Quatro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Harry estava à espera de uma brecha. Ia acontecer, ele sabia. Precisava ser paciente.

Enquanto isso, na semana seguinte, estabeleceu a rotina de que necessitava: ler diários, cartas e papéis no celeiro até uma da tarde, quando Liana o chamaria para o almoço.

Então um dia ele viu Mamoon com um moletom de ginástica, caminhando para o jardim com seus pesos. Harry se deu conta de que cometeria um erro se acreditasse por um só instante que a vaidade de Mamoon, ou seu espírito competitivo, havia declinado com a idade. No meio da tarde, depois de ter ocorrido a Harry convidar Mamoon para se alongar, dar uma corridinha, exercitar-se um pouco e fazer um relaxamento com ele, entendeu que isso seria uma oportunidade para ganhar a confiança do velho. Mamoon adorava usar os mais variados trajes esportivos, era um aficionado do kickboxing e aprendera alguns movimentos de capoeira. “Se, ou melhor, quando tudo o mais der errado”, bufou Mamoon, “você pelo menos vai poder ser meu personal trainer.”

No início da noite, Harry conversava com Liana e a ajudava a fazer o jantar antes de redigir suas anotações. Mais tarde, quando já não conseguia se concentrar, se tornava inquieto. Às vezes ia comer sozinho num restaurante da região, com um livro à sua frente. Se estivesse com sorte, Mamoon esbravejava seu nome e o convidava para ir à sala de televisão. Mamoon tinha orgulho da sua televisão, que chamava de “Pakistani”, uma vez que era imensamente desproporcional ao ambiente e característica, ele gostava de acreditar, dos imigrantes carentes que se punham de cócoras diante do aparelho, à semelhança dos primitivos contemplando o deslocamento de Vênus. Rob havia preparado Harry para essas sessões de uísque, dizendo que era diante de sua televisão que Mamoon se revelava mais autêntico. Durante a maior parte da sua vida adulta, Mamoon tinha sido um tipo único de radical, não medindo esforços para zombar e inverter a correção política, rebelar-se contra os contestadores da moda na sua época, hippies, feministas, antirracistas, revolucionários, qualquer pessoa decente, bondosa ou que tomasse o lado da igualdade e da diversidade. Por um breve período, isso foi uma ideia incomum e até espirituosa. Agora Mamoon estava de saco cheio dessa pose, como de resto de tudo o mais. Apenas de vez em quando arriscava uma provocação: “Olhem só pra esse preto nojento e vagabundo”, disse, quando, sob as instruções de Liana, foram todos de carro à cidade para comprar um queijo feito na região, e Mamoon avistou o que parecia ser um tímido mas entusiasmado estudante africano em visita às igrejas locais. “Saiu de casa para assaltar, estuprar e mutilar a boceta de alguma mulher branca, pode apostar.” Mas Harry sentia que Mamoon falava da boca para fora e que preferia fazer perguntas simples sobre coisas que o intrigavam de verdade. “Diga-me, Harry, o que vem a ser exatamente uma happy hour? O que é lap dance e o programa X Factor? O que significa vifi?”

Vifi? Ah, wi-fi.”

Mamoon adorava o críquete indiano e até o paquistanês. Quando chegou à Grã-Bretanha, amava ver partidas de críquete inglês em campos do interior. Segunda-feira de manhã, tempo frio, chuvinha fina, um trem partia de Londres e lá ia ele sentado num banco com uma garrafa térmica e um sanduíche de queijo para assistir a uma partida obscura qualquer. Uma das paredes de sua biblioteca estava coberta de fotografias de jogadores do pós-guerra. Num lugar de honra, porém, Mamoon pusera uma fotografia emoldurada do time de críquete das Antilhas, ou Índia Ocidental, de 1963. Rob dissera para Harry não se esquecer de contar a Mamoon que seu tio havia sido capitão do time de Surrey e o orientara a amaciar Mamoon sempre lhe oferecendo fofocas ou DVDs de seus heróis do críquete, Rohan Kanhai, Gary Sobers, Wes Hall e, de uma fase posterior, Malcom Marshall, Gordon Greenidge, Alvin Kallicharran e Vivian Richards. Harry não se incomodava em ver com Mamoon repetidas vezes aquelas gravações e nem mesmo em ouvi-lo dizer: “Ah, que bela retomada, sim senhor”, como qualquer torcedor inglês da velha guarda. O esporte, algo imprevisível e existencial, onde os homens são postos verdadeiramente à prova na hora, era mais importante do que a arte, que era uma coisa “mole”. Jogar boliche no Lord’s, agarrar um pênalti em Wembley, jogar em Wimbledon, isso era “o definitivo”, como dizia Mamoon. “Se a pessoa fez um lance como esse no Lord’s, pode morrer feliz, não acha? Sou um pobre fornecedor de entretenimento, quando comparado com isso.”

Mamoon tornava-se falante e animado quando via um jogo de futebol, e gostava que Harry ficasse a seu lado, tomando uísque e discutindo sobre os jogadores e os dirigentes. “Ver a Copa do Mundo com Nietzsche”, dizia Harry, quando se deu conta de que aprendia mais sobre Mamoon ouvindo suas opiniões sobre o futuro do Manchester City do que o entrevistando sobre seus livros e suas ideias a respeito do colonialismo. As perguntas de Harry, no início, eram delicadas e genéricas, e Mamoon não fazia a menor tentativa de disfarçar o tédio. “Quando você descobriu que era escritor?” “Não descobri isso até agora.” “Você amava seu pai?” “Demais. Fui mais um filho do que um homem.” “Quando se tornou um homem?” Se uma pergunta parecia impertinente ou o irritava, Mamoon não respondia nada; apenas olhava fixamente para o vazio, à espera de que Harry se desse conta da futilidade da interrogação.

Sentado ao lado do grande homem, Harry ruminava pensamentos sobre os escritores que crescera adorando. Forster, fazendo em pedaços o colonialismo, absurdo dos absurdos; um Orwell sério; Graham Greene, errático, correndo atrás de encrenca e de morte; Evelyn Waugh, que via quase tudo, e odiava o que via. Mamoon era um dos últimos desse tipo, e de mérito equiparável, na opinião de Harry. E Harry estava na casa dele; andava a seu lado e discutia a sério com ele; ia escrever sobre a vida dele. Seus nomes ficariam unidos para sempre; ele teria uma diminuta fatia do poder do velho. Mas a biografia havia aprendido muito com a imprensa de escândalos; tinha sido sugada na direção da imundície, um processo de perda de qualquer ilusão. Desmascarar era o grande lance, deixando apenas ossos nus. Você acha que gosta desse escritor? Pois veja como ele maltratou a esposa, os filhos e as amantes. Ele até gostava de homens! Tenha ódio dele, tenha ódio de sua obra de qualquer lado que a gente olhe o sujeito, está tudo acabado. A questão agora era outra: o que podemos perdoar nos outros? Até onde eles podem ir antes que nossa fé neles vire pó?

Harry tinha amado a maior parte das artes tempo suficiente para saber que os artistas devem ser perdoados de faltas que levariam a população comum a ser condenada. O artista era um pioneiro, um desbravador destemido, aquele que falava, que era objeto de gratidão, e que pagava o preço. Os artistas estavam autorizados, e a rigor eram até incentivados, a levar vidas mais libidinosas, em benefício dos demais, que tinham, por necessidade, de trancar pra fora sua jouissance, assim que entravam no ambiente de trabalho. Assim que Harry começou a ler o material que encontrou no celeiro, se deu conta de que estava pensando na questão que Rob havia levantado. O que ele ia fazer com Mamoon? Quem, agora, pode pensar em Larkin sem levar em conta sua afeição pela bunda de alunas adolescentes e seu ódio paranoico dos negros? “Estou ouvindo vermes caribenhos desprezíveis tagarelando sobre mim no subsolo…” Ou os coitos de Eric Gill com mais ou menos todos os membros de sua família, inclusive o cachorro? Proust torturava ratazanas e doou os móveis da família a bordéis; Dickens emparedou viva a esposa e a impedia de ver os filhos; Lilian Hellman mentia. Enquanto Sartre morava com a mãe, Simone de Beauvoir, como uma cafetina, arranjava garotinhas para ele; Sartre sentia inveja de Camus antes de espinafrá-lo. John Cheever vadiava pelos banheiros, as narinas bem abertas, antes de voltar para a esposa. P. G. Wodehouse fazia programas de rádio para os nazistas; Mailer apunhalou sua segunda mulher. Duas amantes de Ted Hughes se suicidaram. E quanto a Styron, Salinger, Saroyan… A literatura era um campo de extermínio; nunca nenhuma pessoa decente empunhou uma pena. Jack Nicholson em O iluminado ofereceu a representação correta de um escritor. Se Harry mostrasse apenas um homem decente, em vez de um mercenário, ninguém acreditaria. Ninguém queria aquilo: não levaria a nenhum lugar próximo do ódio, do ardor e da paixão de um verdadeiro artista.

Harry queria que Mamoon soubesse que ele iria “honrá-lo e respeitá-lo” porque amava sua obra. Mamoon podia até ser maldoso, beberrão e sórdido às vezes, como eram todos os homens e todas as mulheres, mas o importante é que a lascívia não o desviasse, ou não desviasse seus leitores, da lição cada vez mais importante de que a grande arte, as melhores palavras e as boas frases eram relevantes e cada vez mais relevantes num mundo degradado e censurador, um mundo onde a paixão pela ignorância havia aumentado por meio da religião. As palavras eram a ponte para a realidade; sem elas só existia o caos. Palavras ruins podiam nos envenenar e arruinar nossa vida, disse Mamoon um dia; e as palavras certas podiam recolocar a realidade em foco. A loucura de escrever era o antídoto para a loucura verdadeira. As pessoas admiravam a Grã-Bretanha só por causa de sua literatura; a linda ilhazinha que estava afundando era um armazém de gênios, onde as melhores palavras eram guardadas, e feitas e refeitas.

Se Harry se sentia culpado de tentar ver por dentro a vida íntima de um homem respeitável que o havia convidado para se hospedar em sua casa, não era porque Mamoon, com sua pretensão, suscetibilidade e pompa um homem formado e ativo antes de o império de Murdoch modificar para sempre nossas ideias sobre a “vida privada” , estivesse acima de tais trivialidades.

Mas trivialidades fazem um homem e, quando as encontrava, Harry levava e lia para Mamoon resenhas ruins de livros escritos por contemporâneos de Mamoon, seus amigos ou conhecidos, sabendo que ele não conseguiria reprimir uma risadinha e um ronronar de prazer. Então Harry aprendeu, durante seus passeios pelas trilhas, junto com os cachorros, que Mamoon adorava fofoca, sobretudo quando aviltante. Harry amaldiçoou a si mesmo por não ter notado, em suas leituras, que a humilhação era a pedra de toque do caráter de Mamoon; era de onde ele tinha vindo e onde continuava a encontrar seu prazer. Seu pai o havia humilhado o tempo todo, guiando-o rumo à excelência e a uma vida de fúria um tanto reprimida, e Mamoon jamais renunciava a seus horríveis prazeres. Ele parecia não corresponder aos beijos ou às carícias da esposa, nem mesmo às tentativas dela de segurar sua mão, porém se mostrava fascinado quando havia contatos proibidos entre outras pessoas. Antes de se enfurnar no interior, Harry teve de meter a cara na fofocracia sobre agentes, editores e escritores, a fim de fazer o maior estoque possível de histórias de infidelidades, plágios, rixas literárias e mistificação, transformismo, punhaladas nas costas, homossexualidade e, acima de tudo, lesbianismo. No momento, Mamoon se mostrava fascinado por histórias de mulheres antes “normais”, arrastadas para o “outro lado” por “les Sapphics”, que, ele parecia acreditar, possuíam poderes “mesmerizantes”.

“Qualquer história de lésbica para me animar!”, dizia ele, quando Harry chegava de Londres. “Muito velcro colado esta semana? Puseram pilhas novas em seus vibradores? Vamos fazer uma caminhada pelo campo e discutir o assunto mais extensamente.”

Harry começara a se sentir como uma Scheherazade de Bloomsbury. Mas tinha aprendido que a definição de lesbianismo para Mamoon era quase não discriminatória: referia-se a todas as escritoras como lésbicas, inclusive Jane Austen, Charlotte Brontë e Sylvia Plath. “Hoje vou para a cama com uma lésbica”, disse, pondo debaixo do braço um livro de Jane Austen e subindo para o seu quarto no primeiro andar.

“Pelo menos o senhor vai se divertir”, resmungou Harry.

“Desculpe ser trivial”, disse Mamoon. “Expliquei a Rob que não passo de um homem vazio. O romancista é qualquer coisa trapaceiro, vigarista, impostor: como quiser. Mas, acima de tudo, é um sedutor.”

“O senhor não é fascinado pela sedução?”

“Mas não é exatamente isso e mais nada que vem a ser a arte?”, disse Mamoon. “Vire, mostre-nos o que você tem, é isso que seus leitores desejam.”

Mesmo quando Harry aparecia com muita fofoca, Mamoon raramente ficava acordado depois das nove da noite, e era a partir desse horário que a vingança prevista por Alice podemos chamá-la de preço da verdade começava a acontecer.

Harry estava tendo experiências peculiares quando ficava sozinho em seu quarto.

Os empregados não tinham incluído em sua programação de tarefas a limpeza do quarto de Harry. Talvez Mamoon não tivesse incentivado os empregados a fazer isso; ele não gostava de hóspedes e eram poucos os que apareciam. No quarto de Harry havia moscas mortas e poeira; a televisão não funcionava tudo o que Harry podia fazer era jogar Fifa e Grand Theft Auto na televisão, antes de ver filmes em seu computador, até o sono chegar. Sempre que podia, ia de carro a Londres a fim de ver Alice e os amigos deles. Talvez a grande proximidade com seu tema, e com a zona rural, estivesse deixando Harry muito para baixo.

Harry tinha sido criado com seus irmãos gêmeos inteligentes e esportivos na zona oeste de Londres, um deles hoje era professor universitário de filosofia e o outro, restaurador. À diferença de muitos de seus amigos, os pais de Harry não tinham casa de campo, preferiam passar os fins de semana em galerias, exposições e no teatro, faziam piqueniques em Chiswick House ou davam festas no jardim para pessoas a quem os garotos se referiam desdenhosamente como “intelectuais”, que conversavam sobre feminismo, política e Lacan. A ideia que aquela gente tinha de uma boa farra era um programa duplo de filmes do Godard no Instituto de Artes Contemporâneas. O pai de Harry, que não parava de pensar na psique e, infelizmente, de conversar sobre o assunto sendo muito versado nos problemas filosóficos da psiquiatria e das “noções de normalidade” , acreditava que no campo não havia ninguém com quem conversar e que as pessoas que moravam lá eram tão bovinas quanto os animais que criavam.

Mas não era só aquela herdada aversão à zona rural que estava deixando Harry descontente. Depois de dez dias, por volta das três da manhã, ele foi acordado por medonhos berros e uivos masculinos, como se alguém estivesse sendo assassinado. No café da manhã, Liana perguntou: “Está exausto?”.

“E como.”

Ela serviu ovos para Harry e em seguida cravou os dedos nos ombros dele, como se estivesse procurando moedas perdidas em seus músculos. “Você estava acordado? Os gritos homicidas começaram outra vez. Aconteceu nas três últimas noites, mas você não ouviu. Suas perguntas estão condenando Mamoon a vigílias horrendas.”

“Eu mal comecei a fazer perguntas. Se eu pergunto se ele quer leite no chá, ele sai correndo para as montanhas.”

“Mamoon é um homem experiente com temores infantis. Não me conta o que vê nesses sonhos, mas quando acorda, pouco depois de pegar no sono, grita que nem um bebê. Outras vezes, late como um cachorro. Até os bichos têm insônia, e se tornam suicidas. Por favor, jure que não vai mencionar isso no livro e nos criar constrangimentos em Londres, Bombaim e Roma.”

Harry respondeu que não podia enfiar no livro qualquer piscar de olho, arroto e gesticulação. Segurou a mão de Liana, quando se virou para encará-la. “Mas, Liana, sem dúvida você sabe que a indiscrição é a essência da biografia, não é? Você leria um retrato santo de um santo?”

“Não acredito que você seja apenas um mercador sórdido, Harry. O que as pessoas desejam é elevação, conhecer o caminho para a grandeza, para que possam segui-lo. Graças a Deus estou aqui para educar você. E quando o livro ficar pronto você vai me mostrar e eu vou cortar toda e qualquer negligência com meu lápis bem apontado.”

Ele riu. “Você não vai fazer isso, Liana.”

“Rob aceitou. Senão o Mamoon vai cortar os bagos dele. Quem você acha que é? A filha de Joan Crawford?”

“Não tenho informação de que Rob tenha feito esse tipo de acordo com você.”

“E o que isso tem a ver com você?”

“Como assim?”

“Quando a gente contrata um decorador para deixar as paredes verdes, a gente não o contrata para ele dizer que não gosta de verde. A gente o contrata para deixar a parede verde e ficar de bico calado.”

“Aqui eu sou só o decorador?”

“Você faz o trabalho de escritório. Nós fazemos o resto. Café?”

Ele já tinha fechado o acordo para escrever o livro. O que mais ela podia obrigá-lo a jurar que ia omitir? Iria desafiar Liana? Se ele sabia que ia ter de fazer isso, por que não dizer logo de uma vez a ela e deixar tudo claro?

Isso era o de menos. Harry telefonou para Rob para contar como as coisas estavam andando, como já estava se sentindo intimidado e também para reclamar dos outros barulhos que não o deixavam dormir direito a vida selvagem.

Rob esbravejou. “Pegue uma espingarda e dispare umas rajadas pela janela. Quando as cabras sacarem que você não está de brincadeira, vão se retirar para os seus abrigos.”

“Não são cabras.”

“Cavalos?”

“São pássaros, acho. O quarto é frio, a luz não acende, a janela não fecha e, lá pelas quatro da manhã, esses bichos sei lá o que são, morcegos, gansos, patos, peixes, porcos; uma boa parte da arca de Noé começam com uma música atroz de discoteca animal. É como estar numa prisão infernal!”

“Seu fracote de merda, vá reclamar com o seu agente, não comigo. Graças a Deus não chamei você para o trabalho sobre Freya Stark, para refazer as caminhadas dela por terras africanas ou sei lá por onde a velhota gostava de perambular.”

Harry disse: “É verdade que você deu à Liana o controle criativo do meu livro?”.

Rob desligou o telefone.

Antes de se retirar para seu quarto, Harry passou a caminhar pelo jardim fumando um baseado, para ajudá-lo a dormir. Depois deitava na cama e ficava pensando em Peggy, com um caderno e uma caneta ao lado. Era assim que costumava ter suas ideias. Mas frases escritas nas “desgraças”, como ele chamava os diários, começavam a girar em sua cabeça. Certa noite, depois de estar ali por dez dias, esses sussurros pareciam ter ganhado vida própria ou então provir de outra fonte, uma zoeira da qual ele não conseguia se desligar.

Harry se levantou, andou aos tropeções para o outro lado do quarto e acendeu a luz pálida. Lá estava ela, de repente: Peggy empoleirada no pé da cama, perigosamente magra, exaurida, mas furiosamente enérgica e radiante.

“O que vai dizer sobre mim, Harry?”, perguntou. “Serei definida por meu lado amargo? Não existe em mim nada mais do que isso? E quem é você para julgar?”

Peggy tinha sido uma garota articulada, discreta, culta, com pais alcoólatras ricos que lecionavam francês em escolas particulares. Depois da universidade, ela trabalhou para uma pequena revista literária e foi apresentada a Mamoon pelo editor, num dos pubs de Bloomsbury que ele frequentava. Na opinião de Harry, Mamoon, cujo pai professor de escola o havia preparado com afinco para ganhar bolsas de estudo, ficou traumatizado ao ser mandado para uma escola inglesa de elite e depois para Oxford. Não havia um só momento em que não experimentasse um mal-estar e se sentisse deslocado entre os grã-finos britânicos de quem seu pai tanto queria que ele se aproximasse, embora o pai, ao mesmo tempo, afirmasse que odiava a Inglaterra. Em seu primeiro encontro com Peggy, sentiu-se constrangido ao entrar num táxi preto, ao lado do motorista, tentando achar o assento no banco da frente, até que o taxista, furioso, o jogou para fora do carro.

Na Londres fria e fuliginosa, cidade repleta de gente que achava os indianos desajeitados e inferiores, enquanto a rapaziada branca e sensual se vestia como Syd Barrett, Peggy ajudou Mamoon a abrir caminho pela raça superior de Belgravia, para quem ele não passava de um branco que dera errado e que não sabia lidar com os talheres, e o persuadiu a encontrar-se com os amigos dela do mundo literário. Metade das pessoas, ele seduziu: era simpático e acharam que tinha classe e um senso de humor discreto. A outra metade se sentiu ofendida com sua arrogância. Mas seu pai o queria de volta e escrevia o tempo todo, pedindo que voltasse. Ele teria voltado; não via nenhum futuro ali. Foi Peggy quem o persuadiu a ficar em Londres e fazer carreira como escritor, uma das escolhas mais difíceis que um homem como ele podia ter feito. Quando ele não estava ganhando o suficiente com seu trabalho em Londres, foi ela que implorou aos pais que emprestassem dinheiro para comprarem um chalé em Somerset.

Como acontece com os casais no início, os dois andavam juntos o tempo todo, explorando a nova vizinhança, andando de carro pelo resto da região, visitando sebos. Depois Mamoon levou Peggy para passar alguns meses na Índia. Enquanto isso, intelectualmente, ela nunca o deixava relaxar; chegava até a acusá-lo de ter uma mente preguiçosa, de “playboy”, o que o deixava mordido e o levava a retrucar e a se defender. Ele começou a pensar de verdade.

Foi no final da década de 1960, na biblioteca que ela começou a criar na casa e que ele continuou a desenvolver —, que Mamoon passou a ler furiosamente, a “tirar o atraso”. Ela era uma europeia, uma internacionalista, que adorava Miles Davis e Ionesco; aprenderam a apreciar vinho e ouviam Boulez, enquanto fumavam cigarros Gauloises. A exemplo de uma porção de intelectuais ingleses, ela estava exausta e frustrada com o isolacionismo inglês. Adorava D. H. Lawrence, mas por outro lado a visão estabelecida sobre a escrita era para ela estéril e pedante: uma conversa vazia sobre “crítica literária”, “o cânone” e Leavis, e depois, mais tarde, sobre marxismo. Harry estava percebendo que Peggy havia formado Mamoon tanto quanto os pais dele, e seu desdém pelos sistemas políticos e religiosos totalitários sobretudo marxistas , herdado do espírito libertário de Peggy dos anos 60, havia permanecido intacto. No final, ele acabou esgotando Peggy, era o que se pensava, e quis cair fora; ela quis ficar. Depois, durante anos, os dois simplesmente continuaram “em suspenso”.

Assim, se dirigindo ao fantasma, Harry disse: “Serei justo e compreensivo. Nada de acusações nem de desculpas. Apenas os fatos e uma voz amistosa. Você falou por si mesma nos diários. Foi clara. Agora pode ir embora, Peggy, por favor. Não precisa se preocupar. Não trabalho para jornais”.

“Mas, Harry, faz um bom tempo que espero pra te ver”, disse Peggy. “Não está me reconhecendo?”

“Você não é Peggy?”

“Olhe para mim bem de perto, se puder suportar.”

Quando reconheceu sua mãe e a ouviu dizer: “Oh, Harry, é tão bom ver você. Quero saber todos os detalhes da sua vida desde que parti. Foi horrível? Você tem passado bem? Podemos conversar agora?”, ele saltou da cama, disparou pelo corredor sem fazer barulho, passou pelos quartos onde Liana e Mamoon se recolhiam e saiu da casa para o ar frio da noite.

No jardim, ficou sentado, impotente, dentro do 4x4 da família, pegou no porta-luvas o cachecol do irmão mais velho, enrolou no pescoço e se abraçou a ele. Seus irmãos, por força dos pedidos insistentes do pai, tinham convencido Harry a vender suas motocicletas, o que ele só fez, de fato, quando eles prometeram substituir suas motos pelo empréstimo daquele veículo.

E estava se revelando algo útil. Levou vinte minutos de carro até o pub da aldeia, aonde ainda não tinha ido. Não fazia a menor ideia de como seria recebido ali. Mas precisava ver pessoas que ainda não fossem fantasmas.