6
O PORTÃO QUEBRADO
Jake subiu o trilho estreito que conduzia ao cume do penhasco, percorrendo a encosta íngreme aos ziguezagues. Marika ia à frente. Pindor seguia na retaguarda, guardando o grupo e obrigando-os a mover-se silenciosamente para não atraírem outros monstros. Escalaram a encosta depressa. O ritmo acelerado deixou muito pouco tempo para fazer perguntas.
Ainda assim, Jake conseguiu ver de perto o colar de jade de Marika. Tinha um símbolo gravado.
Não havia como enganar. Era definitivamente maia. O nome do glifo, balam, significava jaguar. O símbolo até parecia o gato da selva. Marika também usava uma blusa bordada maia, como a que a mãe de Jake trouxera de uma das suas viagens à América do Sul. Até a pele da rapariga era da mesma cor que o chá que a sua mãe bebia de manhã, misturado com uma colherada generosa de natas.
Seria ela realmente maia?
Então e Pindor? Jake conseguiu ver de perto o corte das suas sandálias e o trabalho de bronze na ponta da sua lança. Parecia tudo romano, talvez do século II a.C. Até mesmo o cabelo, comprido e amarrado atrás, tinha franja à frente, cortada a direito, como uma espécie de César deslocado no tempo.
Maias, romanos e tiranossauros?
O que é que se passava ali?
Depois de mais duas curvas no caminho, o cume do penhasco surgiu à sua frente. Uma passagem estreita ligava duas enormes torres de vigia, construídas com pedras escuras, cada uma com uma altura de dez andares. Outrora, um arco ligava as duas torres, mas entretanto desabara, deixando apenas as suas ruínas. As torres pareciam há muito desertas.
— O Portão Quebrado — observou Marika.
Enquanto subiam em direção à passagem, Jake reparou nas indentações e na cor de sangue escuro das pedras que compunham o portão. Rocha vulcânica.
Marika parou à frente dele tão de repente que Jake chocou com ela. Um guincho misterioso interrompeu o zumbido constante dos insetos. Vinha do céu e soava como se um coelho estivesse a ser estrangulado. Marika virou-se, os seus olhos arregalados de puro terror, mais terror do que mostrara com o tiranossauro.
Jake também se virou, e Pindor e Kady pararam. Bem alto no céu pairava uma criatura enorme com asas que pareciam feitas de couro. À primeira vista, Jake pensou que poderia tratar-se de um pterodáctilo, outro caçador sáurio, como o tiranossauro. No entanto, quando semicerrou os olhos, reconheceu que estava enganado. As asas pertenciam a uma criatura magra, que parecia ser apenas osso coberto de couro. Quando pairou por cima deles, Jake viu braços e pernas e uma cabeça calva, com uma crista rígida.
Todo o corpo de Jake estremeceu ao aperceber-se do carácter antinatural desta criatura. No entanto, ao mesmo tempo, lembrava-lhe algo… algo que já vira antes.
— Um grakyl! — exclamou Marika num tom de voz incrédulo e aterrorizado. O olhar dela varreu os céus e fixou-se em Jake. Pela primeira vez, ele detetou uma ponta de desconfiança na sua expressão. Segundos depois, essa mesma expressão desapareceu e transformou-se em preocupação. — Tentem chegar ao portão! É a nossa única hipótese!
Marika desatou a correr, enquanto outro guincho rasgava o céu.
Jake seguiu atrás dela, mas manteve os olhos na criatura. Por cima das suas cabeças, a criatura inclinou-se sobre uma asa. Jake sentiu o seu intenso olhar gelado a pairar sobre eles. Com outro guincho, encolheu as asas junto ao corpo e mergulhou em voo picado. Tinham sido avistados.
Marika subiu o trilho rochoso a correr em direção à passagem. As torres de pedra aguardavam por eles. Jake seguiu atrás dela, com Pindor e Kady no seu encalço.
Quando se aproximaram das torres, Jake começou a sentir picadas na pele, como se mil aranhas dançassem sobre ele. A cada passo, a sensação tornava-se mais e mais intensa. As picadas começaram a arder. Confuso, Jake tropeçou numa pedra solta.
— Mari! — gritou Pindor.
A rapariga maia olhou e viu Jake tropeçar. Voltou atrás e agarrou-o pelo pulso. A sensação de ardor desapareceu com o toque dela, embora Jake ainda sentisse uma estranha eletricidade e pressão no ar.
Jake deixou que Marika o arrastasse até ao Portão Quebrado e para a sombra das torres. Marika puxou-o por mais uns passos e a pressão desapareceu. Virou-se e viu que Pindor agarrava a sua irmã pelo cotovelo, atravessando o portão com ela.
A criatura alada lançou-se em voo picado com um guincho, mergulhando por baixo do arco partido. Jake baixou-se, mas a criatura estacou abruptamente. Esperneou no ar, presa ao arco, como um inseto preso com um alfinete a um cartão. Raios percorriam-lhe o corpo. Parecia que algum tipo de campo de forças a detinha.
Jake caiu para trás, conseguindo ver a criatura com atenção. Os membros que se agitavam terminavam em garras. Esporões afiados ornavam-lhe os joelhos e os cotovelos. Mas o rosto era o pior de tudo… não por ser monstruoso com o seu nariz porcino e uma goela com presas, mas porque era demasiado humano. Jake conseguiu detetar a inteligência por trás dos seus olhos angustiados. Aquele olhar intenso estava focado nele, de propósito, como se o reconhecesse.
Em seguida, com um último guincho estridente, o grakyl conseguiu libertar-se da força que o mantinha preso. Afastou-se do Portão Quebrado batendo as asas desesperadamente. Quando conseguiu afastar-se o suficiente, pareceu apanhar finalmente um pouco de vento a favor e voou para o interior da floresta.
Ao seu lado, Marika deixou escapar um longo suspiro. O olhar dela seguiu a criatura, certificando-se de que se fora realmente embora. Por fim, virou-se de costas.
— Um grakyl! — murmurou ela novamente. O medo ainda estava presente na sua voz, mas era agora pautado por exaltação e algum assombro. — Nunca tinha visto um…. só em desenhos… nas histórias.
— Mas que raio era aquilo? — indagou Kady, passando para a frente.
Marika apercebeu-se de que ainda segurava o pulso de Jake. Largou-o rapidamente.
Pindor respondeu à pergunta de Kady. A sua voz baixou para um sussurro, os olhos presos no céu.
— Grakyls. São as bestas amaldiçoadas do Kalverum Rex. O Rei Caveira. Os seus escravos. Os seus…
Marika interrompeu-o:
— Temos de ir embora. O Sol já se está a pôr.
Jake esfregou o pulso que Marika agarrara. Enquanto caminhava, lembrou-se do ardor que sentira. Jake achava que, se Marika não o tivesse agarrado pelo pulso, ele teria acabado da mesma forma que a criatura. Sem conseguir passar.
Existiria ali uma espécie de parede invisível? Algum tipo de defesa que impedisse qualquer coisa de atravessar o portão? Jake estudou as torres. Embora as pedras parecessem vulcânicas, não havia nada a mantê-las juntas. Em vez disso, pareciam estar encaixadas umas nas outras num padrão complexo, um puzzle feito de pedra. Jake também reparou em inscrições muito ténues ao longo da torre da esquerda.
Jake nunca vira nada igual.
Antes que conseguisse examinar melhor, Marika começou a percorrer o trilho, afastando-se do portão.
Jake não teve escolha senão segui-la.
Para lá das torres, estendia-se um enorme vale. Penhascos íngremes rodeavam-no, formando um círculo contínuo. O vale parecia a cratera de um meteoro, mas Jake reparou em fissuras ao longo de toda a sua orla, que fumegavam gases sulfurosos.
Não, não era a cratera de um meteoro.
O vale era o cone de um enorme vulcão.
E não se encontrava vazio.
— Que lugar é este? — perguntou Kady por fim.
Jake perguntava-se o mesmo, à medida que tentava perceber o que estava a ver. Em baixo, bem no fundo, uma grande parte do solo do vale não tinha árvores e estendia-se por vários quilómetros, assemelhando-se a uma manta de retalhos de campos cultivados e pomares. Estas terras rodeavam uma cidade de edifícios de pedra e casinhas de madeira.
À distância, a disposição daquele lugar não parecia fazer qualquer sentido. De um dos lados erguia-se o que parecia ser um castelo medieval. No entanto, para lá dele, cavadas no penhasco mais afastado, encontravam-se fileiras de casas semelhantes às que Jake visitara nos desertos do Novo México. E seria aquilo um obelisco egípcio a erguer-se da praça central? Parecia o Monumento a Washington em miniatura, mas com um escaravelho no topo, o símbolo do sol nascente dos antigos egípcios.
Não fazia sentido.
— Calypsos — disse Marika, com orgulho. — A nossa casa.
Marika começou a descer um caminho estreito de gravilha numa encosta pouco íngreme.
— Espera — disse Jake, com alguma dificuldade para encontrar palavras que expressassem a enormidade da sua confusão. — Como… Onde…?
Pindor foi atrás de Marika.
— Vais ter as tuas respostas em Calypsos.
As palavras de Pindor mais pareciam uma ameaça.
— Espera — continuou Jake, precisando de alguma coisa, de qualquer coisa… — Tu és romano, não és?
O rapaz ajeitou a sua toga.
— É claro que sou. Estás a questionar a minha herança?
— Não, não… — Jake virou-se rapidamente para a rapariga. — E, Marika, tu és maia, não és?
Ela acenou com a cabeça.
— Há quinze gerações, desde que os primeiros membros da minha tribo chegaram aqui. A família de Pindor chegou há dezasseis gerações. Contudo, existem outras Tribos Perdidas que se estabeleceram aqui há mais tempo. Há muito mais tempo.
Marika continuou a descer o caminho.
Jake seguiu-a.
Tribos Perdidas?
Jake estudou Calypsos novamente. Seria aquela estrutura com telhado de turfa uma casa comunal viquingue? E aquelas casas sobre estacas? Pareciam africanas. Mas não tinha a certeza. De qualquer maneira, parecia que os povos antigos de todas as épocas históricas e terras se tinham juntado ali em baixo.
Mas como… e porquê?
Jake estava ansioso por ver mais de perto.
Ao contrário da irmã.
Kady deixara-se ficar para trás. Tinha os olhos semicerrados de preocupação e desconfiança.
— Talvez não devêssemos ir tão longe. — Kady olhou de relance para trás, para as duas torres de pedra. — Se existe alguma saída deste Parque Jurássico, é melhor não nos afastarmos muito do sítio onde aterrámos.
Jake mal a ouviu. Uma última estrutura atraiu o seu olhar. Erguia-se para lá da estranha cidade, à direita, na zona bravia do vale, rodeada pela floresta. Na verdade, a maior parte permanecia escondida no interior da selva. Por essa razão, Jake não avistara a estrutura de imediato.
— Temos de encontrar uma maneira de voltar para casa — continuou Kady.
Jake ergueu o braço e apontou para a estrutura parcialmente escondida.
— E que tal começarmos à procura naquele sítio?
Kady olhou com atenção para onde ele apontava.
Apenas os dois níveis superiores da pirâmide se erguiam da selva o suficiente para que Jake avistasse a enorme escultura que se encontrava no cimo. Era um dragão de pedra, iluminado pelo fogo dos raios do Sol. O dragão encontrava-se agachado, com o pescoço esticado para o céu e as asas abertas, como se estivesse prestes a levantar voo. A sua forma era igual à do dragão no topo da pirâmide de ouro que se encontrava no museu, o mesmo que estava desenhado no caderno da sua mãe e descrito no diário do seu pai.
A mão de Jake procurou algo no colete caqui. A sua palma pousou sobre os cadernos dentro do bolso. Não havia como enganar no que dizia respeito à estrutura que ali se encontrava.
Era a mesma pirâmide.
Só que em tamanho real!
O espanto fez com que Jake ficasse imóvel.
— Vens ou não? — gritou Marika, ansiosa.
Jake olhou para Kady. Ele precisava que ela compreendesse. Os seus dedos apertaram os cadernos escondidos no bolso. Se a pequena pirâmide no museu, de alguma forma, os transportara para ali, de certeza que a versão maior que se encontrava no vale poderia conter a chave para o seu regresso a casa. Mas, mais do que isso, Jake imaginou a sua mãe e o seu pai a trabalharem dentro do túmulo no México, descobrindo a pirâmide de ouro mais pequena.
Será que eles tinham adivinhado a verdade? Será que tinham morrido para preservar o segredo da pirâmide?
Mais do que o caminho para casa, a pirâmide poderia dar-lhes a resposta para o maior mistério da vida de Jake… da vida de ambos.
O que acontecera realmente aos seus pais?
Um novo barulho interrompeu os seus pensamentos: o chiar de rodas e um chocalhar, juntamente com o ruído de algo grande. Pindor correu à frente para perscrutar o que se passava na curva.
O ruído tornou-se mais alto. Jake conseguia distinguir o som abafado de vozes. Em baixo, Pindor ergueu a lança em sinal de saudação, depois afastou-se para deixar passar o que aí vinha.
Duas criaturas surgiram, atreladas a uma biga de duas rodas. Jake engoliu em seco, incrédulo. As criaturas cinzento-esverdeadas que puxavam a biga eram do tamanho de cavalos… mas não eram cavalos. Cada uma parecia pesar meia tonelada, marchando sobre quatro patas.
— Europasaurus! — exclamou Jake. — Dinossauros pigmeus.
Três homens ocupavam a biga: um segurava as rédeas e os outros dois empunhavam lanças e espadas. Um saltou da biga e dirigiu-se a eles. Estava vestido como Pindor, mas também usava uma armadura de bronze e um elmo.
— Heronidus — disse Marika. A rapariga cruzou os braços e exclamou com azedume: — O irmão mais velho de Pindor.
O recém-chegado falou muito alto:
— O pai está furioso, Pin! O que é que estás a fazer aqui, junto ao Portão Quebrado?
— Nós estávamos… queria mostrar…
Heronidus apontou.
— Por Júpiter, essa é a lança do pai?
Pindor escondeu a arma atrás das costas. Olhou para cima, na direção de Marika, à espera de algum tipo de salvação.
Heronidus imobilizou-se surpreendido ao ver Jake e Kady. A sua mão deslizou para a espada embainhada. Fez sinal ao outro soldado romano para descer da biga.
— Intrusos…
O segundo soldado desembainhou a espada.
— Quem… — perguntou Heronidus de forma arrojada, tendo de aclarar a garganta para atingir o tom firme desejado. — Quem são vocês?
Pindor deu um passo à frente e assentou com firmeza a lança no chão.
— Acho… — A sua voz fraquejou. Olhou de relance para Jake e depois para os seus próprios pés. A sua voz tornou-se mais firme, assemelhando-se mais à do irmão. — Eles são espiões. Espiões enviados por Kalverum Rex, o Rei Caveira.