Vinte e oito

 

 

 

 

 

 

 

 

Harry estava parado no jardim, debaixo da chuva, segurando uma caixa. Tinha a sensação de que alguém o observava, mas e daí?

Ruth tinha vindo fazer uma faxina na casa depois do almoço e trouxe Julia para ajudar Harry a esvaziar seu quarto. Enquanto Julia tentava selecionar e organizar os papéis e os livros que Harry tinha deixado na última vez em que estivera na casa, Harry levava suas coisas para o carro. Demorou-se um pouco mais ali no jardim, pois algo o levou a verificar algumas citações e a dar uma última olhada.

Mamoon rejeitara e evitara Peggy muitas vezes, sobretudo na época do aborto, não muito tempo depois de terem se mudado para a casa. Pelo visto, foi nessa ocasião que ele disse: “Antes um livro do que um filho”. Para Harry, a versão de Peggy sobre os primeiros anos de Mamoon era confiável e abalizada, e eram insuportáveis as informações que ela dava no final, quando suplicava a Mamoon “Quem dera meu querido marido mostrasse alguma piedade por mim e me trouxesse algumas páginas para eu corrigir, ele sabe que para mim isso é a coisa mais importante que existe, nosso único vínculo agora” e ele se sentava ao lado dela na cama e punha a cabeça de Peggy em suas mãos, num silêncio terrível. O fantasma é sempre aquele que não deixamos entrar. Enquanto Harry folheava os diários e imaginava ouvir a voz de Peggy gritando para ele, pedindo socorro, garantiu a ela que iria contar a versão dela da história não importava qual fosse da melhor maneira possível, ao lado da versão de Mamoon.

“Harry!” Mamoon estava na porta da cozinha, quando Harry voltou para a casa. Mamoon tirou os fones de ouvido que agora se habituara a usar e através dos quais ouvia as músicas que Alice lhe enviava. “O que você estava fazendo lá? Dando uma olhada na Peggy outra vez? Deixe pra lá”, disse. “Tudo isso vai para a universidade ainda nesta semana. Eu devia ter jogado tudo na lareira. Ted Hughes, que eu conheci e a quem eu adorava, é que tinha a visão correta sobre os diários de Sylvia enfie tudo no forno, junto com a cabeça da mulher. Senão aquelas pesquisadoras universitárias nunca mais vão parar de fazer carreira e conseguir bons rendimentos à custa dos diários, e de quebra vão transformar o homem num ogro. Elas veem a questão do jeito que lhes agrada, sem imaginação. Elas odeiam a sexualidade masculina comum.”

“Se estamos conversando com honestidade, como o senhor queria”, disse Harry, “não diria que há nisso certa dose de arrependimento?”

“Longe de ser impiedoso, eu fui, isso sim, leal demais e dedicado demais. O que você faz com o desejo morto? Eu não tinha nenhum desejo por Peggy e o desejo dela era sofrer. O mais sensato teria sido dar logo no pé, e sebo nas canelas.”

“Essa é a regra que o senhor recomenda, então? Quando não se deseja mais a pessoa, deixá-la? Estou pensando em Don Giovanni. A vida emocional, nesse caso, seria uma porta giratória.”

“Essa é mais uma das suas caricaturas. Você não percebe a verdade ou a dificuldade da coisa.”

“Mas e quanto à culpa?”

“A culpa existe, seu tolo desgraçado, e precisa ser superada ou enfrentada. Mas que utilidade pode ter para alguém, neste mundo, viver com o cadáver de um amor morto? É uma tarefa difícil trair os outros para não trair a si mesmo. Talvez a gente pudesse tentar convencer a pessoa de que ela ainda é desejável. E enquanto isso o sujeito se transforma no míope Swann do Proust, o Swann que se rebaixa, abrindo a correspondência de Odette, espionando a casa dela e passando todas as noites na casa horrorosa dos Verdurin. O ciúme sobrevive ao desejo e Swann usa aquela medonha mulher vazia para encher de excremento a própria boca.”

Harry disse: “Posso lhe perguntar o que deixou o senhor tão ácido? Há uma energia em seus olhos”.

“Você me vê. Sim, estou começando a escrever bem. Quero fazer algo sobre o envelhecimento. Escrever é um prazer sem complicações e a única coisa em que sou bom.”

Mamoon tinha sido infeliz boa parte do tempo; na verdade, poucas vezes havia experimentando algum contentamento ou estado inteiramente alegre. Como o mundo era o que era, só um tolo passaria o dia todo assobiando. Ele não achava que o mundo tinha importância, exceto quando ele o tornava penoso “para os outros”. O que Mamoon queria era ter sido criativo e não ter causado mais danos além do necessário, embora muitas vezes algum dano fosse necessário, como a guerra e o assassinato.

Harry tocou no braço dele. “O senhor é um homem de sorte. No fim da vida, encontrou alguém que admira e ama o senhor e que mal vê a hora de poder encontrá-lo de novo a cada manhã.”

“É mesmo? Quem?”

Harry pigarreou. “Liana.”

Mamoon passou a falar de renovação. Sempre havia escrito de maneira intuitiva uma coisa se desdobrava em outra e esse era o motivo por que ele achava difícil explicar sua arte. Agora queria ser mais consciente do que fazia, de como planejava seu material. Aquela nova abordagem o estimulava, o que, assim ele acreditava, garantiria emoção para o leitor. O livro curto que Mamoon começara a escrever era, mesmo na sua idade, uma nova direção. Tinha feito muitas entrevistas, mas aquilo era diferente: conversas entre gerações, uma pessoa mais velha e outra mais jovem. Ele ainda não tinha definido bem a linha; faltava um componente essencial de intimidade.

Não que ele tivesse alguma ideia de que aquilo poderia interessar ao público. O mercado havia mudado; hoje em dia havia mais escritores do que leitores. Todo mundo falava ao mesmo tempo e ninguém escutava, como num manicômio. Os únicos livros que as pessoas liam eram livros de dieta, de culinária ou de exercícios físicos. As pessoas não queriam melhorar o mundo, só queriam corpos melhores. “Mas vou dar o meu recado e, como ele ainda não está pronto, será publicado depois do seu livro sobre mim. Quero sobreviver a você pelo menos nesse sentido.” Então Harry olhou para seu relógio de pulso. “Mas você está inquieto. Por acaso estou atrasando sua próxima dose de ecstasy?”

“Eu não queria pegar o congestionamento.”

“Vocês vão para Londres?”

“Acho que vamos embora de tardinha.”

“Por que ninguém me avisa de nada?”

Mamoon concluiu a conversa rapidamente, despedindo-se de Harry com um aceno de mão. Gritou chamando Julia e disse a ela que levasse um chá a seu escritório imediatamente e fosse buscar Alice no jardim. Disse que eles teriam “discussões”. Julia explicou a Alice o que Mamoon tinha pedido e depois foi visitar Lucy.

Em pouco tempo, a casa ficou em silêncio. Harry viu que estava “na hora” e, no entanto, ele não tinha terminado. Procurou Ruth e chamou seu nome. Harry encontrou-a, enfim, no corredor de cima, carregando toalhas. “Você podia falar comigo, por favor?”, disse ele. Ruth baixou as toalhas. Ela sentiu medo, como se naquele momento seus pecados fossem ser postos a nu. “A respeito de tudo”, prosseguiu Harry. “Posso levar você para algum lugar aqui perto?”

Ruth ficou pálida e uniu as mãos trêmulas em posição de prece. Mas fez que sim com a cabeça e saiu depressa da casa, à frente de Harry, como se tivesse medo de ser pega em flagrante. Ele a levou de carro a uma casa de chá próxima dali.

Harry preparou o gravador e o caderno, pediu que Ruth falasse sobre Mamoon e, como ela não dizia nada, entregou-lhe uma nota de cinquenta libras.

“Ninguém nunca me perguntou nada antes”, disse ela. “Eu já estava pensando: será que esse tal de Harry é mesmo um sujeito inteligente, se ele não procura a pessoa mais óbvia, aquela que viu tudo?”

“Desde o primeiro dia, por favor”, disse ele. “Como vocês se conheceram?”

A conversa prosseguiu até Ruth emergir sem segredo nenhum. Ela havia cuidado de Peggy; tinha cuidado de Mamoon, em seu desespero. Ele havia dormido com ela duas vezes, depois que ela foi para a cama dele e Mamoon não a expulsou. “Ele não podia me amar”, disse Ruth, “mas eu estava celibatária, em termos de prazer e de sentimento. Mas você não tem a menor ideia do que é o fracasso ou do que é não ter nada.”

Tempos depois, a nova noiva, Liana, apareceu no jardim. Ruth sabia que, se quisesse manter o emprego, precisava ficar de boca fechada e desfazer as malas de Liana. Ruth sabia que, agora, as mulheres tinham carreiras e “toda essa história”, mas ela mesma jamais conseguira subir na vida. Estava no mesmo lugar onde sempre estivera, se não em uma posição ainda pior, e sem dúvida também estava mais velha; os negros tinham mais oportunidades, os somalianos conseguiam moradias melhores: estavam sentando em almofadas douradas, comiam caviar com colher de platina. Para ela e sua classe, nada havia melhorado e Ruth gostava de tomar uns goles, só isso.

Enquanto Harry guardava suas anotações, Ruth perguntou: “Eu vou mesmo aparecer no livro?”.

“Claro.”

Ela bateu palmas. “E você vai escrever que ele me amou todo aquele tempo?”

“Vocês dois não chegaram a ser amantes, Ruth. Ele foi embora para a Europa.”

“Exatamente, porque eu ficava dizendo para ele que Peggy até podia ser a melhor pessoa do mundo para se conversar, mas ela, durante anos, tinha sido uma vampira, bebia o sangue da vida de Mamoon e lhe dava motivos de queixas e de culpa. E em certas manhãs, depois da morte dela, Mamoon ficava tão sombrio que eu tinha medo que ele saísse para se enforcar no celeiro. Eu achava que ia topar com ele morto. Então ele foi embora. E depois Liana foi se infiltrando e o obrigou a se afastar de nós para sempre.” Ruth se inclinou para Harry e sibilou em seu ouvido: “Ele se arrepende disso. Para mim, no início, foi a melhor época. Aquelas recordações são meu ponto alto. Ele sabe que poderia ter sido feliz só conosco, a família que o adorava. Sei que ele ainda nos ama e nos quer. Talvez Liana devesse sofrer um acidente”. Ruth segurou as mãos de Harry do outro lado da mesa: “Vai ter fotos? Se eu achar alguma, de Mamoon e de todos nós juntos no jardim, tão felizes, você promete que vai pôr no livro? Será que Liana vai tentar impedir?”.

“Vamos ver”, disse Harry.

Alice mandou uma mensagem pelo celular, sugerindo que ela e Harry ficassem mais uma noite lá, pois ela não queria dirigir debaixo da tempestade que estava prevista. Harry não tinha muita vontade de ficar, mas também não achava que seria um problema, pois poderia começar a redigir as informações dadas por Ruth. Levou Ruth para casa; ela estava chorando e Harry ajudou-a a entrar e a ser recebida por Scott. “Você me deixou vazia”, Ruth se lamentou. “Perdi minhas batalhas com a vida, não foi? Quem vai cuidar de mim na velhice?”

Quando Harry saiu do carro, no jardim, ficou parado um instante. Ouviu uma voz exaltada: Liana. A réplica de Mamoon veio a seguir, e havia fúria no tom áspero dele. Harry teve certeza de que vários objetos estavam sendo espatifados. Correu para o outro lado e viu a porta de Mamoon aberta, o que era bastante incomum; Alice parecia ter recuado para fora e para a chuva, com a mão na boca.

Lá dentro, Liana estava de pé junto à mesa de trabalho de Mamoon. Já havia derrubado taças de vinho sujas, copos cheios de canetas, CDs e jornais de cima da mesa, ao mesmo tempo que acusava Mamoon, com toda a energia, de ser um sacana e um filho da puta.

Mamoon disse: “Você está me matando com a sua destrutividade!”.

“Você parece estar forte o suficiente para divertir uma garota aqui dentro!”

“Divertir? Estamos falando de questões importantes sobre a minha obra e sobre a vida dela.”

Liana pegou a bengala com castão em forma de cabeça de coelho e se aproximou do marido. “Por que é que eu não pego sua bengala e martelo umas palavras bem bonitas nessa sua testa? Eu ouvi vocês dois rindo juntos, lá da cozinha, enquanto eu fazia a sua sopa predileta de cenoura branca picante! Você desaparece o dia inteiro para ser artista e me deixa sozinha! Você me proíbe de entrar no seu escritório. E aí deixa ela entrar.”

“Ela é como uma filha para mim… para nós dois! Você sabe muito bem disso.”

“Seu homem sórdido, o que é que há de errado comigo? Por que não posso ser sua filha? E você ainda por cima me condena por ter falado com Harry!”

“Condeno?”

“Você me acusa de me insinuar como uma vendedora de peixes e de inflar meus peitos pneumaticamente! Depois, de propósito e de forma cruel, me nega a coisa que eu mais quero neste mundo!”

“O quê, Liana? Por favor, você sabe que faço qualquer coisa por você!”

“Uma casa em Chelsea! Você é pão-duro demais para gastar esse dinheiro.”

“Não faça minha pressão subir, senão vou estapear sua cara gorda, sua piranha ignorante, e despachar sua aura direto para a sarjeta.”

“Você não é homem para isso.”

“Saia daqui!”

“O que foi que você disse?”

“Não, não, Liana, desculpe, você sabe que, apesar de eu achar você irritante, amo você”, disse Mamoon, erguendo os braços e esticando-os por cima da mesa na direção de Liana.

“Se me ama mesmo”, disse ela, enquanto se afastava dele, “vai concordar com o seguinte. Há algumas semanas eu estava dançando com Alice ao som de Abba no celeiro. Julia era a DJ. Estávamos numa espécie de transe. Tive um lampejo de inspiração. Vou escrever um livro de autoajuda.”

Mamoon se mostrou perplexo, mas, nas circunstâncias, só podia continuar ouvindo.

Liana disse: “Vai ser sobre mim, a minha história”.

“E o que é exatamente a sua história?”

“Você não sabe?” Como Mamoon balançou a cabeça de um lado para o outro, Liana se debruçou sobre a mesa, na direção dele. “Uma mulher atraente e de sangue quente captura o coração de uma usina de energia artística, faz renascer sua carreira, enquanto lida com o ego intratável dele e o ajuda a se tornar um monumento, ao mesmo tempo que administra uma propriedade rural.”

Ele disse: “A história que você me descreveu é um milagre e sua heroína, muito claramente, é uma parasita. Onde está a autoajuda nessa história?”.

“Vai conter bons conselhos sobre como seduzir um homem e levá-lo a se casar com você.”

“É verdade. Mais que tudo, você me usou para obter dinheiro.”

“Quem dera eu tivesse feito isso”, disse Liana. “Foi o que as pessoas me recomendaram.” Liana virou-se para Harry. “Você não me disse que o livro era uma ótima estreia, Harry, quando eu lhe mostrei o texto algumas semanas atrás?”

“Bem, eu disse, mas só consegui dar uma olhada muito rápida, Liana”, começou Harry.

Mamoon disse: “Então é mesmo verdade que sua mancha fétida se alastra por uma extensão tão vasta assim?”.

Liana disse: “Você me deprime, Mamoon. Afinal, o que você quer de verdade?”. Ela olhava para a mesa de Mamoon, assim como Harry, que notou uma revista aberta, com as páginas seguras pelo peso de duas pedras colhidas na praia. Ao lado, estavam algumas páginas brancas com os garranchos de Mamoon. “Me dê este diário para eu ler”, disse Liana. “Vamos ler isso juntos. Não temos segredos entre nós, não é?”

Ele grunhiu uma risada. Mas não durou muito. Liana pegou uma xícara cheia de chá, que Julia tinha servido o dia inteiro para Mamoon, sem parar, e derramou um pouquinho em cima da revista e o resto em cima das folhas escritas. Eles viram as palavras do escritor subitamente desaparecerem numa poça sobre a mesa e escorrerem em gotas para o chão.

Liana encostou o quadril na mesa e tentou empurrá-la para o lado. “Não sou sua fã e não quero ser apenas uma esposa parasita que fica fazendo compras! Vou me instalar aqui, vou ficar do seu lado. Você pode me orientar sobre a escolha das palavras mais bonitas.”

Mamoon disse: “É ridículo nós dois lado a lado, como crianças na escola. Nunca mais vou entrar aqui”.

“Onde quer que você esteja, eu estarei do seu lado.”

“Então vou me matar.”

Ela deu uma risada frenética. “Você não tem coragem.”

“Para me livrar de você, eu tenho, sim.”

Liana pegou uma pedra que ele usava como peso de papel. “Por que é que eu não taco isto aqui no meio da sua cara?”

E ela chegou mesmo a jogar a pedra, e com alguma força; Mamoon ergueu a mão e desviou a pedra. Se ele não tivesse rido, Liana não teria dado um passo à frente e acertado um tapa na cara dele. Um dos anéis de Liana deve ter atingido Mamoon, pois de repente surgiu um risco de sangue em seu rosto e seu grito ressoou quando se deu conta de que tinha sido golpeado.

Liana fez isso e foi embora, saiu do celeiro correndo na direção da casa. Mamoon foi mancando atrás dela, com o lenço no rosto, e com Alice e Harry atrás dele.

Dentro de casa, Liana voou escada acima, aos gritos: “Me deixem em paz, seus impostores! Se alguém vier atrás de mim, eu me mato!”.