Houve uma época em que todos os dias a mãe de Harry acordava cedo para preparar um café da manhã incrementado para ele antes de levá-lo à escola. Quando estavam juntos na cozinha, ela falava por cima do ombro sobre filmes, política, homens, poltergeists, vizinhos, feminismo, sonhos — um fluxo surreal de conversa contínua difícil de acompanhar, do qual, isto estava subentendido, ele era o elo.
Ela o beijava muito ou de repente começava a chorar. Tinha uma risada louca, capaz de assustar, ou de repente dizia: “Você não faz ideia de como eu detesto essa classe média babaca!”. Às vezes, para ilustrar uma ideia, ela encenava uma situação, imitando vozes. Ou então cantava: pop, folk, ópera, boa parte das vezes com um baseado ardendo no cinzeiro. Citava Lautréamont tantas vezes que até hoje Harry recordava as palavras. “Aranhas silenciosas, nojentas/ tecem suas teias no fundo de nosso cérebro.”
Na maioria das noites, ela ia visitar amigas ou ia a festas, ao teatro, ao balé. Aparentemente, odiava o tédio, bem como a tirania da possessividade e do controle. O pai de Harry disse certa vez, com alguma ironia, que para ela a vanguarda da libertação política era a oportunidade sexual. Ela também condenava o marido por não acreditar na ideia da década de 60 de que a loucura conduzia à sabedoria. Para ela, o objetivo da vida não era ser o mais são possível, e achava seu marido um “policial da alma”, pois ele acreditava que seu trabalho era manter as pessoas sãs, assim como outros podiam querer libertar as pessoas da tirania do álcool. Mas isso só servia para torná-las mais sem graça, acreditava ela. Quantas pessoas ela era? Quantas pessoas podíamos ser?
Harry não sabia o que achava de tudo aquilo. Lembrava, porém, que na maioria das noites, no fim da vida, ela se esgueirava para o quarto dele e Harry dormia nos braços da mãe, quase como um jovem amante, até de manhã. Era amor ou loucura? Tempos depois, uma amiga de sua mãe disse: Harry, você se parece muito com ela; tem grande inteligência, é capaz de entender qualquer coisa. Os dois são brilhantes, mas frágeis — e você se sente arrasado ao primeiro empurrãozinho, morto de preocupação e de medo de fracassar.
Quando Harry tinha doze anos, a mãe morreu. Depois que ela partiu, teve a sensação de ter ficado sozinho por dez anos. Precisava se levantar sozinho com o dia ainda escuro, fazer sua comida e ir de bicicleta para a escola, sem que a mãe lhe oferecesse uma pera, cortasse a casca do pão de seu sanduíche ou corresse atrás dele com livros ou com a chuteira que ele havia esquecido. Seus irmãos gêmeos idênticos, quatro anos mais velhos, estavam em Latymer, enquanto ele estudava em St. Paul. Na idade em que os outros meninos tinham podido contar bastante com a presença da mãe, ele se viu forçado, muito prematuramente, a ser independente. E os gêmeos sempre tiveram um ao outro: batiam boca, discutiam e travavam brigas sangrentas em volta da casa, não havendo, contudo, um só momento em que não mantivessem um contato ou rancoroso ou ávido um com outro, quase como num círculo fechado, mas não fechado de todo.
Harry cuidava de si mesmo lendo em seu quarto, enquanto punha para tocar discos e fitas dos irmãos e conversava sem parar com a mãe em sua mente. A família havia se desfeito das roupas dela, mas quando Harry passou a usar o armário da mãe, ainda havia muitos sapatos dela no fundo. Cogitou deitar-se com o ouvido colado ao tapete e falar com os sapatos. Fazia filmes na cabeça em que ela aparecia escolhendo e calçando os sapatos; ele imaginava aonde ela teria ido com cada par, com quem havia se encontrado e sobre o que havia conversado.
Harry se dava conta agora de que a ideia de isolamento que criara sobre si mesmo era só parcialmente verdadeira, um mito que ele havia inventado. Ele não tinha mãe e seu pai em geral estava trabalhando ou cuidando da casa ou com alguma namorada. Mas seus irmãos nunca foram tímidos ou desajeitados. Na escola, eram astros do rúgbi e do futebol, ganhavam dinheiro posando de modelos e mais tarde montaram uma banda, a Ha-Ha Fish, que tocava na inauguração de lojas da moda em Carnaby Street e nas bolorentas salas de fundos de pubs em Camden, diante de uma plateia formada por colegas de escola. Eles diziam que, se Harry aprendesse a tocar baixo, poderia se apresentar com eles, e foi o que ele fez.
Uma adolescente com uma massa de cabelo escuro, saia curta, camiseta e meia-calça colante preta abriu a porta de um quarto e viu um menino, mais novo do que ela, sentado na cama e piscando os olhos diante de um livro, enquanto se coçava e se contorcia de ansiedade, um prato de comida intacto ao lado. Os amigos dos irmãos de Harry e suas numerosas amigas viviam na casa deles e, desde o início, o menino foi objeto de muita piedade e atenção das jovens mulheres. Nada como um menino louro sem mãe para fazê-las acudir correndo com beijos, balinhas e muito mais. Quem ia querer abrir mão disso? Os gêmeos começaram a falar do “harém” do pequeno paxá bonitinho, referindo-se às meninas que se mostravam ansiosas para ajudá-lo a fazer a lição de casa, cozinhar para ele, escolher suas roupas, cortar seu cabelo, ir com ele ao cinema, às lojas e acompanhá-lo a outros divertimentos nos fins de semana e feriados.
Uma garota que está começando a sair da casa dos pais e querendo virar adulta pode ser persuadida a atos de amor espantosos. Quando Harry fez treze anos e começou a demorar mais tempo no chuveiro, uma série de garotas se revezavam em turnos para beijar, abraçar e passar a noite com ele. O menino sem mãe detestava dormir sozinho; às vezes, desabava no chão do quarto de um dos irmãos. Logo se deu conta de que muitas garotas eram suscetíveis a seus apelos para que cuidassem dele. Precisava substituir uma única mulher por uma horda de mulheres diferentes. Com catorze anos, ele estava seduzindo mais garotas do que os amadores dos seus irmãos. O pai achava muita graça quando chegava e via a casa toda engrinaldada de meninas em flor. “Meninas de St. Trinian”, ele chamava aquilo, ou então de “O Reino das Garotas Púberes”. O pai deixou bem claro a Harry que, quando ficasse mais velho, ele seria invejado — odiado, melhor dizendo — por seus dons, seu charme e sua naturalidade, e que ele devia esconder suas virtudes, sem, porém, suprimi-las. Harry, na ocasião, não entendeu do que o pai estava falando.
Seu pai possuía uma biblioteca incrível: filosofia, psicologia, ficção, arte. Para Harry, aquilo era o máximo; ali, ele se desenvolveu. Não que deixasse de sentir falta da mãe; ainda continuava zangado com ela, para dizer o mínimo, pois era assim que ela continuava viva e ativa em sua mente. O que Harry não queria era que ela sentasse na ponta da cama, quando ele estava sozinho ali no campo.
Agora, ao volante, passou correndo por ruazinhas sinuosas e depois saiu afobado do carro. Logo estava diante do balcão convidativo de um pub movimentado, e outras pessoas se viravam para ele, o forasteiro, a curiosidade que todo mundo parecia conhecer bem. Pessoas juntaram-se à sua volta. Aparentemente, os moradores do local — fazendeiros e astros do rock envelhecidos que moravam em casarões, e seus fãs, que moravam em casas pequenas — estavam secos para saber novidades sobre “o escritor”.
Era mesmo verdade que Mamoon não tinha amigos? Ele era mesmo cruel com a esposa, e até violento? Era um adorador do diabo? Mais importante: estava mesmo falido? E não era verdade que havia tirado o máximo proveito da região rural que lhe dera as boas-vindas e onde seu talento tivera a chance de florescer? Ele não vivia reclamando de tudo? Será que em algum momento se mostrou suficientemente agradecido?
Nada pode ficar parado enquanto vive na mente dos outros, inclusive, é claro, uma personagem e uma reputação. Não demorava muito, Harry percebia, para uma personalidade se ampliar e inflar, à medida que o tema se tornava aquilo que os outros preferiam que ele fosse. A exemplo da mãe de Harry, Mamoon tinha se projetado além e acima de si mesmo, um processo que o próprio Harry estava agora corrigindo, mas também incentivando, à sua maneira. Então, o que era uma pessoa senão um eu que viajava entre a fantasia privada e a criação pública?
Mamoon não havia ocupado aquela mesma posição para Harry, quando ele lia e relia as entrevistas do escritor, seus perfis e ensaios, em Playboy, Rolling Stone e Esquire, quando jovem? Aquele Mamoon havia de bom grado excursionado para o interior das trevas do próprio mundo contemporâneo e voltado de lá com o testemunho, a evidência e o pensamento, revelados num homem intrépido, um conquistador determinado a expor e explicar as verdades mais duras. Não foi ele o primeiro a percorrer, nas cidades mais soturnas do norte da Inglaterra, os caminhos da transformação ocorrida na comunidade muçulmana, do antirracismo socialista para um radicalismo com base num formato novo e mundial, uma ideia reacionária do Islã? Seu ensaio “O machado da ideologia” foi crucial. E sua análise foi ainda além, ao acompanhar a trajetória de mudança do Islã de uma forma de teologia da libertação para um culto da morte que exigia sacrifício, com base na obediência à lei do Pai Absoluto.
Onde estava Harry agora em relação a tudo isso? Como Mamoon, ele não podia apenas levantar o espelho; precisava explicar por que Mamoon estava ali e o que aquele homem significava. As palavras de Harry deviam manter o escritor vivo na história da literatura, por mais que, pessoalmente, tivesse vontade de matá-lo.
Feliz de se ver fora da casa e de ter álcool dentro de si, Harry sentiu-se mais animado. Quanto menos falasse com as pessoas dali, mais apreciaria aquela noite. Cometeu o erro de sugerir, para a irritação de quem estava à sua volta, e se arriscando a assumir ares de superioridade, que uma boa maneira de fazer contato com um escritor podia ser passar os olhos pelas frases dele. Depois desse passo em falso, Harry achou melhor se acomodar num canto isolado do bar, de onde podia espiar a jovem e fogosa mulher de um fazendeiro da região, entediada de pôr ovelhas de molho em antissépticos ou de espremer os úberes de animais recalcitrantes; ou talvez a parceira de um caminhoneiro de longo curso, eternamente atrasado por força de uma greve na França.
Então ergueu os olhos; o pub estava escuro, mas viu o que queria. Seu instinto não tinha se enganado. O jogo de sedução estava rolando. Terminou de tomar seu drinque. Antes de pegar outro, foi ao banheiro, meteu uma moeda na máquina de preservativos e apertou o botão do modelo básico. A garota que estava sorrindo e sacudindo o cabelo comprido para ele parecia mais jovem do que ele gostaria. Harry não precisava de nenhum escândalo. Mas ela havia mandado embora os amigos. Com ar receptivo, a garota se pôs de pé. Ela ia guiá-lo.
Harry estava seco para ir atrás daquela sereia, apesar do caminho ser um corredor às escuras que levava à porta de fundos do pub, um túmulo sem decoração alguma, sem aquecimento e com fedor de urina ou coisa pior, como se a privada estivesse embaixo da mesa. Os bebedores estavam ali. Um cabeludo com cara de pit bull, só de calção e com tatuagens, jogava bilhar sob uma lâmpada tubular que piscava. Um casal de Medusas, puxando cachorros presos em correntes, esperava, olhava em volta com desdém e falava palavrões. Harry sentiu medo. Foi na direção da garota.
Eles se sentaram juntos. Quando as palavras minguaram, o que aconteceu logo, ela lambeu os dedos e apagou as velas da mesa, esfregando a cera quente nas mãos e nos braços dele. Ela era simples e encantadora, e não era nem de longe jovem demais, uma garota de cabelo escuro, peituda, de vinte e poucos anos ou talvez mais, olhos pretos, pernas grossas enfiadas numa minissaia justíssima. Apresentou-se como Julia. Ele a seguiu para fora e apontou para seu carro.
Andaram de carro por meia hora, até a garota dizer a ele para parar numa rua larga de prédios velhos de um conjunto habitacional popular. A noite estava quieta e silenciosa, naquela chuvinha e neblina, exceto por alguns latidos de cães.
“Venha comigo”, disse ela.
Mas Harry se perguntou se não estaria velho demais para a aventura desoladora que parecia acompanhar inevitavelmente a necessidade de contato humano. Será que ele queria mesmo rastejar meio embriagado para dentro de um apartamento de um conjunto habitacional de paredes úmidas à meia-noite, na zona rural? Ainda mais porque, quando a garota o conduzia pelo corredor sombrio no térreo, Harry viu de relance, através de uma porta aberta, uma cena de devassidão hogarthiana.
Uma mulher de meia-idade para cima, de camisa aberta e braços levantados, e três homens brutos e mais velhos, em roupas com que deviam estar dormindo por semanas, estavam dançando. Sacudiam os braços no ar e berravam com uma violência embriagada.
Julia não o deixou parar para ver. Puxou-o para a frente. Dali a pouco, Harry estava dois andares acima, num sótão, talvez vítima de alguma ilusão, mas certamente apertado numa cama de solteiro, agarrando-se a um travesseiro fino e ao que agora parecia ser uma garota proletária de rosto gordo e vinte e poucos anos. No entanto, quando ela terminasse de fumar seu cigarro e — se ele se apressasse — antes que acendesse outro, ele ia transar de novo com ela, e dessa vez a poria de joelhos no chão, abrindo espaço entre roupas e xícaras, enquanto olhava as calcinhas e sutiãs pendurados no espelho.
Não que algo importante pudesse ser alcançado sem inconveniências ou mesmo sem algum sofrimento; e ele ficou feliz de ver que ela era melhor do que ele tinha imaginado. Como acontecia muitas vezes, ele receava ficar com medo e acabar se descontrolando e podia começar, mais uma vez, a repisar a ideia de que ele e os irmãos podiam ter levado a mãe à loucura. Não fazia muito tempo, o pai dissera: “Não existe nenhuma ambivalência: os filhos fazem os pais morrer. Vocês três foram demais para ela”. Pensando nisso, Harry precisava de uma noite de consolo e de companhia. Uma garota é um cordão umbilical, uma corda de salvação da realidade. Sua mãe não ia gostar de o ver sozinho.
Apesar do tum-tum da música e do choque eventual de gritos abruptos que vinham de algum lugar do prédio, ele relaxou. Enquanto ela o acariciava e ele beijava o cabelo dela, Harry podia pensar em como estavam andando as coisas com seu livro. Pelo menos, tinha havido algum progresso; Harry achava que vinha fazendo as perguntas corretas. Ia tocar o barco.
Naquela tarde, ao passar pela biblioteca em seu caminho de volta ao celeiro, Harry avistou seu inimigo pela janela. O velho tinha subido até a metade de uma escada, procurava um livro nas estantes e parecia especialmente vulnerável. Numa explosão de confiança espontânea, e já àquela altura com certa dose de desespero, Harry entrou na casa às pressas. “Aí está o senhor”, disse, e bombardeou Mamoon com indagações a ponto de ficar curioso consigo mesmo.
Por fim, o escritor desceu da escada com todo cuidado, se acomodou confortavelmente numa poltrona e falou, em tom quase desolado: “Devo lhe dar mais, caro homem. Você parece angustiado, e até mesmo zangado, agora”.
Mamoon falou sobre seu pai com respeito e afeição; a mãe, ele quase não mencionou, mas quando pressionado se mostrou gentil. Quanto aos irmãos, de novo Mamoon falou de como gostava deles, tendo pago a faculdade de um deles nos Estados Unidos. Da irmã, ele nunca falara por trinta anos e nada disse agora. “Não é uma discussão interessante.” Sobre Peggy, não acrescentou grande coisa, declarando que havia suprimido os detalhes, mas que “estava tudo nos diários”.
“Qual sua visão hoje sobre o caso?”, perguntou Harry. “Sobre ela. Sua esposa.”
“Sabe, Harry, eu a amei por muito tempo”, disse Mamoon. “Mas, embora inteligente e bonita, a pobre mulher se tornou cada vez mais angustiada. Ficou muito doente por conta da bebida. Às vezes nem se lavava. Nascida para a frustração, ela só queria aquilo que eu não podia dar. A bebida a tornou agressiva… sobretudo contra si mesma.”
Harry perguntou: “Será que um homem mais rude teria posto Peggy para fora de casa?”.
“Como poderia mesmo um homem mais rude ter posto Peggy para fora da casa que lhe pertencia? Eu poderia ter me mudado. Mas há muita coisa que amo aqui — o silêncio para escrever. A história longa, o romance, é coisa antiquada e, dizem, é um gênero morto. Talvez se pareça com a pintura a óleo, na medida em que sua criação requer trabalho intenso e impõe disciplina férrea, paciência e contenção. É tudo que sou capaz de fazer. Quanto a Peggy, não podemos simplesmente abandonar as pessoas em apuros, caramba. É a maldita compaixão. Mas de fato penso que, da próxima vez, devo me casar com uma mulher de verdade.”
“Em vez de com…?”
“Um caso clínico.”
“O senhor tem compaixão. Isso é bastante sabido”, disse Harry. “Mas saía com outras mulheres?”
“Muito menos do que você talvez gostaria de imaginar.”
“O senhor não disse, certa vez, que ninguém pode se dizer casado de fato até ter cometido adultério?”
“Espero que sim.” Mamoon prosseguiu. “Peggy e eu trabalhávamos juntos em meus manuscritos. Essa era a nossa intimidade, o propósito das nossas conversas.”
“Era o amor que sentiam um pelo outro?”
“Muitos artistas tiveram uma musa. A ideia confunde os idiotas acerca da origem da arte. Querem crer que ela jorra de uma única fonte pura. Já se disse que minha obra não tem ido muito longe desde que Peggy morreu.”
“E o senhor concorda com isso?”
Mamoon deu de ombros e começou a andar na direção da porta. “Eu trabalho quando posso. Que diabo posso fazer o dia todo além disso? Conversar com você? Um artista, não se esqueça, se sente melhor quando às voltas com sua arte.”
Isso tudo era mais maçante do que a ideia tão comentada nas fofocas sobre um indiano intransigente e diabólico que levou à loucura as mulheres que se dedicaram a ele. Os telefonemas de Rob, tarde da noite — Rob esbravejava ao telefone, falava tudo pelo menos duas vezes e em tom exclamativo: “O que conseguiu arrancar dele? O que conseguiu? Ainda na estaca zero? Qualquer novidade, trate de me contar logo!” —, estavam deixando Harry tão aflito que começava a se perguntar se seria capaz de escrever um primeiro livro sobre um homem a respeito do qual, um dia, haveria tantos livros. E se ele não fizesse o livro, Harry explicava a Julia, não teria uma carreira. Seus irmãos estavam se dando muito bem na vida, mas aquilo podia ser uma maldição, pois ele, Harry, não seria nada.
Harry acordou quando o dia começou a raiar e deu uma espiada no quarto escuro, de paredes azuis, onde tinha ido parar.
Acariciando e cheirando a mulher simples e amável a seu lado, Harry lembrou-se então das palavras ríspidas que tinha ouvido de Liana na tarde anterior, logo depois de ter conversado com Mamoon. Ela veio correndo da cozinha até o canto onde Harry imaginava estar a salvo, deitado à sombra de uma velha macieira, com um caderno, para repousar um pouco.
“Por que você ofende tanto Mamoon?”
“Ah, meu Deus. Desculpe.” Ele sentou. “O que houve?”
“Que história é essa de dizer que seu pai era um homem de verdade — e um exemplo para você — porque teve três filhos e criou os três sozinho?”
“Papai nos educou. Dizia que era seu único dever. É meritório. E eu quero fazer a mesma coisa, Liana.”
Liana encarou-o. “Deve ser praticamente impossível para você imaginar o que foi a vida de um rapaz indiano tímido, precoce, que veio para cá e não só teve de ganhar a vida como ainda fazer da vida um triunfo em meio a estranhos e até inimigos — sem dúvida entre pessoas que não o incentivavam. Ele mostrava suas histórias às pessoas e elas lhe diziam literalmente: ‘Por que você imagina que alguém possa estar interessado nesses malditos indianos?’.”
“E como eu poderia não entender isso?”
“Quantas vezes preciso lembrar-lhe que você planou pela vida a bordo de um tapete mágico de privilégios sociais? O mundo sempre foi o jardim particular de homens altos, louros e bonitos que podem entrar em qualquer lugar sem pedir licença e pedir o que bem entendem.” Ela prosseguiu: “E nunca esqueça que Mamoon e eu somos iguais e, por mais esnobe que pense que nós somos, se tivéssemos fracassado teríamos ficado de mãos abanando. Quantos chamados ‘escritores de cor’ existiram antes do meu marido? As pessoas acreditam que os negros nem sejam capazes de pronunciar o nome de Tchaikóvski!”.
Harry ponderava que tipo de lição aquela conversa podia conter, quando se despediu de Julia de manhã cedo.
Ela passou os braços em volta do pescoço dele e disse: “É como se um raio tivesse me atingido. Me apaixonei. Vou fazer amor com você agora, Harry, e não vou deixar você ir embora. Você lembra meu nome?”.
“Julia. Não é isso?”
“Não vou esquecer o seu. Eu podia ter beijado você quando servi o chá Earl Grey.”
“Que chá Earl Grey?”
“Não lembra? Na primeira vez, no jardim, na casa de Mamoon. Você estava lá sentado, tão lindo e preocupado. Eu quis você naquela hora. Vi você no quintal. Sei que anda concentrado. Sua cabeça parece estar sempre em outro lugar. Mas algo de eterno passou entre nós. Não sentiu?”
“Um pouco”, disse ele. “Era você.”
“Sim. Estou confusa. Você não sabia?”
“Mais ou menos.”
“Não lembra? Eu ofereci um biscoito digestivo e um bolinho Jaffa para você.”
“Eu nunca esqueço um bolinho Jaffa. Mas eu devia estar pensando se algum dia eu conseguiria mesmo escrever o livro.”
Ela sussurrou. “Seu pênis é meu cachorrinho. Adoro o gosto dele na minha boca.”
“Bon appétit.”
Ele ficou surpreso, mas satisfeito, com o amor dela. Ele certamente era uma novidade na cidadezinha, onde o banco genético era limitado; o êxtase ia se exaurir em breve. Ele ia desfrutar enquanto durasse.