1969-1973

Eu tinha um prazer doentio em ouvir histórias de lugares desconhecidos.

Houve um tempo, já faz uns dez anos, em que eu agarrava qualquer pessoa que encontrasse por perto para perguntar sobre sua terra natal ou a cidade em que tinha crescido. Todo mundo parecia ter boa vontade e entusiasmo para falar sobre esses lugares — pelo jeito, esse tipo de gente, que quer ouvir as histórias dos outros, estava em falta nessa época. Acontecia até de pessoas que eu não conhecia terem ouvido boatos sobre mim e virem me procurar só para contar suas histórias.

Eles divagavam sobre as coisas mais variadas, como se atirassem pedras em um poço seco, e depois de dizer tudo o que queriam iam embora satisfeitos. Alguns falavam contentes, outros, irritados. Alguns eram ótimos narradores, outros contavam histórias que não faziam sentido algum, do começo ao fim. Histórias tediosas, histórias trágicas que me enchiam os olhos de lágrimas, histórias absurdas que mais pareciam piadas. Qualquer que fosse o caso, eu sempre ouvia com o máximo de dedicação.

Não sei por quê, mas todos estavam desesperados para contar algo a alguém, ou talvez ao mundo inteiro. Escutando suas histórias, eu imaginava um bando de macacos enfiados em uma caixa de papelão. Eu ia pegando um macaco de cada vez, espanava a poeira com cuidado e o soltava na pradaria com um tapa no traseiro. Depois disso, não sabia para onde eles iam. Deviam passar a vida comendo bolotas de carvalho em algum canto, até morrer. Era seu destino.

Para falar a verdade, essa era uma atividade que dava muito trabalho e pouco resultado. Hoje em dia, penso que se houvesse naquele ano um Concurso Internacional de Ouvintes Diligentes de Histórias Alheias eu certamente teria ficado em primeiro lugar. Talvez ganhasse como prêmio, pelo menos, uma caixa de fósforos.

Entre as pessoas com quem conversei, estavam um nativo de Saturno e um de Vênus. As histórias deles eram muito impressionantes. Primeiro, a do nascido em Saturno.

— É… horrivelmente frio lá — disse ele num gemido. — Só de pensar, já fico me-meio louco.

Ele fazia parte de certo grupo político que tinha ocupado o prédio nove da universidade. O lema do grupo era “A ação determina a ideologia, e não o contrário”. Nunca me explicaram o que, neste caso, determinava a ação. Mas o prédio nove tinha bebedouros com água gelada, telefone, água quente encanada e até mesmo, no primeiro andar, um estúdio musical bem jeitoso, com mais de dois mil LPs e caixas de som Altec A5. Isso (comparado, por exemplo, com o prédio oito, que cheirava como o vestiário de uma pista de corrida) era o paraíso. Todo dia de manhã eles se barbeavam cuidadosamente com água quente, passavam o dia fazendo quantas ligações interurbanas quisessem e, depois que o sol se punha, se reuniam para ouvir música. O resultado foi que, até o fim do outono, todos tinham se tornado grandes entusiastas da música ­erudita.

Não sei se é verdade que quando o terceiro esquadrão da polícia de choque invadiu o prédio nove, numa agradável e ensolarada tarde de novembro, soava a todo volume a série “L’ estro armonico”, de Vivaldi. Mas, sendo verdade ou não, esta é uma das comoventes lendas que rondam o ano de 1969.

Quando me esgueirei por baixo da pilha periclitante de sofás que fazia as vezes de barricada, tocava ao longe a “Sonata para piano em sol menor” de Haydn. A música criava uma atmosfera nostálgica, como quando a gente sobe uma rua calma, cheia de camélias, para visitar a namorada. Ele me ofereceu a melhor cadeira e serviu cerveja morna num béquer que tinham roubado do departamento de física.

— E, além disso, a gravidade é fortíssima — continuou ele, sobre Saturno. — Teve um sujeito que destruiu o próprio pé cuspindo um chiclete mascado. É o in-inferno.

— Entendo — concordei, depois de esperar uns dois ­segundos.

A essa altura eu já tinha no meu repertório umas trezentas reações e pequenas expressões de concordância diferentes. Uma variedade realmente notável.

— E o so-sol, ele fica muito longe. Assim, do tamanho de uma laranja apoiada em cima da primeira base, se você estiver olhando do campo externo — disse ele, suspirando.

— Por que não vai todo mundo embora? Deve ter outros planetas melhores pra se viver.

— Não sei… Acho que é por ser nosso planeta natal, né? É a vi-vida. Até eu vou voltar pra lá, quando terminar a faculdade. E vou fazer daquele planeta um lu-lugar grandioso. Fazer uma re-revolução!

Enfim, eu gosto de ouvir histórias sobre cidades bem distantes. Vou colecionando essas cidades como um urso se preparando para hibernar. E então, quando fecho os olhos, vejo surgir as ruas e fileiras de casas, ouço as vozes das pessoas. Sinto o movimento, delicado porém distinto, da vida dessas pessoas que provavelmente nunca cruzarão meu caminho.

*

Naoko também me contou histórias assim, algumas vezes. Eu me lembro de cada uma das suas palavras.

— Não sei como devo chamar aquele lugar…

Sentada na área de convivência da faculdade, o rosto apoiado sobre uma das mãos, ela sorria mas sua voz estava um pouco desanimada. Esperei, paciente, que ela continuasse. Ela sempre falava devagar, escolhendo cada palavra com precisão.

Estávamos sentados frente a frente, entre nós uma mesa vermelha de plástico com um copo descartável cheio de guimbas de cigarro. O sol, que entrava pelas janelas altas, como a luz em uma pintura de Rubens, traçava uma linha bem defi­nida sobre a mesa, separando claro e escuro. Minha mão direita estava na luz, e a esquerda, à sombra.

Era a primavera de 1969, e tínhamos vinte anos. A sala estava abarrotada de estudantes calçando sapatos novos, carregando os novos horários das aulas e com cérebros novos enfiados na cabeça. Não havia nem onde pisar. A todo o momento alguém trombava ao nosso lado, reclamava ou se desculpava.

— Seja como for, não chega a ser uma cidade — continuou ela. — Tem uma linha de trem bem retinha e uma estação. É uma estação tão miserável que se estiver chovendo é capaz de o motorista passar direto por ela sem nem reparar.

Assenti com a cabeça. E por trinta segundos inteiros ficamos em silêncio, olhando à toa para a fumaça de cigarro que oscilava em meio aos raios de sol.

— Sempre tem algum cachorro perambulando na plataforma, de um lado pro outro. Esse tipo de estação. Sabe?

Eu fiz que sim.

— Quando você sai da estação, tem uma rotatória e um ponto de ônibus. E algumas lojas… Umas lojas que chegam a dar sono. Seguindo reto por aquela rua, você chega num parque. Lá tem um escorregador e três balanços.

— E tanque de areia, tem?

— Tanque de areia? — Ela pensou com bastante calma para ter certeza e assentiu. — Tem.

Nos calamos novamente. Meu cigarro chegou ao fim, e eu o apaguei dentro do copo, com cuidado.

— É um tédio horroroso. Não sei nem qual o propósito de existir uma cidade tão tediosa assim.

— Deus se revela de diversas formas — respondi.

Naoko sacudiu a cabeça e riu. Sua risada era comum, típica de uma estudante com o boletim cheio de dez, mas continuou por muito tempo no meu peito. Como o sorriso do Gato que Ri em Alice no país das maravilhas, sua risada permaneceu mesmo depois que ela se foi.

Ouvir as histórias dela me deu muita vontade de conhecer os tais cachorros que passeavam pela plataforma.

*

Quatro anos mais tarde, em maio de 1973, visitei sozinho essa estação. Para a ocasião, fiz a barba, coloquei uma gravata, coisa que não fazia havia seis meses, e estreei um par de sapatos de cordovão.

*

Ao descer do melancólico trem de interior, cujos dois vagões pareciam prestes a enferrujar a qualquer momento, a primeira coisa que senti foi o perfume saudoso de mato. Era o cheiro de um piquenique de antigamente. O vento de maio parecia vir do passado distante até mim. Se eu erguesse o rosto e escutasse com atenção, podia ouvir até as cotovias cantando.

Soltei um bocejo longo, sentei no banco da estação e acendi um cigarro, mal-humorado. O entusiasmo que eu sentira de manhã cedo ao sair do apartamento tinha desaparecido completamente. Tudo não passava de uma eterna repetição das mesmas coisas. Um déjà-vu infinito, que fica pior a cada reprise.

Teve uma época em que eu costumava dormir amontoado pelo chão com um bando de amigos. De manhãzinha, alguém pisava na sua cara. Te pedia desculpas. Aí você escutava o barulho de xixi. Isso se repetia sempre.

Afrouxei a gravata e, com o cigarro pendurado no canto da boca, esfreguei contra o chão de concreto a sola dos novos e desconfortáveis sapatos de couro, tentando aliviar a dor nos pés. Não era uma dor intensa, mas me dava um mal-estar, como se meu corpo estivesse partido em vários pedaços.

Não havia nenhum cachorro à vista.

*

Um mal-estar…

É comum eu me sentir desse jeito. Como se estivesse tentando montar ao mesmo tempo dois quebra-cabeças diferentes, com as peças misturadas. Nessas horas eu costumo beber uísque e dormir. Quando acordo de manhã, a situação está pior. Isso acontece sempre.

Quando acordei, havia duas garotas, gêmeas, deitadas comigo, uma de cada lado. Esse tipo de coisa já tinha me acontecido várias vezes, é verdade, mas nunca com uma gêmea de cada lado. As duas dormiam contentes, cada uma com o nariz encostado em um dos meus ombros. Era uma manhã ensolarada de domingo.

Pouco depois elas acordaram, quase ao mesmo tempo. Enfiaram desajeitadas as blusas e os jeans que estavam jogados debaixo da cama e, sem dizer uma palavra, foram até a cozinha, fizeram café, torradas, e colocaram a manteiga na mesa. Tudo com gestos muito hábeis. Um passarinho desconhecido, pousado sobre o alambrado do campo de golfe diante da janela, cantava como uma metralhadora.

— Como vocês se chamam?

— Não são nomes muito bons — disse a que estava sentada do lado direito.

— Realmente não é grande coisa — disse a da direita. — Sabe como é?

— Sei.

Sentados juntos à mesa, comemos as torradas e tomamos café.

— Fica ruim pra você, se a gente não tiver nome?

— Não sei…

Elas pensaram por algum tempo.

— Se você quiser muito usar algum nome, escolhe qualquer um — propôs a outra.

— Pode nos chamar do que quiser.

Elas falavam se alternando, como um teste de transmissão de rádio em som estéreo. Isso fazia minha cabeça doer mais ainda.

— Tipo o quê?

— Direita e esquerda — disse uma.

— Vertical e horizontal — disse a outra.

— Em cima e embaixo.

— Frente e verso.

— Leste e oeste.

— Entrada e saída — acrescentei eu, para não ficar de fora. As duas se entreolharam e riram satisfeitas.

*

Onde há uma entrada, há sempre uma saída. A maioria das coisas é assim. Caixas de correio, aspiradores de pó, zoológicos, garrafas de shoyu. Também tem coisas que não são assim, claro. Ratoeiras, por exemplo.

*

Certa vez, armei uma ratoeira embaixo da pia da cozinha do meu apartamento. Usei como isca um chiclete de menta, porque depois de revirar o apartamento inteiro não encontrei mais nada que pudesse chamar de comida. Achei o chiclete no bolso de um casaco de inverno, junto com metade de um ingresso de cinema.

Na manhã do terceiro dia, havia um pequeno camundongo preso nessa armadilha. Era um camundongo jovem, da cor daqueles suéteres de caxemira que vemos empilhados no free shop de Londres. Se fosse uma pessoa, acho que teria uns quinze ou dezesseis anos. Uma idade ingrata. O pedaço de chiclete estava caído embaixo das suas patas.

Eu tinha conseguido pegar o bicho, mas agora não tinha ideia do que fazer com ele. Na manhã do quarto dia o encontrei morto, com a pata traseira ainda presa. Aprendi uma lição importante vendo aquele camundongo: tudo tem que ter uma entrada e uma saída. As coisas são assim.

*

A linha de trem se estendia através das colinas, tão reta que parecia ter sido traçada a régua. Bem ao longe, dava para ver o verde-escuro das árvores, como um papel amassado. Os dois trilhos seguiam até lá, refletindo a luz do sol com um brilho fraco, e desapareciam para dentro da mata. Dava a impressão de que, não importava até onde você fosse, a paisagem ia continuar igual, eternamente. Era uma ideia deprimente. Se for assim, prefiro mil vezes o metrô.

Quando terminei o cigarro, me espreguicei e olhei para o céu. Fazia muito tempo que eu não olhava para o céu. Mais do que isso, fazia realmente muito tempo que eu não olhava com calma para nada.

Não havia uma única nuvem no céu, mas ele estava turvo, coberto pelo véu opaco característico da primavera. O azul permeava pouco a pouco esse véu indistinto. Os raios de sol caíam silenciosamente pelo ar como finas partículas de poeira e iam se acumulando pelo chão sem que ninguém lhes desse atenção.

A luz tremulava com o vento morno que corria devagar, como um bando de aves voando de uma árvore para outra. O vento escorregava pelo verde delicado das encostas ao longo da ferrovia, cruzava os trilhos e passava pelo bosque sem nem agitar as folhas. O canto de um cuco cruzou a luz suave e desapareceu rumo às montanhas. O relevo das colinas lembrava um gato gigante, dormindo enrodilhado numa poça de sol, no meio do tempo.

*

A dor nos meus pés ficou mais intensa.

*

Vou falar sobre poços.

Naoko veio para esta região aos doze anos. Era o ano de 1961 do calendário cristão. O ano em que Ricky Nelson cantou “Hello Mary Lou”. Naquela época, não havia nestes vales verdes e pacíficos absolutamente nada que chamasse a atenção. Umas poucas casas de agricultores e plantações, riachos cheios de lagostins, o trem suburbano com sua estação sonolenta, e nada mais. Quase todas as casas tinham pés de caqui no jardim e, num canto do quintal, um galpão maltratado pela chuva que parecia prestes a desabar com o primeiro que se apoiasse nele. Nas paredes dos galpões voltadas para a linha de trem havia outdoors espalhafatosos feitos de latão, anunciando papel higiênico ou sabonetes. Esse tipo de cidade, disse Naoko. Nem cachorros tinha!

A casa para onde ela se mudou era uma construção de dois andares em estilo ocidental, construída na época da Guerra da Coreia. Não era particularmente grande, mas tinha um ar sólido e tranquilo, graças às colunas grossas e resistentes e à madeira de qualidade, escolhida cuidadosamente para cada função. O exterior era pintado em três tons de verde. A chuva, o sol e o vento tinham desbotado cada um dos tons até que eles se fundissem perfeitamente com a paisagem. O jardim era amplo, com alguns bosques e um pequeno lago. No meio de um dos bosques havia uma aconchegante estrutura octogonal usada como ateliê, um lugar com janelas enfeitadas por cortinas de renda já totalmente sem cor. De manhã os passarinhos se reuniam para tomar banho no lago, no qual floresciam ­narcisos.

A casa tinha sido desenhada pelo seu primeiro morador, um velho pintor de telas a óleo que morrera de pneumonia no inverno anterior à chegada de Naoko. Foi no ano de 1960, aquele em que Bobby Vee cantou “Rubber Ball”. Havia sido um inverno muito chuvoso. Não costumava nevar naquela região, mas em compensação caía uma chuva terrivelmente gelada que encharcava a terra, deixando a superfície úmida e gelada e formando no subsolo inúmeros veios de água doce.

A uns cinco minutos da estação, seguindo a linha do trem, ficava a casa do poceiro, em uma planície encharcada na várzea do rio, que se enchia de mosquitos e sapos no verão. O poceiro era um homem de uns cinquenta anos, ranzinza e teimoso, mas um verdadeiro gênio para cavar poços. Quando lhe pediam para abrir um poço, primeiro ele passava dias caminhando por todo o terreno do cliente, cheirando punhados de terra de cantos diversos e resmungando sozinho. E então, quando encontrava um lugar satisfatório, chamava alguns colegas poceiros e abria um buraco no chão em linha reta.

Graças a isso, os moradores dessa terra tinham água fresca de poço para beber à vontade. Uma água clara e gelada, tão farta que quase bastava segurar um copo para que ele se enchesse. Diziam que era água de degelo do monte Fuji, mas claro que era mentira. Ela nunca teria chegado de tão longe.

No outono, quando Naoko tinha dezessete anos, o poceiro morreu atropelado por um trem. Culpa da chuva torrencial, do saquê gelado e da surdez. Seu corpo voou sobre a campina em milhares de pequenos pedaços que, quando recolhidos, encheram cinco baldes inteiros. Os sete policiais que o recolheram precisaram usar longas varas com ganchos na ponta para se esquivar das hordas de vira-latas esfomeados. Parte dos seus restos, o suficiente para encher mais um balde, caiu no rio e virou ração de peixe.

O poceiro tinha dois filhos, mas nenhum deles herdou sua profissão. Ambos foram embora da cidade. Ninguém mais se aproximou da casa deles, que, abandonada, apodreceu devagar ao longo dos anos. E, desde então, bons poços se tornaram um artigo raro por ali.

Eu gosto de poços. Sempre que encontro um, jogo uma pedra. Não há nada tão tranquilizante quanto o som de um pedregulho atravessando a água no fundo de um poço.

*

A família da Naoko se mudou para lá em 1961 por decisão do seu pai. Ele era amigo do velho pintor falecido e tinha gostado daquele lugar.

Parece que o pai dela tinha sido um estudioso de literatura francesa reconhecido em sua área, mas na época em que Naoko entrou no ginásio ele abandonou de repente seu emprego na faculdade e passou a viver uma vida despreocupada, traduzindo, conforme lhe dava na telha, uns livros antigos e misteriosos. Livros de satanismo, magia negra, vampiros, esse tipo de coisa. Não sei muitos detalhes. Só vi uma foto dele, que saiu em uma revista. Segundo Naoko, ele levara uma vida muito divertida quando jovem, e dava para ver isso no seu rosto pela fotografia. De boina e óculos escuros, ele encarava sério um ponto cerca de um metro acima das lentes. Talvez estivesse vendo alguma coisa.

*

Na época em que Naoko e sua família se mudaram para aquela região, viviam ali vários intelectuais excêntricos como ele, formando uma espécie de comunidade. Como a colônia penal da Sibéria para onde as pessoas eram enviadas por crimes ideo­lógicos na Rússia Imperial.

Li um pouco sobre o exílio na biografia de Trótski, mas, por algum motivo, só me lembro de histórias sobre baratas e renas. Então vamos à história das renas…

Encoberto pela escuridão, Trótski roubou um trenó e fugiu da colônia penal. As quatro renas do seu trenó correram sem parar, atravessando o branco prateado das desertas planícies congeladas. O hálito das quatro congelava no ar como uma nuvem branca, e a neve virgem se espalhava sob seus cascos. Dois dias depois, quando ele chegou à estação de trem, as renas desmaiaram de exaustão e nunca mais se levantaram. Abraçado às renas mortas, Tróstki jurou para si mesmo, em meio às lágrimas, trazer para seu país a justiça, os ideais e a revolução, não importando o quanto isso custasse. Até hoje as estátuas dessas quatro renas estão na Praça Vermelha. Uma voltada para o leste, outra voltada para o norte, outra para o oeste, outra para o sul. Nem mesmo Stálin conseguiu destruir essas estátuas. Aos turistas que visitam Moscou, recomendo visitar a Praça Vermelha no sábado, de manhã cedo. A essa hora, pode-se admirar os estudantes ginasiais russos, com suas bochechas coradas e hálito branco, lustrando as estátuas das renas. É uma cena muito agradável.

… Voltando à comunidade:

Eles evitaram os terrenos planos e mais convenientes perto da estação, e fizeram questão de construir suas casas, cada um seguindo um estilo próprio, nas encostas das montanhas. Todas as casas tinham jardins gigantescos, onde foram preservados os bosques, as colinas e os lagos nas suas formas originais. Em um desses jardins havia um riacho tão límpido que tinha até peixes ayu.

Eles acordavam de manhã cedo com o canto dos pássaros e caminhavam pelo jardim, pisoteando os frutos das faias, parando aqui e ali para admirar a luz do sol matinal filtrada pelas árvores.

Bem, os tempos mudaram, e a súbita onda de expansão urbana vinda das grandes cidades chegou, ainda que em menor grau, até essa região. Foi na época das Olimpíadas de Tóquio. Tratores destruíram as vastas plantações de amoreira, que vistas das montanhas pareciam um mar, e foi surgindo ao redor da estação um padrão monótono de ruas.

Quase todos os novos moradores eram de classe média, funcionários de empresas que pulavam da cama às cinco da manhã para se enfiar no trem sem nem lavar o rosto e voltavam tarde da noite como mortos-vivos.

Sendo assim, os domingos à tarde eram os únicos momentos que eles tinham para olhar com calma para a cidade e para as próprias casas. E a maioria deles criava cachorros, como se todos tivessem combinado. Os cachorros procriavam sem parar, e seus filhotes se tornavam vira-latas. Foi isso o que Naoko quis dizer ao exclamar que antigamente não havia nem cachorros.

*

Esperei por cerca de uma hora, mas nenhum cachorro apareceu. Acendi uns dez cigarros e os apaguei com a sola do sapato. Caminhei até a torneira no meio da plataforma, bebi uma água saborosa e tão gelada que minhas mãos doeram de frio. E nada dos cachorros.

Ao lado da estação havia um grande lago, cheio de curvas, como um rio que tivesse sido represado. Plantas aquáticas cresciam altas nas suas margens, e às vezes um peixe saltava para fora da água. Havia alguns homens sentados à sua volta, distantes uns dos outros, segurando taciturnos suas varas de pescar sobre a água turva. As linhas de pesca estavam completamente imóveis, como agulhas fincadas na superfície da água. Sob a luz difusa da primavera, um cachorro grande e branco, provavelmente trazido por algum dos pescadores, andava para lá e para cá cheirando os trevos com grande ­interesse.

Quando ele chegou a uns dez metros de mim, me inclinei sobre a cerca e o chamei. O cachorro levantou a cabeça, ergueu os olhos de um castanho tão claro que dava dó e abanou o rabo duas ou três vezes. Estalei os dedos, e ele se aproximou, enfiou o focinho pela cerca e lambeu minha mão com a língua comprida.

— Vem! — chamei, recuando um pouco.

Indeciso, ele olhou para trás e continuou abanando o rabo, sem entender nada.

— Vem, pode entrar! Já cansei de esperar.

Tirei um chiclete do bolso, o desembrulhei e mostrei para o cachorro. Ele encarou o chiclete por algum tempo, então pareceu tomar uma decisão e se esgueirou por debaixo da cerca. Afaguei algumas vezes sua cabeça, enrolei o chiclete na palma da mão e o arremessei com toda a força para o fim da plataforma. O cachorro saiu correndo em linha reta.

Eu fiquei satisfeito e voltei para casa.

*

No trem de volta, repeti muitas vezes para mim mesmo: tudo isso já acabou, esquece. Não foi pra isso que você veio até aqui? Mas eu não conseguia esquecer. Não conseguia esquecer que eu tinha amado a Naoko. Nem que ela já estava morta. No fim das contas, nada tinha acabado de verdade.

*

Vênus é um planeta quente, coberto de nuvens. A maior parte dos habitantes vive pouco, por causa do calor e da umidade. Costumam morrer tão jovens que, se você viver até os trinta, já é uma lenda. Em compensação, o coração de todos os venusianos transborda de amor. Todos amam uns aos outros. Eles não odeiam, invejam nem desprezam ninguém. Não falam mal dos outros. Não há assassinatos nem brigas, apenas afeto e gentileza.

— Então, mesmo se alguém morrer hoje, por exemplo, a gente não fica triste — disse o nativo de Vênus, um sujeito muito sereno. — Porque enquanto as pessoas estão vivas, a gente já ama o suficiente, sabe? Pra não se arrepender depois.

— Então vocês amam antecipadamente, é isso?

— Não entendo muito bem as palavras que vocês usam… — Ele sacudiu a cabeça.

— Isso realmente funciona?

— Se a gente não fizesse isso — respondeu ele — Vênus estaria totalmente soterrada pela tristeza.

*

Quando voltei para casa, as gêmeas estavam enfiadas na cama como duas sardinhas enlatadas, rindo baixinho.

— Bem-vindo — disse uma delas.

— Onde você estava?

— Numa estação de trem — respondi, afrouxando a ­gravata.

Me enfiei na cama entre as duas e fechei os olhos. Eu estava morrendo de sono.

— Que estação?

— O que você foi fazer?

— Uma estação bem longe. Fui ver um cachorro.

— Que tipo de cachorro?

— Você gosta de cachorros?

— Um cachorro grande e branco. Mas eu não gosto particularmente de cachorros, não.

As duas ficaram em silêncio enquanto eu acendi um cigarro e o fumei até o fim.

— Você está triste? — perguntou uma.

Eu concordei com a cabeça, calado.

— Dorme um pouco — disse a outra.

Eu dormi.

*

O tema desta história sou “eu”, e também é um cara chamado Rato. Naquele outono, “nós” vivíamos em cidades diferentes, a setecentos quilômetros uma da outra.

Este romance começa em setembro de 1973. Essa é a entrada. Espero que tenha uma saída. Se não tiver, não faz nenhum sentido escrever.