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Deve haver várias maneiras de distinguir as duas irmãs gêmeas, mas infelizmente eu não conhecia nenhuma delas. O mesmo rosto, a mesma voz, o mesmo corte de cabelo e, para completar, nenhuma pinta ou marca de nascença… era um caso perdido. Duas cópias exatas. Reagiam do mesmo jeito aos estímulos, comiam e bebiam as mesmas coisas, cantavam as mesmas músicas, tinham os mesmos padrões de sono e até o mesmo ciclo menstrual.

A ideia de como deve ser ter um irmão gêmeo ultrapassa em muito minha imaginação. Mas sei que eu ficaria profundamente desnorteado se tivesse um irmão gêmeo idêntico a mim até nos mínimos detalhes. Talvez tenha alguma coisa errada comigo.

As duas garotas, entretanto, viviam na mais perfeita paz e ficaram bravas e muito surpresas ao descobrir que eu não conseguia diferenciá-las.

— Mas a gente é totalmente diferente!

— Não tem nada a ver!

Encolhi os ombros, sem responder.

Não sei há quanto tempo as gêmeas vieram morar na minha casa. Desde que comecei a viver com elas, minha noção de tempo foi enfraquecendo rapidamente. Penso que talvez eu percebesse o tempo do mesmo jeito que os microrganismos que se reproduzem por divisão celular.

*

Eu e um amigo alugamos um apartamento numa ladeira que sai de Shibuya em direção a Nanpeidai e abrimos ali um pequeno escritório de tradução. Para isso, pegamos o dinheiro emprestado do pai dele, mas não chegava a ser um valor muito alto. Só precisamos pagar o depósito do apartamento e comprar três escrivaninhas de aço, uns dez dicionários, um telefone e meia dúzia de garrafas de bourbon. Com o dinheiro que sobrou, encomendamos um letreiro de metal, inventamos um nome qualquer para gravar nele, o penduramos na fachada e colocamos anúncios no jornal. E então nos sentamos com os quatro pés em cima da mesa e esperamos, tomando o bourbon, que os clientes aparecessem. Isso foi na primavera de 1972.

Depois de alguns meses, percebemos que tínhamos encontrado uma mina de ouro. Uma quantidade incrível de serviço chegava ao nosso modesto escritório. Com a renda, compramos um ar-condicionado, uma geladeira e um kit de bar.

— Nós somos homens de sucesso! — disse meu amigo.

Fiquei muito satisfeito, porque essa era a coisa mais gentil que tinham me dito em toda a minha vida.

Meu amigo conversou com um conhecido dele, dono de uma gráfica, e passávamos para ele, com exclusividade, todos os trabalhos que precisassem de impressão, recebendo até uma comissão por isso. Eu entrei em contato com a secretaria de uma universidade de línguas estrangeiras e reuni alguns alunos competentes para trabalhar como freelancers. Quando eu tinha trabalho demais para dar conta sozinho, eles faziam os rascunhos das traduções. Contratamos uma funcionária para cuidar da contabilidade, da comunicação com os clientes e outros pequenos afazeres. Era uma moça atenciosa, recém-saída de um curso de administração, com pernas longas e nenhum defeito em particular exceto cantarolar “Penny Lane” umas vinte vezes por dia (e sem o refrão, ainda por cima). A gente tirou a sorte grande com essa aí, disse meu amigo. Então pagávamos a ela um salário uns cinquenta por cento mais alto do que a média das empresas e lhe dávamos um bônus anual equivalente a cinco meses de salário, além de dez dias de férias no verão e no inverno. Assim, vivíamos os três felizes, cada um satisfeito com seu arranjo.

O apartamento que alugamos tinha dois quartos e uma sala com cozinha americana, mas, curiosamente, a sala ficava no meio, entre os dois quartos. Tiramos a sorte no palitinho: eu fiquei com o quarto do fundo e meu amigo com o da frente, mais perto da porta. Na sala trabalhava a menina, que passava o dia anotando as finanças no livro-caixa, servindo uísque com gelo ou armando armadilhas para baratas. E cantarolando “Penny Lane”.

Com a verba da empresa comprei dois escaninhos e coloquei um de cada lado da minha mesa. No da esquerda ficavam os textos para traduzir, e no da direita, os já traduzidos.

Tanto o conteúdo dos textos quanto os clientes eram muito diversos. À esquerda da minha mesa se empilhavam os mais variados materiais, desde um artigo da American Science sobre a resistência à pressão dos rolamentos, passando pelo All-American Book of Cocktails de 1972 e um ensaio de William Styron, até um manual de instruções para lâminas de barbear, todos com etiquetas informando “Até o dia tal de tal mês”. Cada um a seu tempo, eles iam passando para o lado direito. A cada serviço que eu terminava, tomava um dedo de uísque.

O bom de trabalhar com traduções desse tipo é que não há absolutamente nenhuma necessidade de pensar. Você coloca uma moeda na palma da mão esquerda, bate a mão sobre a direita — plaft! — e agora a moeda está na outra mão. Só isso.

Chegávamos no escritório às dez horas e saíamos às quatro. Aos sábados, íamos os três para uma discoteca ali perto e dançávamos ao som de uma banda cover de Santana, bebendo J&B.

O dinheiro não era ruim. Com o lucro total, pagávamos o aluguel do escritório, as poucas despesas, o salário da menina, o trabalho dos freelancers e os impostos. Em seguida, dividíamos o restante em dez partes iguais: uma ia para as economias da empresa, cinco para meu amigo e quatro para mim. Para isso, dispúnhamos todo o dinheiro sobre a mesa, em dez pilhas. Era um método primitivo, mas muito divertido. Me lembrava a cena em que Steve McQueen e Edward G. Robinson jogam pôquer em A mesa do diabo.

Acredito que essa divisão, de cinco partes para ele e quatro para mim, era bastante justa. Afinal todos os aspectos práticos da administração caíam no colo dele, que ainda me aturava sem reclamar quando eu bebia além da conta. Para completar, ele tinha uma esposa de saúde frágil, um filho de três anos, um Fusca que vivia quebrando e, como se tudo isso não fosse suficiente, uma mania de arranjar mais sarna para se coçar.

— Mas eu também tenho duas gêmeas em casa pra sustentar… — experimentei dizer certo dia, mas obviamente ele não me levou a sério. Como sempre, ele ganhou cinco partes e eu, quatro.

E assim passavam as estações, nos meados dos meus vinte anos. Dias tranquilos como uma poça de sol num fim de tarde.

“Tudo o que mãos humanas escrevem”, dizia o slogan nos nossos panfletos impressos em três cores, “nós podemos ­traduzir.”

A cada seis meses passávamos por um período de tédio absoluto, e então nós três íamos para a estação de Shibuya distribuir esses panfletos, para passar o tempo.

Me pergunto por quanto tempo foi assim. Eu caminhava em meio a um silêncio infinito. Saía do trabalho, ia para casa e, tomando o café saboroso feito pelas gêmeas, relia mais uma vez a Crítica da razão pura.

Às vezes o dia de ontem parecia o ano anterior, ou o ano anterior se confundia com o dia de ontem. Nas horas mais graves, o ano seguinte se confundia com o dia anterior. Também acontecia de eu estar traduzindo um artigo de Kenneth Tynan sobre Roman Polanski, publicado na edição de setembro de 1971 da revista Esquire, e passar todo o tempo pensando sobre pressão e rolamentos.

Por muitos meses, por muitos anos, permaneci assim, sentado sozinho no fundo de uma piscina profunda. A água morna, a luz suave, o silêncio. O silêncio…

*

Havia apenas uma maneira de distinguir as gêmeas: os casacos de moletom que elas vestiam. Eram moletons azul-marinho, já bem desbotados, com números impressos em branco na parte da frente. Um dizia “208” e o outro “209”. O “2” ficava sobre o mamilo direito, e o “8” ou “9”, sobre o mamilo esquerdo. O “0” ficava espremido entre os dois.

No primeiro dia, perguntei o que queriam dizer aqueles números. Não querem dizer nada, responderam elas.

— Parece um número de série…

— Como assim? — perguntou uma.

— Quer dizer, parece que tem muitas de vocês, e vocês são o número 208 e 209 dessa série.

— Tá maluco? — disse a 209.

— Somos só duas, desde que a gente nasceu — disse a 208. — E essas blusas a gente ganhou de presente.

— De quem? — perguntei.

— Era um brinde de inauguração num supermercado. Distribuíram pros primeiros clientes, na ordem.

— Eu fui a 209a cliente — disse a 209.

— E eu fui a 208a cliente — disse a 208.

— A gente comprou três caixas de lenço de papel.

— Tá, então vamos fazer assim. Vou chamar você de 208 e você de 209. Assim consigo diferenciar uma da outra — disse eu, apontando para elas na ordem.

— Não adianta — disse uma delas.

— Por quê?

Sem dizer nada, elas tiraram os casacos, trocaram entre si e os vestiram de novo.

— Eu sou a 208 — disse a 209.

— E eu sou a 209 — disse a 208.

Eu suspirei.

Mesmo assim, quando eu precisava de qualquer jeito distinguir as duas, tinha que depender dos números, pois não havia outra maneira de diferenciá-las.

Elas não tinham quase nenhuma roupa fora esses moletons. Parecia que, no meio de um passeio, tinham entrado na casa de alguém e resolvido ficar morando ali. Bom, acho que era o que tinha acontecido, mesmo. Eu dava a elas um pouco de dinheiro no começo da semana, dizendo para comprarem o que precisassem, mas a única coisa que compravam, fora os ingredientes para preparar as refeições, eram biscoitos recheados sabor café.

— Mas não é chato pra vocês não ter roupas? — per­guntei.

— Não — respondeu a 208.

— A gente não liga pra roupas — disse a 209.

Uma vez por semana, elas lavavam os moletons com carinho, na banheira. Deitado na cama, eu levantava os olhos da Crítica da razão pura e me deparava com as duas peladas, ­ajoelhadas lado a lado sobre os azulejos, lavando os casacos. Nessas horas, sentia que tinha vindo parar em algum lugar muito estranho. Não sei por quê. Desde o verão anterior, quando eu perdera um implante dentário embaixo do trampolim na piscina, volta e meia eu me sentia assim.

Muitas vezes, ao chegar do trabalho, eu via os moletons com os números 208 e 209 pendurados na janela voltada para o sul, como bandeiras. Nessas horas, meus olhos chegavam a se encher de lágrimas.

*

Nunca perguntei por que elas tinham vindo morar no meu apartamento, até quando pretendiam ficar ou, pra começo de conversa, quem eram elas. Quantos anos tinham? De onde vinham?

Elas também não falaram nada.

Nós passávamos os dias tomando café, passeando pelo campo de golfe ao entardecer para procurar por bolas perdidas e nos divertindo na cama. A atração principal era a leitura comentada do jornal — todos os dias de manhã eu passava uma hora explicando as notícias para elas. Era inacreditável o quão pouco elas sabiam sobre o mundo. Não conseguiam sequer diferenciar a Birmânia da Austrália. Demorei três dias para convencê-las de que o Vietnã estava dividido em dois, um lado em guerra com o outro, e mais quatro dias explicando as razões de Nixon para bombardear Hanói.

— E pra quem você tá torcendo? — perguntou a 208.

— Pra quem?

— É, pro norte ou pro sul? — disse a 209.

— Bom, pra qual será… Não sei.

— Por que não? — disse a 208.

— Eu nem moro no Vietnã.

Elas não se contentaram com a minha explicação. Nem eu mesmo me satisfiz com a minha explicação.

— Eles estão lutando porque um lado pensa diferente do outro, não é? — insistiu a 208.

— Acho que sim.

— Então isso quer dizer que tem dois jeitos opostos de pensar — disse a 208.

— É. Só que no mundo tem um milhão e duzentos mil jeitos opostos de pensar, sabe. Mentira, deve ter mais do que isso.

— Então não dá pra ser amigo de quase ninguém no mundo? — perguntou a 209.

— Talvez — respondi. — Talvez não dê pra ser amigo de quase ninguém…

Este era meu estilo de vida na década de 1970. Profetizado por Dostoiévski, consolidado por mim.