntou Liana.

“Estou vendo esse moleque na minha cozinha.” Deu um safanão em Harry e disse: “Liguei para o Rob e exigi que você seja retirado do meu horizonte”.

“Não, Mamoon.” Liana apontou a escova de lavar louça para ele e depois bateu com ela na pia, como fazia com os gatos, quando eles pulavam em cima da mesa. “Idiota ou não, demos a ele esse maldito trabalho e ele precisa terminar a pesquisa. Seus ataques de nervos são ridículos e prejudiciais.”

“Essa serpente venenosa, esse caruncho me insultou.”

“Como?”

“Levantou acusações contra a minha honra.”

“Você está querendo dizer, finalmente, que elas são absoluta e completamente falsas?”

“Liana, eu já lhe disse, ele é pior do que a peste.”

“É mesmo. Até Alice confirmou que o caruncho é um chato de galocha. Mas ele vai ficar.”

“Por que defender um impostor que, na verdade, não escreveu uma só palavra? Acho que você gosta dele um pouco demais.”

“Demais para o quê?”

“É repugnante para uma mulher da sua idade. Você parece uma posta de carne de carneiro.”

Liana começou a rir. “Então me coma!”

“Cale a boca.”

“Cuidado.” Ela apontou de novo a escova na direção dele.

Harry não gostaria de ver aquela escova apontada na sua direção e percebeu que um Mamoon mais jovem, àquela altura, poderia ter ficado tremendamente nervoso e perturbado. Ele parecia à procura de alguma coisa à mão para atirar nela. Então a respiração de Mamoon desacelerou, ele fechou os olhos e acariciou a testa alquebrada.

“Retire-o para sempre da frente dos meus olhos.”

Liana disse: “Tomamos uma decisão, você e eu juntos, e devemos levá-la até o fim, sem essa louca fatwa contra ele. Do contrário, não vou alimentar você”. Liana pegou a panela do fogão Aga e caminhou até a lata de lixo. “Dal makhani, seu prato predileto. E seu queijo paneer… Diga adeus para ele, paneer.”

“Liana…”

“E você também adora a minha raita picante. Depois dela, viria a maçã picadinha e o requeijão. Agora escolha: comer ou se enfurecer.”

“Comer ou me enfurecer? Não jogue nada disso fora! Escolho comer.” Tratou de enfiar depressa a ponta do guardanapo por dentro do colarinho da camisa. “Vai ter tomate também? Adorei o jeito como você fez os tomates da última vez.”

“Adorou, é?”, disse Liana, piscando o olho para Harry. Ela avançou e deu um beijo em Mamoon, enquanto deslizava a mão para baixo, no peito da camisa dele. “Gostou disso, habibi, meu amor?”

“Podia ser mais gostoso, se você cozinhasse tudo desse jeito.”

“Vai ser assim… se você fizer a minha vontade.”

“Mais uma coisa.” Ele apontou o dedo para Harry. “Onde está Alice?”

“Por quê?”, perguntou Liana.

“Ela tem mãos que acalmam”, respondeu Mamoon.

Liana passou as mãos pela barriga de Mamoon. “E eu não tenho?”

“Ela é uma profissional.”

“Vou fazer o possível”, disse Harry.

“Parece que você obteve uma última chance”, disse Liana. “É melhor tratar de fazer logo esse livro. Em breve vamos ler um pouco dele. E é melhor a gente gostar…”