Tudo que há de bom em arte nasceu da visão de uma coisa nova e de dizer do que se trata, disse Harry a si mesmo. Portanto, no que dizia respeito ao livro, o que importava acima de tudo era que Harry gostasse dele. Embora o mundo parecesse estar explodindo diante de seus olhos, com tudo se modificando de repente e se deslocando em direções que ele não entendia, Harry sabia que, para escrever, precisava de tempo e de regularidade. Trabalhava o dia inteiro e, no fim da tarde, se habituara a correr no bosque; quando ficava muito escuro sob as árvores, iluminava seu caminho com a lanterna de um capacete de minerador que Julia tinha achado numa feira.
À noite, Harry ficava contente de sair de casa. Encontrava Julia no fim da trilha. Sorrindo, ela saía do bosque correndo, pulava para dentro do carro de Harry e os dois iam tomar alguma coisa — Julia conhecia todos os bares bons da região. Ela gostava quando, depois, ele a acompanhava até seu quarto. Sob o cerco cada vez mais forte da mãe e de seus tumultuados pretendentes, Julia pedia que Harry lesse para ela, ou tocasse violão, enquanto ela cantava.
Depois de deixar um alerta bem rigoroso, Rob se foi, enfiou seus trapos na mala e partiu como um poeta romântico, a passos largos pelas florestas, atravessando campos, regatos e estacionamentos em direção a uma série de pubs. Rob parecia acreditar que ia adquirir conhecimento sobre a vida no campo se suportasse suas desventuras. A fim de celebrar a partida de Rob, Harry pensou em levar Julia para comer num restaurante indiano. “O que você acha?”
Julia precisava dizer que gostava da ideia das crianças que estavam para chegar. Ela sabia o seu lugar, fechava a boca e aceitava o que lhe ofereciam. Sua família sempre tinha se colocado do lado errado. No entanto, ela ficou ligeiramente perplexa com o jantar. Por que pagar por uma coisa assim, quando se podia comer sanduíche de atum e Coca-Cola em casa mesmo? Na última vez em que ela e Harry tinham saído “formalmente”, haviam tomado um ecstasy cada um e depois foram a um boliche num centro superiluminado chamado Hollywood Bowl, na periferia da cidade, onde havia também um megacinema, um drive-thru do McDonald’s e um KFC. A noite foi fluorescente, resplandecente, como um desenho animado.
Mas as drogas eram uma bobagem, Harry começou a achar à medida que foi ficando mais velho. Dessa vez iam conversar… mas sobre o quê, ele não fazia a mínima ideia. Por que se preocupar com isso? Se amor é loquacidade, na cama eles gostavam de discutir sobre o corpo dela e suas vicissitudes, bem como sobre o peso dela e a cor de seu cabelo; e Harry era obrigado a admitir que aprendia muito mais sobre a Inglaterra atual com Julia do que com qualquer outra pessoa. Na cama, enquanto Harry pensava no livro, Julia fazia perguntas, pois ela não queria desperdiçar a fonte que tinha a seu lado.
“Amigo Harry”, ela dizia, “quantos primeiros-ministros houve desde a guerra? E qual foi o melhor? Qual é o jornal mais interessante e por quê? O que você acha do Canary Wharf?* Você vai me levar lá? Quem foi Muhammad Ali? Por que os homens são infiéis às suas esposas? Você vai me dar um fora?”
O que atormentava Julia agora, ela contou a Harry, é que ele era como um circo que tinha vindo para ficar na cidade por um tempo e depois iria embora. “Quando você e Alice vão para Londres, fico morta de pavor, achando que vou ser deixada para trás. Mamãe está cada vez pior. Mais homens vão lá em casa. Eu estou sempre no caminho dela. Mamãe diz que eu faço os homens terem nojo de amá-la.”
Mas Julia amava Harry e havia uma coisa que ela queria dar a ele, um presente especial para ele se lembrar, em troca da bondade que Harry havia demonstrado com ela. Como ela disse: “Não é todo dia que a namorada do amante da gente fica grávida”.
E assim, naquela noite, quando os dois entraram no restaurante indiano onde Mamoon tinha comemorado seu aniversário, uma garota surgiu de trás da cortina. Julia havia combinado com uma amiga para se juntar a eles. Mais bonita do que Julia, ela usava sombra nos olhos, batom nos lábios e sapato plataforma, assim como Julia, e parecia que as duas iam se encontrar com jogadores de futebol. “Essa é a Lucy”, disse Julia, quando a garota foi dar um beijo em Harry. “Nós duas te damos parabéns.”
Lucy deu a cada um deles um pouco de ecstasy e os levou para um clube onde uma mulher obesa vomitou no chão. Julia sugeriu que fossem a outro lugar — não à casa de Julia, pois seu irmão podia estar lá, sem dúvida tatuando a própria testa com um canivete; nem à casa de Lucy, por causa do filho dela. As garotas estavam doidas para que ele as levasse a um hotel na cidade. Compraram bebidas e cocaína, fecharam as cortinas, desligaram os celulares e só reapareceram na tarde seguinte.
No entanto, a certa altura do final da manhã, enquanto as garotas dormiam cada uma de um lado de Harry, que não tinha dormido nem um pouco, ele se lembrou de uma coisa que Mamoon havia dito sobre Marion. “A verdade é que tudo aquilo que desejamos de fato é proibido, ou é imoral ou faz mal à saúde e, se a gente tiver sorte, são as três coisas ao mesmo tempo.”
“E o que se deduz disso, senhor?”
“Não abra mão do seu desejo, mesmo que você venha a ser castigado por isso. Aceite o castigo com gratidão, como um tributo, e nunca se queixe.”
À tarde, ele e Lucy estavam na frente do hotel, à espera de Julia, que tinha deixado o sutiã no quarto. Lucy beijou Harry: ele a abraçou com força.
“Você é irresistível, Lucy”, disse ele. “A noite passada foi tão deliciosa que só consigo prever para mim uma eternidade de arrependimento e autorrecriminação.”
“Por não se divertir assim com mais frequência?”
Harry remexeu nos bolsos. “Tome aqui. Talvez o fechamento do abatedouro também tenha arruinado a sua vida.”
Deu-lhe quase cem libras e ela as devolveu, dizendo: “Você vai precisar do dinheiro para comprar roupas para os bebês. Sua companheira, a Alice, vai ter dois, não é isso?”.
“É, sim. Gêmeos.”
“Quando vocês descobriram?”
“No exame de imagem, outro dia mesmo. A enfermeira disse: Aí está seu bebê… ah, e ali tem mais um. Parece que vocês vão ter dois.”
“Você vai dar conta do recado”, disse Lucy, enquanto adicionava o número de seu celular no telefone de Harry. “Você adora brincar e nunca será mais feliz do que quando estiver com uma mulher. Parecia que você queria nos chupar inteirinhas. Sua mãe não teve gêmeos?”
Em geral, Harry falava o mínimo possível. Como o pai, queria ser um ouvinte: parecia mais seguro. Mas as drogas tinham desarticulado sua língua e, por fim, condenado Harry à verdade. Quando Julia saiu do hotel e se juntou a eles, Harry se viu contando para as duas que seus irmãos mais velhos eram gêmeos idênticos e que sua mãe tinha sido psicótica paranoica. Desnorteada pelo som de vozes, ela caminhou até o rio e se afogou.
“Tenha medo da morte pela água, diz o tarô. Minha mãe me assombra e penso nela boiando no rio, como Ofélia.”
“Que coisa sinistra”, disse Julia, beijando Harry.
“É a morte mais fácil — a pessoa pode chegar ao fim em trinta segundos, se ficar de boca aberta.” Ele acrescentou: “O que é que o desejo de morte deseja? Será que minha mãe não esteve sempre seguindo naquela direção? Nós, os três meninos, que éramos capazes de enlouquecer até uma pedra, tivemos sorte de ter mamãe conosco pelo tempo que tivemos. Eu diria que ela era muito obediente”.
“A quê?”
“Acho que a uma voz fascista que ficava falando dentro da cabeça dela. Em vez de ser muito doida, como dizem por aí, ela era, sim, bastante ortodoxa.”
Lucy deu um tapa no braço de Harry. “Bem que a Julia me disse que você era meio estranho.”
“Se me fosse dada uma centelha de loucura, eu faria de tudo para cuidar muito bem dela.”
“No café da manhã, Julia me disse que você estava fazendo uma lista de pessoas cujo pai ou cuja mãe se matou.”
“E também de pessoas que têm atração por suicidas. Todas as mulheres de Hitler se mataram, acho que foram sete. É um tipo muito especial de morte para ter sempre na cabeça. A pior coisa que podia acontecer já aconteceu. Fico pensando que tipo de psicologia isso forma.” Harry disse que, se a pessoa tem um pai ou uma mãe que se mata, ela nunca perde o medo de que tudo o que ela mais ama na vida possa ser tirado dela. “Hoje de manhã, enquanto vocês duas, tão lindas, dormiam, passou pela minha cabeça que eu podia tentar escrever um livrinho sobre suicidas e as pessoas que os amam. Vou conversar com papai sobre minha mãe, encontrar as amigas dela e os escritores de que supostamente ela gostava. Vou ser o biógrafo dela.”
Quando o carro de Harry chegou à casa de Julia, Scott, o irmão de Julia, apareceu no jardim e ficou ali plantado, encarando Harry, sentado dentro do carro, as duas garotas caladas e vigilantes.
Julia sussurrou: “Ele é protetor, mas sabe o que você significa para mim”.
Harry baixou a janela do carro. “Boa tarde.”
“Tudo bem?”, perguntou o irmão.
Ele fez um gesto para as garotas e elas foram correndo para dentro da casa. Scott ficou parado na frente do carro. Harry tentou fechar a janela, mas não conseguiu.
“Foi bom?”, perguntou Scott, de novo, sem levantar a voz, mas incapaz de resistir ao impulso de escarrar no chão.
“Foi, sim, obrigado”, respondeu Harry. Pensou que era melhor dar marcha a ré e sair depressa dali, mas se perguntou se aquilo não podia parecer indelicado. Os dois ficaram se encarando, até que afinal o irmão saiu da frente do carro.
* Complexo de edifícios comerciais no centro de Londres. (N. T.)