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O ESPETÁCULO
DO SENHOR BLEDSWORTH
Jake nunca estivera dentro de uma limusina. Nunca sequer imaginara a dimensão do seu interior. Parecia-lhe que se encontrava na barriga de um jato negro a voar rente ao chão.
A limusina percorria rapidamente as avenidas estreitas e as rotundas confusas da cidade de Londres. As buzinas dos carros soavam de forma estridente e alguns pedestres acenavam para o enorme veículo. Estavam atrasados.
Jake encostou a face ao vidro fumado. Tentou ver o céu.
— Não te preocupes — disse Kady ao seu lado. Com os auscultadores do seu iPod nos ouvidos, elevou um pouco a voz para se fazer ouvir. — Não vais falhar o eclipse.
Kady voltou a focar a sua atenção no pequeno espelho que tinha na mão. Estava a contemplar-se novamente, depois de ter passado a manhã inteira na casa de banho da suíte a fazer mil e uma experiências inimagináveis com brilho para os lábios, cremes hidratantes, gel para o cabelo, sombra para os olhos, enrolador de pestanas e um secador de cabelo… e até mesmo com algo que deixara um pó brilhante no tampo de mármore da casa de banho. Ainda assim, tal como qualquer cientista que se prezasse, Kady nunca parava de retocar o seu trabalho.
Jake ignorou-a e continuou à procura no céu azul. O Sol brilhava como uma nódoa negra amarelada através dos vidros fumados da limusina. A Lua aguardava, pronta para iniciar a sua inevitável passagem pela frente do Sol, transformando o dia em noite.
Jake abanava para cima e para baixo o joelho esquerdo devido a toda a excitação.
E também alguma preocupação.
Havia outra força tão imparável quanto a sua irmã.
Junto à linha do horizonte, nuvens negras surgiam no céu. Relâmpagos faiscavam no coração de uma tempestade que se aproximava. Era uma corrida contra o tempo. Se a tempestade não o deixasse ver o eclipse, Jake ficaria devastado.
A limusina fez uma curva bastante acentuada. Os pneus chiaram. Jake foi atirado para longe da janela. O gelo dentro de um copo de cristal tilintou. Uma mão enorme apanhou Jake e voltou a colocá-lo no seu lugar.
Uma voz trovejante ralhou com um sotaque inglês cerrado.
— Jovem senhor, se deseja ver o céu, talvez eu o possa ajudar antes que parta o pescoço.
Jake quase se esquecera de que partilhavam a limusina com Morgan Drummond, o que era algo surpreendente, tendo em conta o tamanho do homem. O seu corpo enchia toda a parte da frente da cabina de passageiros da limusina. Todo ele era músculo com feições grosseiras. Usava um fato às risquinhas com casaco de trespasse. O fato parecia uma autêntica tenda, mas ainda assim os seus bíceps esticavam o tecido a cada movimento. Parecia mais um instrutor militar do que o chefe de segurança da Bledsworth Sundries and Industries, Inc., o patrocinador exclusivo da exposição maia.
Drummond inclinou-se sobre Jake. Esticou um dedo grosso na direção de uma fila de botões junto ao cotovelo de Jake e pressionou um. O teto de abrir da limusina deslizou e o céu apareceu através do vidro.
Quando a limusina passou por um autocarro de dois andares, os passageiros do piso superior olharam de relance para baixo e para dentro da limusina. Jake deu por si a olhar para cima, para os rostos daquelas pessoas, como se fosse um peixinho dourado no interior de um aquário. Mãos apontaram. Jake acenou-lhes de volta, mas não obteve qualquer resposta.
— Vidros fumados — explicou Morgan Drummond. — Eles não te conseguem ver.
O homem corpulento recuou novamente para as sombras do seu lugar. Para alguém tão descomunal, Drummond tinha a estranha capacidade de se fundir no meio envolvente. Jake reparou num ligeiro brilho no meio da escuridão quando Drummond se inclinou para trás. Vinha do alfinete de gravata do homem. Era um pedaço de aço polido com a forma do símbolo da Bledsworth Sundries and Industries, Inc.
Um grifo.
A criatura mitológica tinha a cabeça, as asas e as garras de uma águia, com o corpo, as patas traseiras e a cauda de um leão. Com uma joia negra no lugar do olho, a figura encontrava-se de pé, como se estivesse prestes a atacar uma presa assustada. Alguns diziam que também representava as práticas de negócio da empresa: atacar os fracos e devorá-los inteiros.
Jake lera bastante sobre a empresa durante o voo do Connecticut para Londres. Ninguém sabia dizer ao certo quando ou onde fora fundada. Dava-se a entender que os seus «artigos diversos e indústrias» remontavam aos tempos medievais. Corriam rumores de que a família Bledsworth fizera a sua fortuna a vender falsas poções contra a Peste Negra. Também eram eles que recolhiam os corpos das vítimas, empilhando-os em carroças e vendendo as suas partes para investigação médica. Verdade ou não, os Bledsworth saíram da Idade das Trevas com mais ouro do que o rei de Inglaterra. Agora, com uma reputação bastante aceitável, eram proprietários de um quarteirão inteiro no centro financeiro de Blackfriars.
Jake sentou-se direito e aclarou a garganta. Fez a pergunta que o incomodava desde que aterrara em Londres.
— Senhor Drummond, porque é que a sua empresa está a patrocinar a exposição do museu?
Um resmungar pesado respondeu-lhe. Parecia pouco contente com a pergunta. Contudo, até Kady baixou o espelho de mão e retirou um dos auscultadores do seu iPod de um dos ouvidos para escutar a resposta.
Morgan Drummond suspirou.
— É muito caro montar este espetáculo. Os seguranças extra, os sistemas eletrónicos de vigilância… até o simples facto de convencer o governo mexicano a deixar estes tesouros nacionais saírem do país custam uma fortuna à empresa.
Pelo seu tom de voz, o homem não estava nada contente que a sua empresa gastasse tanto dinheiro em algo tão fútil.
— Então, porque está a empresa a fazê-lo? — perguntou Jake.
Drummond aproximou-se de Jake.
— O senhor Bledsworth insistiu. E ninguém contraria o senhor Bledsworth.
Jake franziu o sobrolho. Lera tudo sobre o reservado líder da empresa: Sigismund Oliphant Bledsworth IX.
Com noventa e muitos anos, o homem representava a nona geração da família Bledsworth, mas, solteiro e sem filhos, seria também o último. Existiam poucas fotografias de Sigismund Oliphant Bledsworth IX. Jake conseguira encontrar apenas uma na Internet, tirada quando Bledsworth era consideravelmente mais novo: um homem muito magro com um uniforme do exército inglês. Tal como os seus antecessores medievais, o seu passado estava envolto em rumores de falcatruas: histórias de roubos de obras de arte de França e da Alemanha durante a confusão da guerra. Também fora destacado para o Egito, onde permanecera algum tempo.
No entanto, depois da Segunda Guerra Mundial, deixou de se ver o líder da Bledsworth Sundries and Industries. Ele tornou-se mais fantasma do que homem.
Jake franziu o sobrolho.
— Mas qual é o interesse do senhor Bledsworth em montar este espetáculo?
— Não sabes mesmo? — indagou Morgan Drummond.
Jake encolheu os ombros, virou-se para a irmã e de novo para o homem corpulento.
— Não.
— O senhor Bledsworth sentiu-se obrigado a fazê-lo. Uma dívida a saldar.
— Uma dívida?
— Para com os teus pais.
O ar tornou-se subitamente mais pesado no interior da limusina. Jake sentiu dificuldade em respirar.
Drummond voltou a encostar-se para trás e desapareceu nas sombras.
— Quem é que achas que financiou a escavação maia dos teus pais? Quem é que achas que os mandou para lá?
Jake voltou a franzir o sobrolho. O senhor Bledsworth? Seria verdade? Teria o misterioso líder da Bledsworth Sundries and Industries pago aos seus pais para explorar o pico maia conhecido como a Montanha dos Ossos?
Porquê?
O condutor gritou da frente da limusina à medida que esta abrandava:
— Chegámos ao museu, senhor.
Os flashes e as luzes das câmaras cegaram-nos quando Jake e Kady saíram do interior escuro da limusina. Jake deu um passo atrás em choque, mas não tinha para onde recuar. Atrás dele, Morgan Drummond surgiu da limusina em toda a sua enormidade e pôs-se de pé como uma parede.
— Sigam e não parem — murmurou ele.
Drummond conduziu-os por entre uma torrente de jornalistas que se encontravam no passeio em frente do museu. As equipas de reportagem e os espectadores eram contidos atrás de dois cordões negros de veludo, que delimitavam a passadeira vermelha. À frente, o Museu Britânico erguia-se por trás de colunas de mármore, assemelhando-se a um cofre gigantesco. Uma faixa enorme encontrava-se pendurada nas colunas e anunciava a exposição.
Tesouros Maias do Novo Mundo
Jake reparou que muitas pessoas usavam óculos especiais para ver o eclipse.
Olhou para o céu. É claro que sabia que não o devia fazer. A Lua já começara a atravessar-se à frente do Sol. A coroa solar ofuscante fez os olhos de Jake arder. Desviou o olhar antes de provocar danos à visão. A sul, surgiu uma série de relâmpagos, seguidos pelo ribombar de trovões. A tempestade continuava a avançar pelo rio Tamisa e ameaçava ocultar o raro acontecimento.
— Não são uns queridos? — gritou uma mulher corpulenta.
— A cara chapada da mãe e do pai.
— E repara só naquela roupa adorável.
— São mesmo uns exploradores em miniatura — cacarejou outra.
Jake sentiu-se subitamente consciente da sua roupa. Por cortesia da empresa Bledsworth, ele e Kady tinham sido vestidos por uma loja cara de Savile Row, famosa pela sua roupa à medida. Jake vestia calças com bolsos de lado, estilo safári, com uma camisa de manga comprida, ambas em tom caqui, e um colete (com bolsos por todo o lado, uns com fecho, outros com botões, alguns dentro de outros bolsos). Tinha calçadas botas de escalada de Gore-Tex à prova de água e trazia uma mochila a condizer. Também queriam que ele usasse um chapéu de safári, mas Jake recusara.
Kady adorava o chapéu. Assentava-lhe bem. Mais flashes dispararam. Ela inclinou-se sobre uma anca e começou a enrolar timidamente um dos atilhos do chapéu à volta do dedo.
Jake revirou os olhos e continuou a andar em direção ao museu.
Os gritos e as interpelações tornaram-se indistintos. Ele só queria entrar, fugir de toda aquela agitação. A Bledsworth Sundries and Industries, juntamente com o museu, organizara um frenesim mediático: jornais, televisão e até posters nas paragens de autocarro e metropolitano. Tudo para promover a exposição. A história do desaparecimento dos pais de Jake fora uma grande notícia quando acontecera, uma história sobre ouro, bandidos e arqueólogos assassinados. Os jornais trouxeram tudo ao de cima novamente. Por esta altura, já toda a gente sabia da existência dos dois órfãos Ransom. E, agora, ter os miúdos aqui em carne e osso para a abertura da exposição atraíra qualquer um com uma câmara.
Morgan Drummond manteve-se perto dos ombros de Jake e empurrava com a palma da mão as costas de Kady, para que ela continuasse a andar. A sua voz retumbou no meio da multidão.
— Estamos atrasados! Vão ter tempo para tirar fotografias depois do evento.
Murmúrios de deceção seguiam os seus passos.
No entanto, Jake reparou na forma como Drummond olhou de relance para um dos membros da multidão, fixando o olhar nele. Junto aos cordões de veludo, encontrava-se um homem que mais parecia um sapo, atarracado e todo vestido de verde, a comer um dónute. Os seus olhos estavam enterrados por baixo de umas sobrancelhas farfalhudas. Os lábios grossos estavam cobertos de açúcar em pó. Tinha também uma câmara à volta do pescoço, mas estava simplesmente ali pendurada. Não se preocupou em pegar nela quando eles passaram.
O homem acenou ligeiramente com a cabeça para Drummond, que os apressou ainda mais.
Por fim, Jake e Kady passaram por baixo da faixa e entraram no museu. À exceção de alguns guardas de uniforme azul, o átrio estava deliciosamente vazio. Kady olhou de relance lá para fora com um ar melancólico.
— Vai haver uma cerimónia de abertura no Átrio da Rainha Isabel — disse Morgan Drummond, enquanto passavam por uma loja de lembranças e percorriam o chão de mármore polido.
— Vão estar lá mais câmaras? — perguntou Kady, abrindo o espelho compacto com a destreza de um atirador de facas.
— Apenas as equipas de reportagem do noticiário e do Times londrino — respondeu Drummond. — O museu organizou um evento exclusivo para os seus maiores patrocinadores. E até mesmo eles tiveram de pagar uma soma avultada para poderem assistir à cerimónia de abertura.
— A sua empresa recebe uma parte dessa soma extra?
Drummond olhou para Jake com um ar carrancudo, como se ele lhe tivesse feito uma pergunta simplesmente estúpida.
— É claro que sim. Vamos ter de angariar uma pequena fortuna só para não termos prejuízo com esta exposição. — Notava-se uma certa irritação na voz dele. — Porque é que acham que foram convidados? Não são os artefactos poeirentos que atraem uma multidão. As histórias por trás deles é que fazem com que as pessoas venham. Tal como a vossa… bem, a tragédia à volta da…
De repente, o homem corpulento pareceu aperceber-se de quem tinha à sua frente. Começou a falar de forma bastante atrapalhada. Teve a decência de corar do colarinho para cima e esfregou o pescoço.
O próprio rosto de Jake começou a aquecer, mas não de vergonha. Cerrou uma das mãos num punho quando se apercebeu de tudo. O convite para assistirem à exposição não fora feito para divulgar e celebrar as proezas dos pais, mas sim para se aproveitarem da sua tragédia: transformar a perda de Jake e Kady em dinheiro para a Bledsworth Sundries and Industries. Jake sentiu-se subitamente idiota e zangado. Ele e a irmã tinham sido trazidos para Londres para dançar como fantoches para a multidão, com o único fito de vender mais bilhetes.
Kady não pareceu perturbada com a revelação. Continuou a caminhar com vaidade, ansiosa pela próxima onda de flashes e atenção.
— Por aqui — disse Drummond, segurando a porta para eles passarem.
Quando Jake entrou, ficou maravilhado por uma visão tremenda. Um átrio interior gigantesco que se estendia por cerca de noventa metros de chão de mármore.
— O Grande Átrio da Rainha Isabel II — declarou Drummond. Enfiou a mão no bolso e entregou-lhes óculos com lentes pretas. — Óculos para verem o eclipse. É melhor usarem-nos.
Enquanto punha os óculos, Jake continuou a caminhar pelo átrio. As alas do museu rodeavam o vasto átrio por todos os lados. Escadarias circulares conduziam aos andares superiores. No entanto, o que captou mesmo a atenção de Jake foi a cobertura que fechava o átrio. Era composta por secções triangulares de vidro transparente que pareciam flutuar por cima das suas cabeças, sem qualquer peso e brilhantes devido à luz do Sol.
Jake esticou o pescoço e olhou fixamente através do telhado de vidro.
Os óculos com lentes escuras permitiam-lhe olhar diretamente para o eclipse, sem medo de ficar cego. A Lua já cobria metade do Sol. Não faltava muito para o eclipse total.
Os trovões ribombavam. Jake virou-se e olhou para sul. Já era visível a linha da frente da tempestade.
Será que se manteria longe tempo suficiente?