Vinte e sete

 

 

 

 

 

 

 

 

Eles chegaram de manhã, depois de deixarem Julia na casa da mãe, no caminho.

Harry não estava seguro de que Liana queria de fato que eles fossem lá. Mas, quando entraram, viram que Liana tinha se dado ao trabalho de preparar um bom almoço de pasta com frutos do mar e salada de abacate e mozarela. Como sempre, a mesa parecia convidativa. Liana foi correndo dar um abraço nos dois.

A conversa correu alegre e divertida; Mamoon estava espirituoso, mas só falava sobre o que tinha visto na televisão. Depois, enquanto Mamoon e Alice continuaram sentados em seus lugares, discutindo sobre seus cinco tipos prediletos de pudim, os melhores de todos os tempos, além dos lugares e das circunstâncias em que haviam consumido cada pudim, Mamoon disse que tinha deixado um “presente especial” para Harry no andar de cima. “Vá lá, você vai ficar contente. É para você”, disse Mamoon.

Harry subiu para continuar seu trabalho e encontrou seu presente em cima da cama, dentro de uma pasta: o manuscrito de quatro páginas de um conto muito antigo de Mamoon. Pouco depois disso, tendo tirado sua peruca, Liana apareceu na porta com um chapéu de lã nepalês para cobrir a cabeça chamuscada e perguntou se podia ficar um pouco com ele. De modo surpreendente, ela não ficou tagarelando nem contando vantagem, mas pôs a língua para fora.

“Olhe só essa cor roxa! Viu os círculos do inferno embaixo dos meus olhos? Você soube que eu peguei fogo, não soube?”

Liana andava sob tormento astral, perambulava a noite inteira, como os mortos-vivos infelizes, com a pele repuxando e os ossos doloridos. Ela vinha tentando se masturbar demais, quatro vezes por dia em algumas ocasiões. Tinha até gastado um pouco a ponta do dedo, naquelas dobras macias, e achava que podia se esfregar até gozar. Mas não adiantava. “O mundo não para de rodar dentro da minha cabeça. O que posso fazer para parar o mundo? O próprio Mamoon insistiu para você voltar. Foi a única coisa com a qual nós dois concordamos nos últimos tempos.”

“Por que ele quis que viéssemos para cá?”

“Para pôr fim no nosso isolamento.” Liana pôs a cabeça no ombro de Harry. “Não quer andar comigo? Apesar de todos os seus artifícios e de sua determinação, sempre acreditei que você tem um bom coração e ama as mulheres. Você me escutou sem cobrar nada.”

Liana ansiava para lhe mostrar como o jardim murado tinha crescido e estava louca para que ele visse a carpa e o peixinho dourado no pequeno lago. Fez questão de levar Harry para trás dos celeiros, passando pela piscina, que eles tinham finalmente aberto de forma adequada. Era início do outono, mas o tempo andava quente para aquela época e o dia estava esplendoroso.

“Tomara que a gente encontre o Mamoon lá”, disse Liana. “Sabe, apesar de ele ter me magoado mais do que qualquer pessoa, ainda adoro topar com ele no caminho.”

“Achei que Mamoon raramente viesse para este lado do jardim.”

“Nem sei como lhe contar a maneira estranha com que ele tem se comportado.”

Mamoon passara a mostrar muito interesse pela piscina. De forma nada característica, tinha perdido um dia de trabalho para supervisionar e examinar sua limpeza, feita por Ruth e Scott, para ter certeza de que ela estava aquecida numa temperatura que ele aprovava, algo que Mamoon normalmente não se daria ao trabalho de ele mesmo verificar. E, mais estranho ainda, Scott recebera ordens de levar Mamoon de carro à cidade para comprar comida e vinho, além de móveis de jardim, espreguiçadeiras e toalhas, e Mamoon fez questão de que Scott levasse tudo imediatamente para casa. Liana se animou com aquilo, perguntando-se se Mamoon começava, afinal, a esquecer o fardo de seu trabalho.

Enquanto caminhavam, Harry e Liana viram Scott, de peito nu, com uma pequena rede de pesca, tirando folhas da piscina. Mais adiante, estava a figura cada vez mais volumosa de Alice, de óculos escuros, sutiã branco e calcinha admiravelmente despreocupada se abaixando dentro da água.

Mamoon estava sentado ali perto, batendo palmas, incentivando Alice a entrar na água. “A temperatura está boa?”, perguntou ele. “Claro que está! Afunde. Bom. Mais fundo. Isso mesmo…”

Levantou-se para ver Alice nadar de lá para cá com braçadas vagarosas e elegantes.

“Ora, ora”, Harry disse para Liana. “Graças a Deus que Mamoon finalmente está usando a piscina.” Liana perguntou sobre que assunto ele achava que Alice e Mamoon tinham conversado. “Muitos artistas tiveram uma musa”, disse Harry, “e, com Alice, ele encontrou a sensualidade, a inspiração e uma foto de mulher pelada para colar na parede. Mamoon escuta os sonhos de Alice e fala sobre eles, associando-os à história dela. E Alice, por sua vez, lhe diz que tipo de calça fica melhor nele.”

“Você falou que ele escuta os sonhos dela?”

“E ele não escuta os seus? No seu tempo livre, Mamoon se tornou agora uma espécie oniromante. Aprendeu que um sonho pode construir ou destruir um dia.”

“Ele me enxota.”

Harry apontou para os dois. “Pois não está enxotando a Alice. Parece que Mamoon está pronto para disputar as Olimpíadas, pela maneira como corre para pegar a toalha, parece um velho frenético correndo para não perder o último ônibus. ‘Ofegante para sempre’, como diz Keats.” E prosseguiu: “Mas na verdade eu não acredito que ele vá seduzir Alice. Ele é nervoso demais. Mamoon só quer examiná-la bem de perto”.

“Mas por quê? Por quê?”

Quando Alice emergiu da água, parecia nua. Mamoon ficou absolutamente imóvel, com uma toalha em cima do braço.

Harry comentou: “Mamoon uma vez me disse, sabiamente, eu acredito e é um conselho que levei muito a sério , que um homem seria um tolo se achasse que deve fazer amor com toda mulher que o atrai”.

Harry se aproximou de Alice, que tiritava estendida numa espreguiçadeira, envolveu-a numa toalha e beijou-a na lateral da cabeça. Pegou sua mão e sentou-se a seu lado. Deu palmadinhas na barriga dela e falou, se dirigindo aos filhos lá dentro: “Oi, crianças, como vão? Estava muito frio dentro da água? Quando é que vocês vêm nos ver? Queremos vocês conosco!”.

Liana sentou-se junto de Mamoon e segurou a mão dele. “Que trabalho maravilhoso você fez. A piscina deve estar fria, mas parece tentadora, meu querido. Vou nadar. Não quer vir comigo? Seria ótimo se entrássemos juntos na água, um ao lado do outro, e eu pudesse ver como você é forte. Está me ouvindo, Mamoon? Você está bem?” Ele balançou a cabeça de modo vago. “Nesse caso, você vai me ver nadar e tomar conta para que eu não me afogue, não é, meu amor?”

Enquanto Liana trocava de roupa numa cabine vizinha, Harry disse a Mamoon: “Estou chocado por não ver o senhor no escritório a essa hora do dia. Já acabou o que estava fazendo?”.

Mamoon virou para o lado. “Eu nunca estarei acabado.”

Alice tinha fechado os olhos e estava adormecendo. Harry disse: “Adoro olhar para Alice agora que ela está grávida. Nunca esteve tão sedutora sua pele, seus olhos, seu cabelo simplesmente reluzem”. Mamoon assentiu com a cabeça com ar tristonho. “Certa vez o senhor disse, e em circunstâncias pertinentes: ‘Antes um livro do que um filho’, não foi?”

“Você inventou isso.”

“Acho que me lembro de ter lido isso nos diários de Peggy”, disse Harry.

“Por que você pensou numa coisa dessas?”, Alice perguntou a Mamoon, abrindo os olhos. “Nunca quis ter um filho, mestre?”

“Não acredite em nenhuma palavra que ler”, disse Mamoon.

“Meu sangue desceu todo para os pés”, disse Alice. “Estou meio tonta. Achei que eu tivesse mais fôlego. As crianças já estão me roubando a vida.”

Harry afagou o cabelo de Alice. “Livros são armadilhas: antes um filho do que mil bibliotecas. Histórias não passam de substitutos.”

“De quê?”, perguntou Mamoon.

Harry beijou Alice. “Do que importa de fato. A mulher.” Ergueu os olhos. “Ah, lá vem a Liana. Não está linda com seu traje de banho?” Levantou-se, ajudou Alice a se pôr de pé e levou-a embora, com o braço em volta dela. “Venha, vamos entrar e deitar juntos, antes que você fique azul. Acho que daqui a pouco vai chover. E Mamoon quer ficar com Liana.”

“Mamoon”, chamou Liana. “Pegue meu braço, querido, e me ajude a afogar… desculpe, quero dizer, me ajude a afundar na água. Onde está você, meu marido querido?”

“Vemos vocês depois. Vamos deixar vocês sozinhos”, gritou Harry.