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O SOL NEGRO

Num canto recôndito do átrio do museu, Jake encontrava-se encostado a uma cabeça de pedra gigantesca da Ilha da Páscoa. A sobrancelha pesada e o nariz aquilino da estátua tinham sido esculpidos em basalto negro. Jake tinha uma expressão igualmente carregada no rosto enquanto observava a multidão.

Usando smokings e vestidos de gala, os convidados seguravam taças de champanhe. Um empregado com uma bandeja de prata passava entre eles com caviar barrado em tostas. Uma mulher exibia uma tiara de diamantes no alto de um monte de cabelo branco. Seria ela um membro da realeza?

Ao lado, Kady deleitava-se sob os holofotes de uma câmara de televisão. Um jornalista segurava um microfone felpudo junto do seu nariz.

— Então, diga aos espectadores da BBC 1 — começou o jornalista —, está entusiasmada com a exposição?

— Oh, claro — respondeu Kady, virando-se ligeiramente.

Jake sabia que ela estava a tentar realçar o seu melhor lado, ou pelo menos o lado que decidira naquela manhã ser o melhor para a televisão.

A irmã continuou a dar a entrevista, acenando muito com as mãos. Kady não se esquecia de balançar sobre os pés de vez em quando para que os seus caracóis perfeitos ondulassem da maneira certa.

Jake cruzou os braços. A revelação de Morgan Drummond sobre a razão de terem sido convidados para a exposição ainda o aborrecia. Apenas para vender mais bilhetes. Descruzou os braços e ajeitou o colete com um puxão. Sentiu-se tentado a arrancá-lo e a sair dali para fora. Mas e depois? E ainda tinha de ter em conta a irmã. Era óbvio que Kady não iria a lado nenhum.

Jake virou-se para o outro lado. Para lá da multidão, avistou uma fita grossa vermelha que se estendia de um lado ao outro no topo da escadaria que conduzia ao andar de cima. Um homem de cartola segurava uma tesoura demasiado grande, que mais parecia uma tesoura de jardinagem.

— O curador do museu — disse Morgan Drummond, sobressaltando-o. O homem corpulento aproximara-se por trás sem ele dar conta. — Já não falta muito. Vai acabar sem dares por isso.

Apesar de as palavras serem sussurradas, pareceram a Jake uma espécie de ameaça. Talvez por terem sido acompanhadas por outro ribombar de trovão.

Jake encolheu os ombros e saiu de baixo da sombra de Drummond. Olhou novamente para o céu. A Lua quase tapava completamente o Sol. Até mesmo com os óculos postos, o halo do Sol em volta da Lua brilhava intensamente e fazia com que os seus olhos doessem.

Jake pestanejou e virou-se quando ouviu uma campainha tocar, assinalando o início do evento oficial. Finalmente! Sentiu o coração bater com mais força. Todos os olhares se voltaram para a frente, enquanto o curador do museu erguia um braço para silenciar o burburinho da multidão.

As luzes das câmaras que brilhavam sobre Kady extinguiram-se subitamente. Ela relaxou, como se fosse uma planta privada de sol.

— Aqui vamos nós — disse Drummond.

O curador ergueu a tesoura.

— Se os jovens Ransom fizessem o favor de se juntar a mim! — chamou ele. — É mais do que apropriado que aqui estejam nesta ocasião auspiciosa. Em homenagem aos seus pais, os doutores Richard e Penelope Ransom.

Morgan Drummond arrancou Jake do seu esconderijo e pô-lo sob a luz da ribalta. Arrebanharam Kady a caminho da escadaria.

Uma salva de palmas incentivou-os a subir os degraus.

O curador continuou:

— Estou certo de que toda a gente conhece a história dos Ransom, de como descobriram a Montanha dos Ossos, um dos locais de escavações arqueológicas maias mais remotos e inóspitos. Ultrapassando todo o tipo de obstáculos, desde jaguares famintos a mosquitos transmissores de malária, eles exploraram um magnífico túmulo, repleto de relíquias de valor inestimável para a história e para o nosso entendimento da civilização maia. O Museu Britânico, com o apoio generoso e filantropo da Bledsworth Sundries and Industries — o curador acenou com a cabeça para Drummond, enquanto este subia as escadas com Jake e Kady —, tem o orgulho de apresentar ao público pela primeira vez os TESOUROS MAIAS DO NOVO MUNDO!

Outra retumbante salva de palmas seguiu as suas palavras.

Quando Jake e Kady chegaram ao cimo das escadas, o curador apontou para o céu e gritou:

— Observem!

As luzes do átrio foram apagadas.

Jake olhou para cima, boquiaberto. Estava a acontecer!

A Lua moveu-se de forma quase impercetível e cobriu completamente o Sol. O eclipse foi total. A coroa do Sol disparou raios deslumbrantes em volta da Lua escura, como se um sol negro ardesse nos céus.

Jake susteve a respiração, maravilhado.

Sob a luminosidade do eclipse, o salão ficou mergulhado num crepúsculo misterioso. As superfícies de mármore do átrio tomaram um brilho prateado, como se o chão e as paredes cintilassem com uma luz interior.

O curador falou na escuridão.

— Os próprios maias previram este eclipse através dos seus estudos e cálculos astronómicos ancestrais. Escolhemos este momento celestial para inaugurar a exposição.

O curador virou-se com a sua enorme tesoura.

— Senhor Ransom, gostaria de me ajudar?

Um holofote surgiu do nada e inundou de luz o topo das escadas.

Jake descolou o olhar do céu e fixou-o na fita vermelha. Ele sabia que o corredor que conduzia aos tesouros dos seus pais ficava para lá daquela fina fita. Acenou com a cabeça, ansioso por se despachar.

— Vamos a isto.

O curador sorriu e ergueu uma mão, fazendo sinal a Jake para aguardar, enquanto os flashes das câmaras disparavam em baixo. Kady encontrava-se de pé, com os braços cruzados firmemente. Jake sabia que mais tarde pagaria por lhe ter roubado a atenção naquele momento.

Como se ele tivesse tido escolha.

Jake agarrou na outra metade da tesoura e, juntamente com o curador, cortou a fita com um golpe rápido.

Quando a tesoura se fechou e a fita caiu, o clarão ofuscante de um relâmpago dilacerou o céu. Ouviu-se logo de seguida o som retumbante de um trovão. O teto por cima deles estremeceu com o impacto próximo. A audiência remeteu-se a um silêncio assustado, ouvindo-se em seguida algumas gargalhadas suaves.

O curador piscou o olho a Jake.

— Bem, não podíamos desejar um timing melhor, pois não, rapaz?

Pegou na tesoura e endireitou-se.

Jake virou-se para olhar para o céu. Nuvens de tempestade encobriram por completo o eclipse. Um crepúsculo ainda mais profundo engoliu o átrio.

O curador ergueu um braço para a multidão.

— Fiquem todos onde estão. Vamos voltar a ligar as luzes no átrio dentro de alguns momentos. Enquanto esperamos, talvez seja melhor deixarmos as crianças Ransom entrarem primeiro na exposição, para terem um momento só deles entre os tesouros que os seus pais descobriram.

Ouviram-se murmúrios de «Ah» e «Que comovente» entre a multidão, juntamente com alguns aplausos discretos.

Uma voz, contudo, sobrepôs-se a todas as outras, carregada de desprezo.

Os tesouros que os seus pais descobriram? Bah! É mais os tesouros que os seus pais ROUBARAM!

A última palavra ecoou pelo átrio como o tiro de uma caçadeira.

Seguiu-se um silêncio de espanto.

O homem continuou:

— Então, o que dizem dos rumores de que os Ransom ainda estão vivos na América do Sul? Que encenaram o seu próprio desaparecimento para se esconderem, levando o tesouro mais precioso de todos!

O coração de Jake subiu-lhe à garganta. O seu rosto ardia de raiva.

— Ouça — disse o curador. — Não vamos tolerar qualquer difamação maldosa…

O curador foi interrompido por um berro.

— Richard e Penelope Ransom não passam de simples ladrões, digo-vos eu!

As luzes voltaram ao átrio.

Jake tirou os óculos e localizou o homem na multidão. Era o jornalista com ar de sapo com que se tinham cruzado lá fora, o que estava a comer um dónute.

Jake deu um passo em frente, prestes a saltar para baixo e a fazer com que o homem retirasse o que dissera, mas a palma de uma mão enorme travou-o e empurrou-o para o corredor do segundo andar, que levava à exposição.

Morgan Drummond empurrou Kady com delicadeza para junto de Jake.

— Não há necessidade de vocês ouvirem estes disparates. Vão ver a exposição.

Atrás dele, o curador chamou a equipa de segurança. Os guardas passaram a correr por Jake e Kady e desceram as escadas.

Ainda assim, o homem continuou:

Ladrões! Vigaristas! Há sangue nas mãos dos Ransom!

Cada palavra era uma facada no coração de Jake.

Drummond deu-lhe um empurrão.

— Vai. Já vou ter convosco.

Kady olhou de relance para Jake. Tinha os olhos arregalados e estava aturdida, assustada.

— Jake…

Ele tinha de a afastar dali.

— Vamos indo — disse Jake.

Percorreram o corredor para a exposição com grande rapidez. Jake tropeçava, meio cego de raiva. Já se encontrava na exposição quando o seu cérebro finalmente registou as maravilhas à sua volta.

Jake parou. Kady também.

— É a mãe e o pai — disse Kady.

Ambos tinham parado à frente de um poster enorme. Era a mesma fotografia que Jake tinha no seu caderno. Os pais sorriam para a câmara, vestidos com calças enlameadas e a segurar um bloco de pedra com inscrições maias.

Atrás de Jake, os gritos ainda ecoavam vindos do átrio.

Mais mentiras sobre os seus pais.

Jake olhou para os seus rostos, a imagem ampliada em tamanho real. Era demasiado. Virou a cara. Um grito particularmente estridente chegou-lhe aos ouvidos.

Assassinos e ladrões!

Naquele momento, Jake lembrou-se de uma coisa: o homem que parecia um sapo acenara com a cabeça para Morgan Drummond quando eles entraram no museu.

Era como se os dois se conhecessem.

O aceno de cabeça.

Como se fosse uma espécie de sinal combinado.

Jake lembrou-se da revelação de Drummond. Seria aquela explosão de insultos apenas outra forma de obter mais publicidade para o espetáculo, de gerar alguma controvérsia em volta da exposição, de vender mais bilhetes?

Ou seria algo ainda mais sinistro?

Por mais alguns minutos, Jake vagueou pela exposição, perdido nos seus pensamentos. Kady também circulava pela sala. Mantinha os braços cruzados, como se tivesse medo de tocar no que quer que fosse. Andaram pela sala, descrevendo órbitas separadas, como dois planetas que não se atrevem a cruzar o caminho um do outro.

Quando Jake entrara na sala, as suas preocupações tinham começado a dissipar-se. O deslumbramento acalmou o batimento arrebatado do seu coração. A toda a volta, via artefactos e relíquias, tal como tinham sido desenhados ou descritos nos blocos de notas dos pais, incluindo a serpente de duas cabeças da brochura. Ao vivo, a estranha serpente era ainda mais encantadora, iluminada por luzes brilhantes de halogéneo. Os olhos da serpente eram rubis. As escamas estavam gravadas no ouro com um pormenor impressionante. As presas eram feitas de marfim ou talvez de osso.

Jake enfiou a mão num dos bolsos do colete e tirou o diário de campo do pai e o caderno de desenho da mãe, encadernado em pele. Fizera questão de trazer consigo ambos os cadernos na visita ao museu. Abriu o diário do pai e leu a entrada sobre a serpente de duas cabeças.

É evidente que, pela espiral intrincada da serpente num oito, a relíquia deve representar a crença maia na natureza eterna do cosmo. Pela perícia do trabalho, a escultura é representativa dos finais do período clássico. Consigo até imaginar…

Jake continuou a ler, ouvindo a voz do pai na sua cabeça enquanto percorria a exposição, parando em frente de cada objeto. Cada peça fazia-o sentir-se mais próximo dos pais. Teria a mãe polido aquele jaguar de prata ali? Teria o pai contado o número de círculos, tal como os anéis de uma árvore, que constituíam a roda do calendário maia?

Jake lembrou-se das aulas que lhe tinham sido dadas quando era pequeno… pela mãe, pelo pai. E não apenas sobre arqueologia. Lembrou-se da mãe a ensiná-lo a atar os atacadores.

O coelho passa pelo buraco do laço e sai pelo outro lado…

Deu por si a abrandar. Apesar de estar a milhares de quilómetros de Ravensgate, Jake sentia uma proximidade, uma familiaridade aqui, como se tivesse descoberto um quarto na sua casa há muito abandonado.

— Quanto tempo achas que temos de ficar aqui? — perguntou Kady, por fim, com o seu habitual tom de impaciência exagerada.

Jake virou-se para a porta. A agitação tinha acalmado no átrio, mas ainda se ouviam vozes a murmurar, demasiado baixas para se perceber o que diziam. Os trovões ainda ribombavam. Ao contrário da irmã, Jake não estava com pressa para sair dali. Uma sensação de posse dominou-o. Não queria ali mais ninguém. Seria como se alguém invadisse o seu coração. Na verdade, quase não conseguia tolerar a presença da irmã ali.

Jake precisava de ver a atração principal da exposição.

Sem qualquer estrutura de vidro à volta, a peça encontrava-se em cima de um pedestal: uma pirâmide de sessenta centímetros feita de ouro puro. Tinha nove degraus e um cume plano, sobre o qual se encontrava um dragão agachado com as asas abertas. O dragão fora esculpido num enorme bloco de jade. Os seus olhos, duas opalas ardentes, pareciam olhar diretamente para o coração de Jake.

— Kukulkan — murmurou ele, proferindo o nome do deus dragão emplumado dos maias.

Jake também reconhecia este objeto. De acordo com o diário de campo do seu pai, a relíquia de valor inestimável fora encontrada em cima da tampa de um sarcófago de calcário. Jake guardou o diário do pai e abriu o bloco de desenho da mãe. Folheando as páginas, procurou um desenho da pirâmide.

Do outro lado da sala, Kady finalmente percebeu o que Jake tinha nas mãos. Dirigiu-se rapidamente para ele.

— Jake! O que estás a fazer com isso aqui?

Ela não sabia que Jake trouxera de Londres os cadernos dos pais.

Ninguém sabia.

Ignorando a irmã, Jake encontrou a página certa. Comparou o desenho da pirâmide ao original. Estudou os desenhos minuciosos da mãe, as marcas da borracha, as correções, as pequenas notas rabiscadas nas margens da folha. Eram fragmentos da sua mãe. E aqui estava a sua inspiração.

A visão de Jake ficou turva por causa das lágrimas e as suas mãos começaram a tremer.

Antes que deixasse cair o caderno por entre os dedos, Kady arrancou-o das suas mãos.

— Porque é que trouxeste isto para aqui? — ralhou ela. — Podias tê-lo perdido ou alguém to podia ter roubado.

— Como se isso te tivesse importado.

Jake aproximou-se ainda mais da pirâmide.

Kady colocou-se ao seu lado e agarrou-lhe no cotovelo.

— O que queres dizer com isso?

Jake libertou o cotovelo com um safanão e olhou para ela, furioso.

— Tu nem sequer querias vir! — Jake deu pela sua voz a falhar e isso ainda o enfureceu mais. — A única razão por que vieste foi para posar para as estúpidas das câmaras!

As faces de Kady ficaram vermelhas de raiva.

— Tu não sabes…

Jake esticou-se e arrancou o caderno de desenhos das mãos dela.

— E se eu tivesse mesmo perdido o caderno da mãe? Tu não olhas para ele há anos.

Kady tentou agarrar Jake, mas este recuou e manteve-se fora do alcance dela.

Jake contornou a pirâmide para ficar do lado oposto da irmã.

— Já não queres saber da mãe e do pai?

Kady permaneceu do seu lado da pirâmide. Os seus ombros tremiam e o seu rosto ficara vermelho.

— É claro que quero! — gritou ela, enquanto agitava o braço, acenando em volta. — Achas que isto tudo, qualquer uma destas coisas, vai trazer a mãe e o pai de volta?

A dor crua da sua voz silenciou Jake. Ele nunca ouvira aquele tom na voz dela. Foi algo que o assustou.

Kady continuou:

— Tudo isto! O caderno de desenho da mãe. Estes tesouros… vê-los, estar perto deles… só me magoa. — Virou-se de costas para a pirâmide. — Então, vou olhar para quê? Que bem é que isso faz?

Os olhos de Jake arregalaram-se.

Kady abanou a cabeça.

— Não consigo suportar isto. Nem a ti!

— O que é que eu fiz? — perguntou Jake, magoado.

Ela virou-se novamente para ele.

— Porque é que não cortas o cabelo como toda a gente?

Jake passou os dedos pelo cabelo, tirando-o da frente dos olhos, confuso.

— Pareces-te tanto com o pai, que eu mal consigo olhar para ti.

Jake lembrou-se do que Kady dissera antes. Só me magoa.

Kady fungou e virou-lhe novamente as costas.

— Às vezes… às vezes queria que tu nunca tivesses…

Um clarão súbito inundou a sala, acompanhado por um estrondo retumbante.

O chão estremeceu por baixo dos seus pés e ouviram-se gritos assustados vindos do átrio. Jake e Kady viraram-se para lá e aproximaram-se um do outro. As luzes do teto piscaram e apagaram-se.

A escuridão engoliu a sala.

— O que aconteceu? — murmurou Kady na escuridão, passado um momento.

Jake deu um palpite:

— Um relâmpago. Deve ter atingido o museu.

À medida que os seus olhos se ajustavam à escuridão repentina, Jake reparou num brilho ténue vindo de trás deles. Virou-se e deixou escapar um gemido de surpresa.

— O que é? — arquejou Kady.

Jake agarrou no cotovelo de Kady e fê-la dar meia-volta.

— Olha!

Um suave fogo azul banhava a pirâmide. As chamas dançavam aos pés do dragão e escorriam pelos seus nove degraus abaixo. Jake contemplava a cena de boca aberta. Demorou ainda algum tempo até se aperceber de que vira algo semelhante num museu de ciência.

— O fogo de Santelmo — balbuciou ele, estupefacto. — Os marinheiros costumavam ver estas chamas fantasmagóricas nos mastros dos navios quando havia trovoada.

— Mas o que é que o está a causar?

Jake aproximou-se.

— Cuidado — avisou Kady, apesar de continuar a segui-lo.

Jake sentiu os pelos da nuca eriçarem-se.

— Não te preocupes. Parece que já está a desaparecer.

Tal como uma maré a vazar, o fogo recuou, serpenteando. Jake deu a volta à pirâmide e reparou em algo estranho.

— Vem ver isto — disse ele, e apontou.

As chamas não estavam a desaparecer, pareciam antes escoar-se por um buraco redondo na face lateral da pirâmide. Curioso, Jake inclinou-se mais sobre o artefacto. Uma parte enrolada da cauda do dragão de pedra circundava o orifício. No entanto, não era propriamente um buraco. Era mais uma indentação com pouca profundidade na superfície de ouro… como se uma joia lá tivesse estado e agora tivesse desaparecido.

As chamas desapareceram ao mesmo tempo que as luzes vermelhas de emergência se ligavam, lançando um brilho carmesim sobre toda a sala.

Jake endireitou-se.

Que estranho…

Curioso, abriu o caderno da mãe e procurou a página com o desenho da pirâmide. Sob a luz ténue, encontrou o mesmo buraco representado no desenho. Também estava vazio.

— Não está nada aqui — murmurou ele, batendo com o dedo no lugar do buraco.

Kady debruçou-se sobre ele.

— Pelo menos, já não está. — Kady esticou-se e sentiu o toque do papel. — Vê como está esborratado. Ainda é possível sentir uma ligeira impressão no papel. Estava algo aqui desenhado.

— Achas que foi apagado?

Kady acenou com a cabeça e respondeu:

— Quem quer que o tenha feito, apagou-o à pressa.

— Terá sido a mãe?

— Não sei.

Jake baixou o caderno de desenho e olhou fixamente para a pirâmide de ouro. Porque iria a mãe desenhar alguma coisa e, em seguida, apagá-la?

Jake inclinou a cabeça para o lado e examinou o buraco.

Era perfeitamente redondo, tinha o tamanho de…

Jake bateu com a mão na própria testa.

— É claro… — murmurou ele.

— O quê?

Jake não respondeu. Fechou o caderno de desenho e voltou a guardá-lo. Lembrou-se de outra das lições do seu pai.

Nunca presumas nada… essa é a maneira errada de fazer ciência… testa sempre e, em seguida, volta a testar.

Jake levou a mão ao pescoço. Passou o fio entrançado por cima da cabeça e soltou a sua metade da moeda maia de ouro.

Ergueu-a em frente da pirâmide. Parecia ser do mesmo tamanho do buraco.

Testa sempre…

Jake aproximou-se e estendeu a mão que segurava a moeda.

— O que estás a fazer? — gemeu Kady, assustada.

Ignorando-a, Jake colocou a sua moeda no buraco. Parecia caber perfeitamente no buraco… mas tinha de ter a certeza.

E, em seguida, volta a testar.

Ainda a segurar a sua metade no ar, disse a Kady:

— Experimenta a tua.

Jake sabia que ela tinha a sua metade da moeda, mas Kady abanou a cabeça.

— Kady! A mãe e o pai devem ter-nos enviado a moeda partida ao meio por alguma razão. Não queres saber porquê? Esta pode bem ser a primeira pista.

Kady hesitou. Jake viu o medo nos olhos dela… e talvez alguma dor.

Ainda assim, Kady levou lentamente as mãos à nuca, por baixo do cabelo. Abriu o fecho da corrente fina de ouro que segurava a sua metade da moeda. Pôs-se ao lado de Jake, ombro com ombro.

Tirou a moeda da corrente e segurou-a.

— Se eu apanhar um choque por causa disto… — avisou Kady, mas a sua voz denotava também um certo entusiasmo.

— Vê só se cabe.

Kady ergueu a moeda, mas, quando aproximou a mão da pirâmide, um grito ecoou pelo corredor de mármore, como um tiro de uma arma de caça grossa. Jake virou-se e viu Drummond a correr na sua direção.

NÃO TOQUEM

Jake não sabia explicar porque fez o que fez a seguir. Foi uma espécie de instinto, enterrado bem fundo no seu coração. Ignorando Drummond, Jake virou-se e agarrou na mão de Kady. Ela imobilizara-se com o grito repentino. Jake enfiou a metade dela da moeda maia no buraco da pirâmide. Coube na perfeição no lugar ao lado da dele.

Na perfeição.

De repente, a moeda, agora reconstituída, começou a brilhar intensamente, realçando os glifos maias juntos no centro.

Jake formou com os lábios as palavras representadas pelos dois símbolos: «sak be».

Traduzia-se por «estrada branca».

NÃO! — gritou Drummond.

O homem gritou outra coisa qualquer. Soou a Jake como um aviso, mas as suas palavras foram abafadas pelo som de outro trovão.

Ofuscante e tonitruante, a explosão rebentou as luzes de emergência.

Antes que Jake conseguisse reagir, o mundo desabou por baixo dos seus pés. O sangue subiu-lhe à cabeça, como se estivesse a cair por um poço abaixo. Estrelas dançavam na sua linha de visão. Um rugido ecoava nos seus ouvidos. Em seguida, até as estrelas desapareceram e a escuridão tornou-se de alguma forma ainda mais profunda.

Ainda assim, Jake continuava a segurar a mão de Kady. Parecia ser a sua única ligação a algo sólido e real. Os seus dedos apertaram ainda mais os dela. O momento prolongou-se.

Embora ainda estivesse encandeado, Jake sentiu que não estavam sozinhos no meio daquelas trevas. Os pelos minúsculos na sua nuca eriçaram-se. Ele sabia que algo o observava naquela escuridão.

Em seguida, começou a mover-se na direção deles.

Jake não via nada, mas sentia-o, como uma pressão a aumentar na sua cabeça, à medida que algo se aproximava. Os dedos de Kady apertaram com mais força os de Jake. Ela também o sentia.

Algumas palavras arranharam a cabeça de Jake, como unhas a raspar na tampa de um caixão de pedra. «Vem a mim…»

Jake imaginou dedos esqueléticos a tentarem tocar-lhe na escuridão. Antes que esses dedos o conseguissem alcançar, algo se lançou entre Jake e a criatura escondida nas sombras, como que a protegê-lo. Ainda cego, Jake apenas sentiu um sopro de vento repentino, como se algo com asas se tivesse lançado entre eles.

Quando a criatura alada passou, Jake caiu, e a escuridão à sua volta estilhaçou-se em mil pedaços. O mundo regressou num caleidoscópio de cor e som. Viu um clarão verde-esmeralda e ouviu o guincho estridente de um pássaro estranho. Em seguida, o mundo voltou ao normal. Com o estômago às voltas, os joelhos de Jake retomaram o equilíbrio, apesar de ele nunca ter chegado mesmo a cair.

Ou talvez tivesse caído.

Jake estava agachado ao lado de Kady. As duas metades da moeda de ouro tilintaram quando caíram aos seus pés. Jake apanhou-as do chão. A outra mão ainda agarrava a mão da irmã com força. Algo que ele não fazia desde os seis anos.

O mundo regressara, não havia dúvida… mas não o mesmo mundo de há alguns momentos.