Alice e Liana estavam sentadas no calor do gramado, passando de uma para a outra um copinho com sorvete de baunilha e conspirando para trazer jovens para a Casa da Esperança. Com o rosto escondido sob um guarda-chuva, a fim de protegê-lo do sol, Alice tinha os pés sobre um banco; quando não estava escavando com a colher o copinho de sorvete Ben and Jerry, Alice punha as costas da mão na testa superaquecida e preocupada, e suspirava fundo. Então percebeu Harry e deu início aos complicados movimentos de se pôr de pé.
Liana estava fazendo listas e pensando em voz alta; usava bastante as palavras “jovem” e “artista”, bem como “centro de ioga” e “refúgio do escritor”. Em compensação, Mamoon não parecia um homem cuja casa, em breve, seria aberta ao público. Sentado à sombra e a uma distância respeitável, trabalhando nas provas de sua coletânea de ensaios Meios e fins, ele não ouvia a esposa. De vez em quando, Mamoon interrompia seu cantarolar de boca fechada, de uma melodia do grupo Everything But the Girl, para grunhir e reclamar de sua própria irrelevância, mas ninguém ouvia. Seguindo instruções de Liana, Julia não se cansava de levar chá a Mamoon, até que ele a acusou de querer envenená-lo com o chá Lampsang Souchong. Apesar da visão de Harry andando de lá para cá lá fora, nos fundos da casa, Mamoon estava alegre. Andava ativo: recentemente, com poucas objeções, tinha feito muita coisa acontecer.
Alice estava ali fazia dois dias, nadando no rio e repousando, enquanto Mamoon voltara a trabalhar. Harry, depois de suas conversas com Marion, tinha reiniciado seu trabalho. A luta para encontrar clareza no caos de suas pesquisas era frustrante e difícil. Durante dias, tinha lido cartas e escrito a amigos, colegas e possíveis amantes de Mamoon, ao mesmo tempo que tentava focalizar a obra em relação com a vida, estabelecendo associações através de décadas.
Mas Rob vinha tentando perturbar Harry, como Mamoon pedira com insistência que fizesse. Harry seria restituído à condição de biógrafo oficial apenas com uma condição, concluiu Mamoon: que Liana começasse a ser rigorosa com Rob. Já estava na hora, disse Mamoon, de o editor verificar a fundo o trabalho de Harry, antes que ele se tornasse perigoso ou ameaçador para a literatura, talvez indo longe demais numa “direção estranha” ou deixando o livro se tornar “apelativo”. Mamoon queria ser mostrado tal como era.
Mamoon podia estar aborrecido, mas também Rob não se sentia lá muito tranquilo com o biógrafo. Durante certo tempo, Harry tinha ignorado as comunicações de Rob, alegando estar “fora do raio de alcance”. Todavia, naquela manhã, ao acordar mais tarde com Alice, Harry abriu as cortinas e ficou paralisado. Rob vinha tropeçando pela trilha, com uma mala grande e uma mochila. Não demorou muito para entrar na casa, pedir o café da manhã a Julia e, quando Harry foi cumprimentá-lo, insistir em ver o laptop dele.
Quando começou a ler o que Harry havia escrito, em voz alta e consigo mesmo, Harry disse: “Não estou pronto para isso, Rob. São só anotações. Por que está fazendo isso?”.
“Liana tem razão. Eu preciso saber.”
“Saber o quê?”
“Aquele homem lá fora é um artista.” Rob apontou para fora da janela, onde Alice e Ruth podavam uma árvore segundo as instruções de Mamoon. “Ele encontrou Borges em Paris em meados da década de 1970. Os dois jantaram juntos duas ou três vezes. Sobre o que conversaram? Kafka? Adjetivos? Seus agentes? Por que você não nos conta isso?” Ele bateu com os nós dos dedos perigosamente na tela do computador de Harry. “Talento é ouro em pó. A gente pode peneirar um milhão de pessoas e, no final, conseguir juntar no máximo um punhadinho de nada. O Compromisso com a Palavra está em choque com a nossa crença fundamentalista e contemporânea no mercado. Esqueceu isso?”
“Rob, estou lhe dizendo, ele é torpe com as pessoas comuns e charmoso com monstros fascistas.”
“Acrescente isso também.”
“Ele é doido. Me agrediu com uma bengala.” Harry levantou a camisa e mostrou a Rob as marcas ainda visíveis. “Joyce não fez isso com Ellmann!”
“Meu Deus, isso é ruim. No entanto”, fungou Rob, “qualquer simplório pode ser bom. Mamoon tem colhão para ser um pecador. Liana não para de me telefonar. Entre outras coisas, diz que você andou querendo parecer mais do que é.”
“Ela disse isso?”
“Ruth contou: Alice e você — o garoto louro, alto, com sua namorada incrivelmente alta e magra, estilista platinada, andando impávidos com os cães pela cidade, com roupas maltrapilhas no rigor da moda, botas surradas, frustrados por não conseguirem encontrar um restaurante onde servissem ninho de fettucine, olhando espantados para os pirados com tatuagens como se tivessem acabado de descobrir uma tribo africana. Ouvi dizer que você até fotografou o cachorro de um deles. Liana precisou pedir desculpas pessoalmente.”
“Ao cachorro?”
Rob tirou do dedo seu anel em formato de crânio e deu um tapa na cara de Harry. Olhou-o fixamente, desafiando-o a reagir.
“Diga-me, como você consegue não levar tapas o tempo todo?”
“Eu deveria levar?”
“Fim da encenação. Chegou a hora da verdade.” Rob desceu os olhos para os esforços de Harry na tela. “Você está sentado perto o suficiente para inalar qualquer emanação que saia de mim, e vamos examinar bem o que você anda fazendo. Está sofrendo um colapso nervoso? Você parece enlouquecido, parece triste, com cara de louco.”
Era verdade: desde que Alice havia descoberto estar grávida de gêmeos, a preocupação dela passou para a zona vermelha, assim como a de Harry. O pai de Harry chegou a convocar seu filho caçula para Londres, a fim de lhe dar um puxão de orelha. Foi o mesmo que visitar um cardeal cruel, e o pai sentiu-se feliz de repetir seu sermão de que um bebê na família, ou, pior ainda, dois bebês, era como um furacão atingindo uma multidão. Tudo o que tinha sido despedaçado precisava ser juntado outra vez, numa nova configuração, mais ampla: isso era trabalho para um homem, não para um menino. Ser pai não era um dom; era preciso assumir o trono, afirmou o pai, sentado em seu trono. “Vai haver dificuldades”, acrescentou, piscando os olhos com ar divertido. Mas ele também achou bom; Harry, com sua inteligência fácil e sua tendência para a arrogância, para a dissipação e a frivolidade, sobretudo no que dizia respeito a mulheres, dera ao pai bons motivos para crer que havia alcançado o ponto mais baixo. De fato, o pai tinha quase se reconciliado com aquilo.
Agora, tendo terminado seu sorvete, Alice atravessou o gramado e foi na direção de Harry. Se Rob já tinha dado uma prensa em Harry, agora era a vez de Alice.
Além de sentir-se fraca e enjoada, Alice encontrou Harry muito turbulento e autoritário, com seu bafo carregado de cebola, os dedos suados e os olhos, de súbito, reluzentes demais. Enquanto isso, é claro, ele estava proibido de achar Alice repulsiva, embora ela se descrevesse como “quase um lixo”.
Alice tocou delicadamente nas costas de Harry e os dois foram andando. Preocupada com o lugar em que iriam morar, ela nem conseguia mais dormir. Pelo menos procurariam um lugar bem mais amplo, uma casa num bairro seguro, com jardim. Como ela ficaria depois do parto? Para isso, Alice ia precisar de ajuda, pois Harry não podia esperar que ela cuidasse dos afazeres domésticos e dos filhos, enquanto ele ficava na biblioteca, sem dúvida bebericando espressos ao lado de garotas do mundo da publicidade, que lhe trariam croissants.
“Eu vou trabalhar mais ainda, Alice. Como Mamoon sabe, ganhar a vida nessa área é uma tremenda pauleira. A gente vai ter que ir para onde o dinheiro está: os Estados Unidos, onde eu espero conseguir trabalho como professor…”
“Professor de quê?”
“De escrita criativa.”
“Você não entende nada do assunto”, disse Alice. “Pois eu ando pensando que a gente devia é se mudar para Devon.”
“E o que faríamos lá?”
“Temos de ficar num lugar sossegado. Um lugar para a gente se esconder.” E começou a chorar. “Não é só que eu estou grávida, Harry, mas não param de chegar cartas ameaçadoras de oficiais de justiça, desde quando você veio para cá. Eu andei exagerando um pouco nas despesas. Estou apavorada com a ideia de que alguém vai entrar no apartamento, enquanto você está aqui, e se apoderar das suas guitarras, a Telecaster e a Gibson.”
Para ele, ouvir a palavra “oficial de justiça” era o mesmo que fazer evaporar toda a esperança que existia no mundo. “E o que você respondeu para eles?”
“Não me repreenda. Eu vou cortar as despesas”, disse ela. “Mas agora que ele está aqui, por favor, peça mais dinheiro ao Rob.”
“Vou pedir. Mas o que você andou comprando?”
“Casacos, joias, jantares com amigas e alguns pares de sapato. Vou mostrar para você.” Eles estavam junto à porta da frente e Alice chamou Julia, ciente de que ela devia andar por perto. “Julia, pode trazer os pacotes, por favor? Acho que estão no nosso quarto.” E falou em voz baixa: “Julia é uma garota encantadora. Temos experiências parecidas. Mães solteiras e conjuntos habitacionais do Estado”.
“Verdade?”
“Pensei que Mamoon tivesse te contado, mas espero que você não tente responder uma pergunta com outra pergunta. É um recurso evasivo.”
“Desculpe.”
“Não reparou na Julia?”
“Ando muito envolvido com o livro.”
“Ela e eu fomos fazer compras juntas de novo. Ela sabe aonde se deve ir na cidade. O irmão dela talvez me dê aulas de kickboxing para eu ganhar mais confiança.”
“Ele sabe como chutar, não é?”
“Você parece zangado. Será que ficou azedo porque saí com a faxineira?”
“Azedo?”
“Harry, você sabe ser bem esnobe, não é mesmo?”
Julia entrou com duas caixas. Alice experimentou um par de sapatos e Julia outro idêntico. Ficaram paradas na frente de Harry. Rob apareceu e viu as garotas mostrando os pés para Harry.
Ele disse: “Eu sabia. É isso que você fica fazendo aqui — olhando para as garotas. Pois bem, já gastei dois lápis e, por hoje, estou farto”, disse, sem declarar mais nada. “Vamos conversar mais tarde.”
Liana levou Alice de carro até a estação ferroviária, onde ela esperou o trem para Londres. Harry foi também e prometeu a Alice trabalhar bastante e ao mesmo tempo pensar no futuro deles. Despediu-se dela com um aceno e depois Liana o deixou no pub, onde Rob o esperava. Harry pretendia acertar imediatamente a questão do dinheiro, mandar uma mensagem de celular para Alice e relaxar um pouco.
No pub, Rob já estava numa boa posição, de onde podia ver Julia sentada com amigas do outro lado do balcão. Ao contrário de muitos amigos de Harry, Rob ainda se sentia à vontade em pubs onde não havia mais nada para fazer senão beber e conversar.
“Obrigado por vir me ver hoje, Rob”, disse Harry. “Preciso de mais um adiantamento, meu amigo. Em termos de grana, estou um pouquinho com a corda no pescoço e sob grande pressão neste exato momento.”
Rob riu. “Não posso providenciar outro pagamento até que eu tenha pelo menos a impressão de que você é capaz não só de terminar esse trabalho como também de fazê-lo de maneira original. Afinal, que trabalho você tem feito de verdade?”
“Tenho feito as entrevistas e o planejamento. A maior parte está na minha cabeça.”
Rob balançou a cabeça. “Estou dando um duro danado para manter você no cargo, aqui. Mamoon achava que você fosse preparar uma dessas biografias inócuas, do tipo Reader’s Digest, para dar um gás na carreira dele. Não pensou que você fosse não só virar a vida dele de pernas para o ar como, ainda por cima, despejar tudo isso na cara dele. Acho que ainda vou acabar me arrependendo de ter contratado você.”
“Pelo visto você cometeu um erro.”
“Tudo que diz respeito à arte sempre envolve risco.”
“Mas você superidealiza os artistas, Rob. Existem pessoas mais interessantes e mais úteis.”
“Isso é uma blasfêmia.”
“Estou trabalhando bem, mas você está solapando meu trabalho. Fico bastante perturbado com isso. Olhe as minhas mãos trêmulas.”
“Não entorne a bebida que você fará a gentileza de me trazer. Você sabe que eu nunca ando com dinheiro trocado.” Harry se levantou. Rob disse: “Aliás, você pode me fazer um favor, já que vai mesmo para lá? Pergunte àquela garota…”.
Ele apontou para o outro lado do balcão.
“Julia?”, perguntou Harry.
“Pergunte se ela pode trepar comigo mais tarde. Digo isso em palavras rudes a fim de poupar tempo. Costure aí algumas palavras mais suaves, seu punheteiro do léxico.”
“E para onde ela deve se dirigir para a supracitada cópula?”
“Que tal um sobretudo estendido na relva sob o luar? O campo me deixa um tanto bucólico. Mas isso pode se revelar incômodo devido às correntes de ar. Que tal no interior do seu luxuoso carro?”
Harry disse: “Reflita bem, Rob, pense por um momento em como você irá aparecer diante dela, com a barba por fazer e sem tomar banho já faz um bom tempo…”.
Rob agarrou o colarinho dele. “Do que você está falando? Aqui é que nem a Islândia, há décadas eles não veem um forasteiro. Elas chegam a fazer fila para trepar com homens londrinos.”
Mas Julia tinha ido embora e Rob se atrasou pedindo bebida. Harry ficou tempo demais ouvindo-o falar sobre os acontecimentos interessantes do mundo literário, antes de dizer que ia voltar para a casa de Mamoon. Precisava telefonar para Alice e conversar com tranquilidade. Àquela hora, ela já estaria em casa; às vezes, ela era gentil e chegava a ouvir o que ele falava.
Foi uma árdua tarefa pôr Rob de pé. Tendo consumido em ritmo acelerado a fim de poder beber por mais tempo, àquela altura o cérebro dele parecia estar afogado, como uma Ferrari que saiu da estrada e afundou numa lagoa.
Harry estava ajudando Rob a caminhar pela ruazinha, quando Scott e alguns colegas, com as cabeças cobertas, apareceram na frente deles. Harry e Rob pararam. Scott estava de calção e, como se encontravam perto de uma das raras luzes de iluminação pública, Harry pôde ver que ele tinha uma etiqueta de identificação cinzenta da polícia em volta do tornozelo.
“Você foi longe demais. Trepou com a minha irmã e roubou as minhas coisas”, disse Scott. “Você riu de mim. Que história é essa?”
“Quem é esse?”, Rob perguntou para Harry em voz baixa.
“É o irmão da garota com quem você queria trepar.”
“Ah”, disse Rob, inclinando-se para a frente para vomitar.
“Que coisas eu roubei?”, Harry perguntou para Scott.
Scott e seus companheiros fizeram um movimento na direção de Harry e Rob. Harry pensou em dar um tabefe no palhaço; achou que aquilo podia ajudar o pirralho a pôr a cabeça no lugar. Mas Rob estava muito torto e os garotos com certeza estavam armados de facas; Harry não ia conseguir dar conta dos três ao mesmo tempo. De todo modo, suas pernas tremiam.
Scott balançava um pedaço de pau na mão. “Eu gostaria muito de matar um preto esta noite. Eu estou naquele espírito de esfolar um crioulo ou um turco. Mas como não achei nenhum, vai você mesmo.”
“Escutem aqui, amigos”, disse Rob. Deu mais um passo para a frente e deixou seu celular cair, e um dos delinquentes logo pisou nele com toda a força.
Harry disse para Scott: “Não consigo imaginar nada que você tenha que eu possa querer roubar”.
“Drogas. No quarto da Julia. Você acha mesmo que pode ir chegando assim de Londres e, na cara dura, pegar nosso bagulho?”
Harry meteu a mão no bolso e ofereceu duas notas de vinte para Scott. “Quanto custa?”
Scott cuspiu no chão e esfregou a sola do tênis em cima. “Vou lembrar que você é um garoto burro.”
No carro, Rob disse: “Então, nenhuma chance com a tal garota, é? Você está bem enrolado por aqui, hein? É um lance cheio de vida, não acha? Há séculos que não me divirto tanto. Não é a Inglaterra nem a Grã-Bretanha, mas um lugar completamente diferente. Acho que é o que os torcedores chamam de Ingerland nos jogos de futebol, e é mesmo uma Ingerland”. Rob cantou: “Ingerland, Ingerland, Ingerland…” durante todo percurso até a Casa da Esperança.