Vinte e seis

 

 

 

 

 

 

 

 

“Ah-ha!”, disse Rob.

Harry estava sentado em seu escritório quase vazio, debruçado sobre a mesa, quando Rob apareceu na porta como um fantasma, depois de conseguir penetrar sorrateiramente na casa nova, sabe-se lá como.

“Gosto do seu aspecto fresco, Harry: o cabelo curto cai bem em você. Deu a você um novo traço de brutalidade e determinação. E também gosto da casa nova. Posso me mudar para cá?”

Harry tinha vendido seu apartamento e pagado as dívidas de Alice; agora o casal alugava a casa de um amigo que estava fora do país. Era ampla, porém mais perto de Acton do que qualquer um desejaria. Cedo ou tarde, ele e Alice teriam de providenciar um lugar mais adequado, porém Harry não conseguia enxergar de que jeito conseguiriam fazer isso. Ele estava bem adiantado no trabalho, mas não tinha terminado o livro. Sua atual condição financeira era confusa e desnorteante. Harry achava que a única coisa que podia fazer era continuar trabalhando.

“É um alívio flagrar você na sua mesa de trabalho”, disse Rob. “Vim direto para cá depois de ter conversado a seu respeito hoje de manhã. Minha pobre colega Lotte, que agora está se recuperando, me contou que há alguns meses, depois de cruzar com você, convidou-o para ir à casa dela. Fiquei impressionado com os pormenores do transporte.”

Harry sussurrou, nervoso: “Fale baixo, as mulheres estão em casa se preparando para o nascimento dessas malditas crianças. Que pormenores do transporte são esses?”.

“Depois de uma festa, ela teve a gentileza de convidar você para ir à casa dela. Mas Lotte percebeu que você deixou o táxi esperando lá fora, para poder dar no pé rapidinho. Isso a magoou.”

“Ela morava em Queen’s Park.”

“E só por isso você precisava castigá-la tão cruelmente?”

“Eu só percorri toda aquela distância porque ela estava com um vestido amarelo que eu adorei. Ela queria que eu visse os peitos dela e estava com um perfume muito bom. Tenho a capacidade de atribuir poderes sobrenaturais a mulheres que não têm nada de mais.”

“Ela está longe de ser uma mulher que não tem nada de mais; é uma das melhores nos quesitos inteligência e beleza e tem as pernas de uma Vênus. Isso pode surpreender você, Harry, mas você a faz rir e pensar como ninguém mais consegue. Só que Mamoon anda telefonando para ela e agora está pegando no meu pé também, insistindo que quer se encontrar com você.”

Harry riu. “Quando eu fui embora há três semanas, ele estava abrindo garrafas de champanhe e brindando de alegria.”

“Por favor, vá lá e converse com ele esta noite.”

“Psicologicamente, estou por um fio. Além do mais, estou no meio de um parágrafo sobre a mãe dele.”

“Amanhã de manhã?”

“Ele tem algo específico a me dizer?”

Rob respondeu: “Ele anda atormentado. Tem tido sonhos horríveis de morte. Disse que tem uns presentes lindos para dar a vocês dois e quer conversar de forma honesta”.

“Seria a primeira vez”, disse Harry. “Se for importante e se ele tiver alguma informação para mim, posso pegar o carro e ir até lá daqui a alguns dias.”

“Ele quer ver os dois, você e ela. Alice, em especial.”

“Por quê?”

“Mamoon diz que o campo é um sedativo para o temperamento agitado de Alice, o único lugar onde ela relaxa. Aprenda a dar a uma mulher aquilo de que ela precisa. Olhe só para mim: não tenho ninguém, e à noite tudo é escuro e desolado, e eu fico chorando sozinho.”

Harry olhou firme para Rob. “Alice está ocupada, esperando os gêmeos.”

Rob disse: “Você não está captando a gravidade da situação, meu velho. Liana também não para de me ligar, a srta. Corações Solitários, para dizer que Mamoon está ficando selvagem”.

“Como?”

“Puxou o cabelo dela. Arranhou. Ela berrou na cara dele. Mamoon chegou a chorar de desespero.”

“Os dois se merecem.”

“Não tenho certeza disso.”

“Como assim?”

Rob sentou em cima da mesa sobre os papéis de Harry, segurou as mãos dele, acariciou-as, levou-as aos lábios e beijou. No meio editorial, ninguém jamais tinha feito uma coisa dessa com ele.

“Homem maravilhoso. Mamoon sempre se preocupou com a tarefa quase impossível de usar palavras reais para descrever coisas invisíveis. Você e eu sabemos que a linguagem é o único encantamento que existe. A magia alternativa feitiços, cristais, lâmpadas para esfregar, tudo isso não passa de doces futilidades. Agora, Mamoon desenvolveu uma paixonite de velho por Alice. Ao contrário da mulher dele, Alice escuta o que ele diz, e ele a ela. Mamoon nunca tocou em Alice, você sabe disso. Ela é a isca apetitosa.”

“Por que eu não levanto você na ponta do meu dedo mindinho e o atiro pela janela?”

“Em vez disso, pense em tudo que ele pode deixar escapar enquanto estiver babando nela. Observe como você deixa as boas oportunidades escaparem.”

“Ainda não virei cafetão.”

Rob apanhou uma porção de romances recentes, jogou-os na parede e berrou: “Você nem está olhando para mim! Mas acontece que eu estou lhe dizendo uma coisa importante, seu caruncho!”.

“É disso que ele me chama, não é?”

Rob disse: “Vim aqui discutir o que você fez com um dos maiores artistas do mundo. E a labareda nua”.

“Labareda nua?”

Rob contou a Harry que Mamoon, em casa, alguns dias antes, depois de se dar ao proveitoso trabalho de examinar as próprias fezes uma coisa que as pessoas idosas apreciam fazer e desejando desfrutar de uma noite relaxante com uma nova tradução da Odisseia e com um DVD, ao qual ainda não tinha assistido, sobre os jogadores de críquete australianos Lillee e Thomson, ouviu sons musicais, entremeados com latidos. Aquilo estava destoando ali. Quis muito poder selar os ouvidos. Gritou pedindo ajuda, mas Ruth já tinha ido para casa e enxugado metade de uma garrafa de vodca tirada da patroa. Agarrando a bengala, Mamoon abriu a porta que dava para sua biblioteca. E foi como abrir a porta do inferno.

Fazia pelo menos uma semana que Liana andava agitada. Enquanto Mamoon trabalhava, ela ficava à toa, largada na cama, e se levantava de noite para ler, mandar e-mails e vagar pela casa. Ela havia começado a cantar e dançar, falava sozinha em italiano, sinal certo de loucura, acreditava Mamoon.

Quando ele abriu a porta da biblioteca, topou com Liana “esvoaçando”: dando saltos etéreos, vestida com um robe aberto, os peitos expostos, uma fisionomia de êxtase e felicidade em seu rosto branco e lívido, uma deusa ou uma borboleta. Quando ele perguntou o que estava acontecendo, Liana não conseguiu parar, embora por um instante tenha olhado fixamente para quem a interrompera, sem parecer reconhecê-lo.

Mamoon foi na direção de Liana e percebeu, entre ambos, no chão, um prato com velas. Curvou-se para pegá-lo. O cabelo solto de Liana tombou nas chamas das velas e, de repente, se inflamou. Num instante, ela se tornou uma tocha humana, com um halo de fogo devorador em torno do rosto. Enquanto dançava desvairadamente, as chamas se espalharam pelos papéis sobre a mesa; o vento soprou as chamas para o tapete veneziano predileto de Mamoon, que também pegou fogo. Um cobertor começou a fumegar. Um livro começou a arder.

O velho cambaleou até a mesa, ergueu um vaso enorme e despejou o conteúdo sobre a pobre mulher histérica, e a apagou. Mamoon correu para a cozinha em busca de mais água, que jogou em todo o seu adorado aposento que aos poucos entrava em combustão antes que tudo se incendiasse. Ele corria de um lado a outro, exausto, chorando, despejando água, praguejando.

Mamoon, por fim, segurou Liana, envolveu-a em panos frios e molhados, até as convulsões passarem. Ela tinha se queimado em alguns pontos do corpo e teria de cortar o cabelo, mas não estava gravemente ferida. Mamoon a confortou, lhe deu calmantes e a colocou na cama. Sentou-se com ela e ficou rascunhando em seu notebook um texto novo. Por algum tempo, Liana não conseguiu cozinhar nem cuidar da casa. Quando um dos cães spaniel pegou um pato e o matou no gramado, Liana recusou-se a se levantar para ajudar na limpeza e Mamoon acabou tendo enjoo de ver as tripas e a sujeira sangrentas espalhadas pela grama. Precisaram chamar Scott.

“Você sabe que o Scott faz o trabalho sujo sem reclamar”, disse Rob. Num estado terrível de raiva e depressão, Mamoon fez Scott jogar fora o tapete queimado. “E quer saber de uma coisa? Scott salvou o tapete. Raspou o tapete todo, limpou o melhor que pôde e disse que Julia podia ficar com ele. Ela vai dar o tapete para você e você vai ficar com ele na parede do seu escritório, para se lembrar dos meses que passou mergulhando através das décadas, tendo de se defrontar com espantos e com segredos, até virar adulto.”

Mamoon andava tendo uns acessos de tontura. Andava levando tombos. Só Ruth o levantava e cuidava dele, lhe dava comida e chá. Como Harry podia imaginar, o rosto de Ruth, semelhante ao de um cadáver, igual ao da sra. Danvers,* causava horror a Mamoon. “Você não gostaria de ver aquela mulher vindo na sua direção com uma tesoura na mão ou cortando as unhas dos seus pés, gostaria?”

“Mamoon detesta telefone, mas começou a me ligar. Está com medo de que Liana tenha enlouquecido, que seu destino seja ficar para sempre aprisionado no campo com uma maluca. A coisa virou uma competição de pulsões de morte: qual dos dois se manterá mentalmente são e despachará o outro primeiro para a loucura? Os dois se provocam e se xingam o tempo todo. Portanto: bom dia, Harry. É aí que você entra.” Harry perguntou se era culpa dele. Era. “Sim, Liana anda resmungando sobre a sua influência. Na verdade, ela não abre o jogo. Porém Mamoon está convencido de que você lançou um feitiço sobre ela.”

“E como eu teria feito isso?”

“Eu sei exatamente como. Aquele bagulho que você deu para ela. Aqueles fragmentos de utopia: os cogumelos mágicos e as outras coisas. Não vai negar, vai?”

Harry levou a mão ao rosto. “Ah, meu Deus, Rob.”

“A mulher teve o cérebro bombeado para fora do crânio. Qual era a brincadeira de vocês?” Rob balançou a cabeça com ar sério e prosseguiu: “O velho obteve mais uma coisa bastante pesada contra você”. Rob se inclinou para a frente e sussurrou bem no ouvido de Harry. “Alice e Julia podem nos ouvir?”

“Como posso saber? Elas estão separando algumas roupas. Ainda tem mais? É pior?”

“É ela: a Julia. Ela é o problema, aqui, e tem essa coisa das convenções… por mais que as convenções sejam ridículas, mesmo assim elas existem.” Harry fez que sim com a cabeça bem devagar. “Vejo que você está abatido. É admirável, de certo ponto de vista, que você tenha tido o sangue-frio de transar com uma empregada de Mamoon bem debaixo do nariz dele. Perigoso, mas Mamoon jamais deduraria você.”

“Por que não?”

“Ele tem carinho por você. Mas nunca o pressione. Você não quer ver ninguém espalhando aos quatro ventos, no mundo literário, que você se comportou como um animal enquanto estava hospedado na casa dele.”

“Rob, eu juro, eu me movia quase rastejando, sorrateiro como um fantasma.”

“Ah, ah, mas quando não estava deprimido, você importunava o velho, perseguia garotas e provocava a mulher de Mamoon. Chegou a ponto de fazê-la se voltar contra o marido. Você trepava com a empregada dele enquanto consumia vastas quantidades da bebida dele, comia a comida da mulher dele, roubava os cadernos de Mamoon, dava tapas na cabeça do velho e o acusava de ser sadomasoquista. O que há de um fantasma em tudo isso? Você vai acabar desacreditado, nunca mais vai conseguir trabalho em lugar nenhum. Você precisa dar a ele alguma coisa, entende?”

Houve um silêncio. Rob pareceu acreditar que a compreensão, afinal, estava chegando à mente de Harry, como o lento, mas inevitável, efeito de um tranquilizante; e, enquanto aquilo envolvia Harry e nublava seu cérebro, Rob afagou o braço de seu autor.

“Bom menino”, disse. “Pense, pense. Pense bastante. Você é o meu menino bonzinho.”

Alice entrou, com o telefone na mão. Aproximou-se de Rob e o beijou. “Liana não para de me mandar mensagens pelo celular. Mamoon chegou até a ligar e disse que está fazendo preparativos.”

“Para quê?”, perguntou Harry.

“Para a nossa chegada. Seria adorável ir lá de manhã. Sinto falta daquele lugar, das paisagens e da água. Nem precisamos passar a noite lá, se você não quiser.”

“Querida, tem certeza mesmo de que quer ir?”

“Você disse que ainda havia uma pessoa que você não tinha entrevistado para o livro. E você sabe que as minhas conversas com Mamoon me dão força.”

Harry olhou para Rob e suspirou. “Tudo bem”, disse. “Vamos lá.”

“Você não vai se arrepender”, disse Rob. “Você ainda não está liberado.”

“Não”, disse Harry. “Parece que não.”


* A aterrorizante governanta do filme Rebecca (1940), de Alfred Hitchcock. (N. T.)