“Aconteceu alguma coisa muito grave?”, perguntou Mamoon. “Por que você está cantarolando essa melodia alegre?”
“Posso pôr mel no seu iogurte?”
“Seria a primeira vez, mas muito obrigado, Harry”, disse Mamoon, sentando-se à mesa da cozinha e sorrindo para o jovem. “Qual é a fonte desse seu estado de espírito alegre, meu amigo biógrafo-demônio? Será que é porque você descobriu que eu sou bissexual, que tenho diversas crianças amantes, o que irá assegurar a você o best-seller escandaloso de que precisa a fim de pavimentar sua vindoura carreira como apresentador de televisão?”
“Vou dar uma longa caminhada e pensar sobre sua vida, antes de voltar para Londres a fim de escrever tudo de uma vez, da maneira mais chique e obscena de que eu for capaz, com Alice a meu lado.”
“Graças a Deus que jamais lerei isso. E Liana e eu teremos um pouco de paz, afinal.”
Julia entrou correndo na casa e jogou uma bolsa grande no chão, seguida por outra. “Desculpe, precisei esperar meu irmão, ele me deu uma carona.” E, de fato, Harry viu pela janela o irmão de Julia, que fez uma cara feia e foi embora. Julia disse: “Está pronto? Posso pôr as bolsas no seu carro?”.
“Como assim?”
“Eu vou com você”, disse ela. “Para Londres. Alice não contou?”
“Não.”
“Ela está enorme e cansada agora, e eu vou ajudar na limpeza do apartamento e a instalar vocês na casa nova que estão alugando. Você vai ficar escrevendo; ela diz que você não vai levantar um dedo sequer, e ela não consegue fazer as coisas da casa sozinha. Seja bonzinho, Harry. Não se preocupe, ninguém vai falar nada. A gente se dá bem. Vamos gozar os melhores anos das nossas vidas.”
Na última vez em que Julia e Harry tinham ficado juntos, nos campos, alguns dias antes, ela havia suplicado novamente que Harry a levasse para Londres com ele. Tinha que ser agora, disse ela; não havia mais nada para ela ali. Liana era cruel e Ruth estava desvairada, com ódio de si mesma e de todo mundo à sua volta. Ruth nunca havia gostado de Julia e queria que ela fosse embora de casa: os olhares “desaprovadores” de Julia estavam deixando Ruth deprimida e afugentando seus namorados. Da mesma forma, o ânimo de Julia estava se deteriorando; ela sonhava que havia gente querendo matá-la; tinha medo de dormir. “Estou muito perto de virar faxineira”, disse ela. “Vou trabalhar sempre, o tempo todo, Harry. Jamais serei um fardo para você.”
Harry disse que era impossível; ela não conhecia Londres, uma cidade muito grande, rápida e cara demais. Como ela iria sobreviver? Julia, é preciso que se diga, nem deu bola.
“O que está acontecendo? Todo mundo está indo embora?”, disse Liana, entrando vestida com seu robe de chambre.
“Está.”
“Até você, Julia? Não é possível. E quem é que vai passar a roupa? Quem foi que lhe deu esse direito?”
“Hoje de manhã falei com mamãe, Liana, e avisei que ia pôr o pé na estrada. Mamãe está lá em cima arrumando as camas. Ela vai me cobrir no serviço.”
“Não, desculpe, mas não vou permitir”, gemeu Liana. “Alice não está aqui, minhas duas filhas me abandonaram! A casa vai parecer uma pedra fria e silenciosa, e eu adoro as vozes, o movimento na cozinha, muita atividade! Mamoon, o que eu vou fazer?”
“Liana, o que você costuma fazer aqui?”
“Eu cuido de você. Sou uma cuidadora.”
“Sim, você é uma esposa.”
“Mas você é um marido?”
“Escute aqui, Liana, se você acordou de mau humor, você pode muito bem voltar para a cama, mas depois que tiver feito o meu café e me servido dois ovos cozidos, muito obrigado.”
“Mamoon, você precisa fazer a si mesmo algumas perguntas muito sérias. Passar todo esse tempo sozinho no escritório não tem feito bem à sua sanidade mental. Você anda cantando enquanto dorme.”
“Cantando? No meu escritório, eu trabalho, e só para você. Na realidade, quem é que põe essa droga de comida na mesa?”
“Tudo o que você faz, Mamoon, é se masturbar.”
“Agora é que você diz isso, depois de todo esse tempo, agora que você sabe muito bem que é isso que eu faço, quem eu sou…”
“Só que eu estou me cansando dessa história, habibi, preciso de alguma coisa mais, como mulher. As duas garotas partiram para onde há mais vida! Por favor, vamos pular para dentro do carro do Harry e ir com eles! Vamos fugir!”
No início, aquelas discussões deixavam Harry aflito e ele queria que terminassem logo. Agora elas não passavam de mais um barulho típico da zona rural. Harry deixou-os e foi dar uma volta tranquilizadora pelo pomar, embora tenha achado que mesmo de lá ainda ouvia as vozes deles. O mais importante foi que, na hora em que saía pela porta, Harry se virou por um momento. Enquanto Liana, de pé junto à pia, de braços cruzados, continuava a repreender Mamoon de longe, Harry viu Julia se aproximar dele e lhe dar um beijo respeitoso na bochecha. Por um instante, Mamoon segurou os cotovelos de Julia e seus olhos pareceram ficar úmidos. Foi a única vez que Harry viu os dois se tocarem.
Ele e Julia seguiram de carro pela estradinha e ele achou que nunca mais voltaria àquela casa. No espelho retrovisor, viu Liana acenando, gesticulando e cobrindo o rosto com as mãos; Harry achou que ela ia chorar o dia inteiro. Alguma coisa tinha se modificado dentro de Liana e havia uma nuvem negra em sua aura.
“Como estou?”, perguntou Julia.
“Alice cortou muito bem o seu cabelo. E você tem trabalhado duro para cuidar do corpo.”
“Me agrada que você admire meus peitos. Não suporto a ideia de não ficarmos coladinhos.”
Ele disse: “Vi Ruth nos observando na janela lá de cima. Ela nem acenou para nós. Ela está satisfeita com você?”.
“Ela sabe que não posso mais ficar aqui.”
“Ela vai conversar comigo sobre Mamoon?”
“Não sei.” Julia disse: “Os cadernos, eu já entreguei para você. Aqueles em que o Mamoon fala de nós como uma família para ele”.
“Sim…”
“Serviram para alguma coisa?”
Harry disse: “Ponha a música do Little Richard para tocar”.
“Qual?”
“‘I’m in Love Again.’ É a minha predileta.”
Os dois ficaram balançando a cabeça. Harry olhou para ela: “Talvez a gente possa parar no caminho. Um amasso no acostamento da estrada antes de um almoço ligeiro no Little Chef, que tal?”
“Você sabe como divertir uma garota.”
Ele disse: “Os cadernos foram muito úteis, Julia. Abriram meu horizonte. Você me fez um grande favor”.
Ela disse: “Ainda não estou feliz”.
“Por quê?”
“Você não puxou meu cabelo nem gritou comigo com força suficiente.”
“Não sou nenhum molenga, você sabe disso. E amo você demais.”
“Obrigada. Eu estava morrendo”, disse Julia. “Lá, eu ia acabar morrendo. Agora você nunca mais vai se livrar de mim.”
“Não”, disse ele. “De certo modo, acho que você tem razão.”