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A MONOTONIA DAS AULAS
Na sua secretária, Jake Ransom esperava ansiosamente que o ponteiro do relógio de parede percorresse os últimos minutos da aula de geografia do sexto tempo.
Faltavam apenas vinte e quatro minutos para ficar livre.
Livre da Escola Preparatória de Middleton durante uma semana inteira!
Então poderia fazer algum trabalho a sério. Já planeara cada dia da sua semana de férias: explorar o rico filão de fósseis de crustáceos que descobrira na pedreira atrás da sua casa, ir à sessão de autógrafos de um dos seus físicos preferidos, que publicara um novo livro chamado Quarks Desconhecidos e Mistérios Quânticos Profundos, assistir à quarta palestra de um antropólogo de renome sobre as tribos canibais do Bornéu (quem diria que os globos oculares salteados tinham um sabor doce?)… e tinha muito mais atividades planeadas.
Só precisava que soasse a campainha da escola que assinalava o final das aulas para o libertar da prisão que era o oitavo ano.
No entanto, a fuga não seria assim tão fácil.
A professora de história, a senhora Agnes Trout, bateu as palmas e atraiu a sua atenção contrariada. Encontrava-se de pé ao lado da sua secretária. Magra como um pau de giz, e igualmente seca e poeirenta, a professora olhava a turma com atenção.
— Temos tempo para mais um relatório — anunciou ela.
Jake revirou os olhos. Oh, boa…
O resto da turma não parecia mais contente que ele. Ouviram-se gemidos por toda a sala, o que fez com que os lábios da professora se contraíssem ainda mais.
— Pode passar a dois relatórios e a ficarmos aqui depois do toque — avisou ela.
A turma rapidamente sossegou.
A professora Trout acenou com a cabeça e virou-se para a sua secretária. Um dedo percorreu uma lista de nomes e avançou para a vítima seguinte no alinhamento para fazer a apresentação oral do relatório. Jake achou divertido ver os ombros magros da professora a aproximarem-se das orelhas. Ele sabia qual era o nome que se seguia na lista, mas de alguma maneira este apanhara a professora de surpresa.
Ela endireitou-se com os lábios contraídos.
— Parece que vamos ouvir o Jake Ransom a seguir.
Ouviu-se mais uma onda de gemidos. A professora nem se deu ao trabalho de os mandar sossegar. Arrependera-se claramente de ter decidido incluir a apresentação de mais um relatório antes da semana de férias. Contudo, quase um ano depois de frequentar a sua aula, Jake sabia que a professora Trout era picuinhas em relação às regras e à ordem na sala de aula. Ela preocupava-se mais com a memorização de datas e nomes do que com a verdadeira compreensão do fluxo da história. Assim, uma vez traçado o seu curso de ação, não tinha outra escolha senão fazer sinal a Jake a fim de este se dirigir para a frente da turma.
Jake deixou os seus livros e apontamentos na secretária. Tinha a sua apresentação oral memorizada. Sem nada nas mãos, sentia que todos olhavam para ele enquanto se dirigia para o quadro. Apesar de ter avançado um ano, era o segundo rapaz mais alto da turma. Infelizmente, nem sempre era bom destacar-se dos outros, sobretudo na escola preparatória e especialmente depois de ter saltado um ano. Ainda assim, Jake manteve os ombros direitos enquanto atravessava a sala em direção ao quadro. Ignorou os olhares que o seguiam. Sem qualquer preocupação pela moda, Jake vestia de manhã a primeira coisa que encontrava (lavada ou não). Nesse dia acabara com calças de ganga coçadas, um par de ténis bota esfarrapados, um polo verde desbotado e, é claro, o blazer obrigatório com a insígnia da escola bordada a dourado no bolso da frente. Nem mesmo o seu cabelo louro condizia com a moda atual dos cabelos rapados. Em vez disso, caía descontraidamente sobre a testa.
Tal como o do seu pai em tempos.
Pelo menos, era o que mostrava a última fotografia que Jake tinha do pai, desaparecido há três anos numa selva da América Central. Jake ainda guardava consigo essa fotografia, colada com fita-cola na contracapa do seu caderno de apontamentos. Mostrava os seus pais, Richard e Penelope Ransom, a sorrir de forma genuinamente feliz, vestidos com fatos de safári caqui e a segurar um petróglifo maia. Os cantos da fotografia estavam queimados e enrolados devido ao fogo que consumira o acampamento no cimo da montanha.
Colado por baixo da imagem encontrava-se um pedaço de papel com o nome de Jake e a morada da casa da família em North Hampshire, Connecticut, escrito com a letra do seu pai. A encomenda chegara seis semanas depois de os bandidos terem atacado o acampamento dos pais.
Isso acontecera há três anos.
Era o último e o único contacto dos seus pais.
Jake passou os dedos pelo fino cordão que usava à volta do pescoço, enquanto se dirigia para a frente da turma. Através do polo de algodão, sentiu o pequeno objeto pendurado no cordão que assentava sobre o seu peito. Um último presente dos pais. O seu toque reconfortante ajudava-o a concentrar-se.
Ao seu lado, a professora aclarou a garganta:
— Turma, o senhor Jake Ransom vai ensinar-nos… bem… quero dizer, a sua apresentação oral é sobre…
— O meu relatório — disse ele, interrompendo-a — é sobre as técnicas astronómicas da civilização maia relativamente à precessão dos equinócios.
— Sim, sim, claro. Equinócios. Muito interessante, senhor Ransom — disse a professora, ao mesmo tempo que acenava com a cabeça de uma forma talvez demasiado vigorosa.
Jake desconfiava que a professora Agnes Trout não percebia totalmente do que tratava o relatório. Ela recuou para a sua secretária, como se estivesse com medo de que ele lhe fizesse uma pergunta. Tal como toda a gente, a professora devia ter ouvido a história do senhor Rushbein, o professor de geometria, o qual tivera um esgotamento nervoso depois de Jake refutar um dos seus teoremas em frente da turma toda. Agora, todos os professores da Escola Preparatória de Middleton olhavam para Jake com alguma preocupação. Quem seria a seguir?
Jake pegou num pedaço de giz e escreveu alguns cálculos no quadro.
— Hoje vou mostrar-vos como o povo maia conseguia prever eventos como os eclipses solares, tal como o que vai acontecer na próxima terça-feira…
Uma bolinha de papel atingiu o quadro junto à sua mão e fez com que o pedaço de giz se partisse, produzindo um guincho agudo.
— Eles conseguiam prever isso?
Jake conhecia a voz. Craig Brask. Um linebacker da equipa júnior de futebol americano. Enquanto Jake saltara um ano, Craig ficara retido. Desde então, Jake tornara-se alvo daquele troglodita musculado.
— Senhor Brask! — exclamou a professora Trout. — Não vou tolerar mais faltas de comportamento suas na minha aula. O senhor Ransom ouviu a sua apresentação com respeito.
Com respeito? O relatório de Craig era sobre a Batalha de Little Bighorn e ele até conseguira perceber mal o fim: os índios levaram uma grande coça!
Quando o burburinho esmoreceu, Jake respirou fundo duas vezes para se concentrar e preparou-se para continuar a sua apresentação. Ao preparar este relatório, Jake descobrira que os maias eram astrónomos exímios, que compreendiam o grande movimento do cosmo. Essa pesquisa fez com que se sentisse mais próximo dos pais. Era o trabalho a que os pais se tinham dedicado a vida inteira. Contudo, agora, diante do quadro, Jake sentia o aborrecimento da turma atrás dele. Abanando ligeiramente a cabeça, Jake pegou no apagador e passou-o por cima dos cálculos que acabara de escrever. Aquilo não era o que a turma queria ouvir. Virou-se de frente para eles, aclarou a garganta e falou de forma decidida.
— É bem conhecido que os maias praticavam rituais de sacrifícios humanos. Chegavam até a retirar o coração da vítima… e a comê-lo.
A súbita mudança de tópico chocou a turma e dissipou o tédio dos seus rostos.
— Isso é doentio — observou Sally Van Horn da fila da frente, endireitando-se na cadeira.
Jake desenhou o contorno de uma figura humana no quadro e explicou pormenorizadamente o método do ritual: desde os tipos de facas utilizadas na matança até à forma como o sangue era recolhido do altar para taças especiais. Quando a campainha da escola soou, ninguém se mexeu. Um aluno até pôs a mão no ar e perguntou:
— Quantas pessoas é que eles mataram?
Antes que conseguisse responder, a professora Trout acenou-lhe para que parasse.
— Sim, muito interessante, senhor Ransom. Mas penso que é suficiente por hoje.
A professora parecia um pouco esverdeada, talvez devido à descrição de Jake de como os maias usavam ossos e intestinos para prever o tempo.
Jake disfarçou um ligeiro sorriso enquanto sacudia o pó do giz das mãos e regressava à secretária. Alguns alunos aplaudiram no final da sua apresentação, mas, como era habitual, foi ignorado pela maioria. Observou os outros a ir-se embora, em grupos de dois ou três, a rir, a brincar e a sorrir.
Como era novo na turma, Jake ainda não tinha feito amigos. E não se importava com isso. A sua vida já era demasiado preenchida. Determinado a seguir as pisadas dos pais, tinha de se preparar — de mente e corpo — para alcançar esse objetivo.
Quando chegou à sua secretária, pegou na mochila e reparou que o seu caderno continuava aberto. Ficou parado durante alguns instantes a observar a fotografia dos pais colada à contracapa, depois fechou o caderno, pôs a mochila às costas e dirigiu-se para a porta.
Pelo menos, não tinha de ir à escola durante uma semana.
Nada podia correr mal.
Jake desceu apressadamente os degraus de mármore da escola sob a luz radiosa do sol de abril e dirigiu-se para a sua bicicleta de montanha.
Um riso animado atraiu a sua atenção para a esquerda. Por baixo de um dos cornizos em flor no pátio da escola encontrava-se a sua irmã, Kady. Estava encostada ao tronco de uma árvore, vestida de amarelo e dourado, as cores do seu uniforme de chefe de claque. Combinava com as três raparigas à sua volta, embora fosse claro que ela era a líder do grupo. Era também o alvo das atenções de meia dúzia de rapazes de classe alta, todos exibindo casacos com insígnias de equipas desportivas.
Ela riu-se novamente com algo que um dos rapazes disse. Abanou a cabeça de uma forma bastante ensaiada, lançando uma cascata de cabelo louro, apenas alguns tons mais claros que o de Jake. Esticou uma perna, como se estivesse a fazer alongamentos, mas Jake sabia que era apenas para exibir o comprimento da sua perna e a sua nova pulseira de tornozelo prateada. Estava a tentar captar a atenção do capitão da equipa de futebol americano, mas este parecia mais entretido a dar murros no ombro de outro colega de equipa.
Por um breve momento, os olhos de Kady captaram a aproximação de Jake. Ele viu-os semicerrarem-se como em sinal de aviso, demarcando um território proibido.
Jake afastou-se. Acelerou o passo, preparando-se para contornar o grupo de elite da preparatória de Middleton. Estava tão concentrado nessa tarefa que nem reparou em Craig Brask até este se encontrar quase em cima dele.
Um braço comprido estendeu-se e bateu com a palma da mão no peito de Jake. Alguns dedos apertaram-lhe o polo.
— Onde é que achas que vais?
Craig Brask tinha mais um palmo que Jake e o dobro do seu peso. O cabelo ruivo do seu colega de turma estava rapado e o seu rosto tinha tantas sardas que dava a sensação de estar sempre corado. As mangas do blazer da escola estavam arregaçadas, o que expunha os seus braços que em tudo se assemelhavam aos de um macaco.
— Deixa-me em paz, Brask — avisou Jake.
— Senão o quê?
Nessa altura, já outros se tinham juntado à sua volta. Um burburinho elevou-se da multidão.
Quando Craig se virou para sorrir para a sua plateia, Jake aproximou-se e agarrou o polegar de Craig, torcendo-o. Ao longo dos últimos três anos, Jake estudara mais do que civilizações antigas. Preparara o seu corpo, tanto quanto a sua mente, frequentando aulas de taekwondo três vezes por semana.
Craig resfolegou quando Jake o soltou. O corpulento rapaz cambaleou para trás.
Sem querer que o confronto se agravasse, Jake virou-se e dirigiu-se para a sua bicicleta. Contudo, Craig atirou-se a ele e agarrou no colarinho de Jake por trás, não o deixando ir embora.
Jake sentiu o fino cordão de pele à volta do seu pescoço rebentar com a pressão. O peso que se encontrava pendurado no fio escorregou-lhe pela barriga, onde o polo estava entalado nas calças de ganga.
A raiva apoderou-se dele, violenta e cega.
Sem pensar, Jake virou-se e deu um pontapé no peito de Craig.
Craig voou para trás e aterrou de costas. O pé de Jake escorregou na relva e ele caiu com o rabo no chão, sentindo os seus dentes rangerem.
Alguém gritou:
— Kady, aquele não é o teu irmão?
Jake olhou de relance por cima do ombro. A elite da preparatória de Middleton virou-se toda na sua direção, incluindo o capitão da equipa de futebol americano.
Com o sobrolho carregado, Randy White aproximou-se. Todos os outros o seguiram, incluindo a irmã de Jake.
Ao chegar junto deles, Randy apontou para o nariz de Craig e disse:
— Brask, deixa o miúdo em paz.
A autoridade naquela voz não dava azo a debate.
Craig esfregou o peito dorido e franziu o sobrolho.
Randy estendeu a mão a Jake para o ajudar a levantar, mas este conseguiu pôr-se de pé sozinho. Não queria ajuda. Sacudiu a parte de trás das calças. Randy encolheu os ombros e virou-se, não sem antes murmurar:
— Miúdo esquisito.
Enquanto a elite se afastava, Kady permaneceu no mesmo lugar. Agarrou Jake pelo cotovelo e inclinou-se para ele.
— Para de me tentar envergonhar — sussurrou ela entredentes.
Envergonhar-te?
Jake sacudiu o braço para se livrar da irmã e retribuiu-lhe o olhar furioso, olhos nos olhos. Apesar de terem a mesma altura, Katherine Ransom era dois anos mais velha.
O rosto de Jake ficou ainda mais vermelho do que durante a luta. Sem ser capaz de falar, retirou o cordão preso por baixo da fralda da camisa. O objeto que estava pendurado nele caiu sobre a sua mão aberta.
Uma moeda de ouro. Na verdade, era apenas meia moeda, sendo que a moeda inteira fora partida ao meio, com uma imagem maia gravada em cada metade. A luz do sol brilhou e refletiu-se nos olhos de Kady. Ela levou a mão esquerda à sua própria garganta. A sua metade da mesma moeda estava pendurada numa fina corrente de ouro à volta do seu pescoço.
Os dois pedaços da moeda tinham sido enviados na encomenda há três anos, juntamente com o diário de campo do pai e o bloco de desenho da mãe. Nenhum dos dois sabia por que razão a encomenda fora enviada ou quem a enviara. Desde então, os dois símbolos de ouro nunca tinham abandonado o pescoço de Jake e Kady.
Jake olhou fixamente para o pedaço da moeda na sua palma. A luz do Sol refletia-se na sua superfície polida de ouro, fazendo com que o símbolo na sua metade brilhasse intensamente. Os símbolos chamavam-se glifos.
O glifo na sua moeda representava a palavra maia be (que se pronunciava BEI), em português, estrada.
Pela milionésima vez, Jake pensou no que significaria. Tinha de significar algo. Virando as costas à irmã, enfiou a moeda no bolso e dirigiu-se à sua bicicleta de montanha acorrentada.
Afastou-se a pedalar. Como ele desejava nunca mais ter de regressar a esta escola secante.
Contudo, abanou a cabeça.
Não, o seu coração estava demasiado cheio com um único desejo para se preocupar com qualquer outro.
Levou a mão ao bolso enquanto pedalava. Esfregou a palma por cima da moeda através das calças de ganga, como se se tratasse da lâmpada de Aladino.
Só havia lugar para um desejo no coração de Jake: descobrir o que acontecera à sua mãe e ao seu pai.
Era por essa razão que se esforçava tanto.
Se queria descobrir a verdade sobre a morte dos seus pais, descobrir por que razão tinham sido assassinados, tinha, antes de mais, de se tornar como eles. Tal pai, tal filho. Seguir-lhes as pisadas.
Com uma determinação renovada, Jake levantou-se do selim e subiu a custo a longa colina até casa.
Nada mais importava.