7
CALYPSOS
À medida que o dia se ia tornando mais quente, o caminho que conduzia ao vale revelou ser mais longo do que parecera inicialmente, quando visto do Portão Quebrado. Os prolongados períodos de silêncio e a troca de olhares desconfiados por parte dos dois rapazes mais velhos na biga faziam com que o caminho parecesse ainda mais longo. O par de dinossauros pigmeus puxava o freio, como que pressentindo a ansiedade. O condutor puxava constantemente as rédeas, para acompanhar os que se deslocavam a pé.
Percorriam rapidamente as terras de cultivo que cobriam o vale. Jake caminhava pesadamente atrás da biga, com Kady de um lado e Marika do outro. Pindor e Heronidus seguiam-nos, um com uma lança e o outro com uma espada.
Ninguém queria arriscar com espiões no meio deles.
Examinando a espada e a lança, Jake pensava em formas de fugir, mas para onde iriam ele e Kady? De volta para a floresta selvagem que os cercava? Não sobreviveriam durante muito tempo sozinhos.
E além disso…
A atenção de Jake voltou-se para a frente.
Marika devia ter notado que a atenção de Jake se virara subitamente para a pirâmide do dragão. Apontando, disse:
— Aquele é o grandioso templo de Kukulkan. Protege este vale e…
Heronidus interrompeu-a com uma ordem:
— Mari! Não fales com os espiões.
— Eu falo com quem eu quiser! E eles não são espiões — disse ela pela décima vez, como se ao declará-lo muitas vezes o fosse tornar realidade. — Eles são recém-chegados.
Heronidus disse num tom de chacota:
— Recém-chegados? Não temos a visita de desconhecidos há uma eternidade. E, se eles realmente são recém-chegados, aposto que foi a alquimia sinistra do Kalverum Rex que os trouxe aqui. Para colocar espiões no meio de nós.
Ao lado de Jake, Kady suspirou ruidosamente com repulsa. Olhou para Heronidus de cima a baixo com desdém. Era um olhar que aperfeiçoara na escola e que era capaz de destruir um caloiro num ápice.
O rapaz mais velho tentou ignorá-la, mas Jake reparou que ele corava um pouco e que começava a mexer nervosamente no cabo da espada.
Um movimento atraiu a atenção de Jake para a esquerda. Uma cabeça serpenteante surgiu do campo. Ergueu-se cada vez mais alto, a seis metros do chão, depois inclinou-se para a frente para examinar o pequeno grupo de viajantes que percorria a estrada.
Jake olhou para cima, sustendo a respiração. A pele da criatura era de um tom púrpura, tinha os olhos enormes e húmidos, por cima de lábios cor de mirtilo. Soltou um balido do seu nariz em forma de trombeta, depois voltou a afundar-se no campo e regressou ao seu pasto.
Kady agarrou no cotovelo de Jake.
— O que era aquilo?
Jake abanou a cabeça, demasiado espantado para falar. Parecia uma espécie de dinossauro ornitópode.
— Nós chamamos-lhes sopra-cornetas — disse Marika. — São ótimos para puxar os arados.
Quando o dinossauro desapareceu, Pindor esfregou a barriga e disse:
— Não devíamos parar para comer?
Heronidus ralhou com o irmão mais novo:
— Não vamos parar. Não quando trazemos prisioneiros connosco. — Olhou fixamente para Jake, depois para Pindor. — E vais ter muita sorte se te derem água e pão seco depois de o pai descobrir que foste ao Portão Quebrado… e que levaste a lança dele.
— O pai não tem de ficar a saber da lança, pois não? — suplicou ele.
Heronidus encolheu os ombros e continuou a caminhar.
— Vamos ver.
Cerca de um quilómetro à frente, estendia-se a cidade de Calypsos. Construída numa pequena colina, erguia-se do fundo do vale. No entanto, por mais que aquele lugar o intrigasse, a atenção de Jake foi atraída para lá das suas fronteiras. Nas profundezas do bosque selvagem, que fazia fronteira com as muralhas à direita da cidade, o enorme dragão de pedra pairava sobre as copas das árvores, as suas asas abertas. Parecia olhar fixamente para Jake. Apenas o dragão era visível daquele ângulo. A pirâmide encontrava-se enterrada na floresta.
Jake trocou um olhar esperançoso com Kady. Mesmo tão perto, o dragão parecia corresponder exatamente ao artefacto que se encontrava no Museu Britânico. A pirâmide tinha de conter alguma pista sobre como voltar para casa.
Marika parecia ter lido o desejo no rosto de Jake. Abanou a cabeça em sinal de aviso e disse:
— É proibido ir até lá. Apenas os três Mestres da Alquimia têm permissão para entrar e contemplar o coração de cristal de Kukulkan.
Jake ouviu o desejo na voz da rapariga, o que inflamou ainda mais a sua própria curiosidade.
O coração de cristal de Kukulkan? O que era isso?
Heronidus resmungou, descontente.
— Chega, Marika. Já te disse. Não podes falar com os espiões.
— Eles não são espiões! — insistiu ela mais uma vez.
Kady aclarou a garganta. Ruidosamente. De imediato, todos os olhares se voltaram para ela. Até mesmo os dois dinossauros pigmeus que puxavam a biga viraram os seus longos pescoços na sua direção.
Jake franziu o sobrolho. Como é que ela fazia aquilo?
Kady apoiou um punho fechado sobre a anca. O seu choque inicial transformara-se em irritação. Abanou o chapéu caqui em frente ao rosto para arrefecer, depois agitou-o perante o grupo.
— Não percebo. Todos vocês são gente estranha. Como é que falam todos inglês?
Heronidus inclinou a cabeça para o lado, estudando-a.
— Ang-lês? É essa a língua da tua terra?
Kady anuiu com a cabeça.
— É claro que sim. É a língua que vocês estão a falar também.
— Não. Nós falamos toda-a-terra. Tal como tu estás a falar agora.
Kady tocou com os dedos nos lábios, parecendo preocupada.
— Toda-a-terra? — indagou Jake.
— É um dom concedido pelos deuses do templo — explicou Heronidus, e apontou para a pirâmide com a espada, violando a sua própria ordem de não falar com eles.
Marika explicou melhor:
— O mesmo escudo que se ergue de Kukulkan e protege o nosso vale, também concede uma língua comum a todas as Tribos Perdidas. Para que todos se percebam. De forma a unir todos em paz e harmonia.
Jake olhou fixamente para o dragão de pedra. Funcionava como uma espécie de tradutor universal.
— Mas não nos esquecemos da língua das nossas próprias tribos — acrescentou Heronidus, tirando a couraça. — Podemos falá-la, mas requer concentração.
Demonstrando isso, Heronidus cuspiu algo em latim, dirigido a Pindor. Soava a um insulto.
Pindor corou e Marika redarguiu:
— O Pindor não é um cobarde! Ele é mil vezes mais corajoso que tu!
O comentário de Marika foi acolhido por um riso de troça de Heronidus.
A rapariga maia voltou a apontar para o lugar de onde tinham vindo.
— Ficas a saber que não estivemos apenas no Portão Quebrado. O Pindor e eu saímos para fora do portão.
Pindor retesou-se.
— Mari!
— Nós fomos às selvas profundas buscar o ovo de um lagarto-trovão!
Os olhos de Heronidus arregalaram-se, enquanto voltava a atenção para o irmão mais novo.
— Foste para além do Portão Quebrado?
— Heron… — gaguejou Pindor, procurando as palavras. — Eu tinha de tentar… porque…
Heronidus interrompeu a explicação de Pindor, brandindo a sua espada.
— Quando o pai ouvir isso, vais ficar trancado no teu quarto até à próxima lua cheia. E com toda a razão!
Pindor abanou tristemente a cabeça para Marika.
Marika estremeceu e proferiu com os lábios Desculpa.
Começaram a caminhar ainda mais depressa e chegaram ao portão da cidade. As muralhas erguiam-se a uma altura de dois andares. O pesado portão de ferro estava aberto.
Heronidus correu à frente e falou com um guarda que se encontrava apoiado numa lança. Jake não conseguiu perceber o que diziam, mas Heronidus apontou para ele e para Kady.
O guarda endireitou-se. Os seus olhos arregalaram-se quando viu os desconhecidos. Acabou por anuir com a cabeça, afastou-se e acenou. Passado um momento, surgiram duas criaturas enormes.
Jake reconheceu a espécie.
Othnielia.
Apoiados sobre as duas patas traseiras, cada um carregava um cavaleiro com uma armadura leve, polida e a brilhar ao sol. Um dos cavaleiros inclinou-se na sua sela e falou com Heronidus, que acenou e voltou a correr para junto do grupo.
— Vamos! — ordenou ele, o seu rosto corado devido ao entusiasmo.
Com a monstruosa escolta, o grupo atravessou o portão e entrou na cidade. Jake não sabia o que esperar, mas Calypsos era tão caótica quanto colorida.
No interior, as ruas eram pavimentadas de pedras arredondadas e as casas amontoavam-se junto umas das outras. Uma mulher de avental inclinou-se para fora de uma janela de um segundo andar e gritou para um homem magro que puxava uma carroça.
— Eu quero dois melões-sangue e um balde dessas bagas. Mas é bom que estejam maduras desta vez, Emmul!
— Maduras e suculentas, como sempre!
Jake esperava que o lugar cheirasse mal, com tantas pessoas e animais juntos, mas a cidade era atravessada por canais, aquedutos elevados e sarjetas. Era uma fantástica obra de engenharia. Até mesmo a rua principal formava uma espiral interminável que conduzia ao cume da colina, onde um castelo de pedra, ladeado por duas torres, aguardava por trás de muralhas altas.
— Kalakryss — disse Heronidus, nomeando o lugar. — É onde se encontra o Conselho dos Anciãos.
Era claramente o seu destino.
Enquanto caminhavam, Jake observava becos e avenidas. Para onde quer que olhasse, Jake reparava em aspetos de outras culturas de todos os continentes e épocas: uma cabana de sudação nativa americana, um templo sumério, um enorme Buda de madeira. No meio de uma praça, encontrava-se um elegante obelisco egípcio com hieróglifos entalhados.
Marika parecia ter reparado no seu olhar espantado.
— Há muitas tribos. Mais de quarenta.
— Como é que todas elas vieram aqui parar? — perguntou ele.
Era uma questão que preocupara Jake ao longo de toda a caminhada. O peso da moeda que trazia à volta do pescoço tornava-se cada vez maior, à medida que refletia no milagre da sua própria chegada. Tinha de existir algum tipo de portal. As moedas deviam ter funcionado como chaves. No entanto, podia não ser essa a única maneira de chegar aqui, não para todas estas pessoas.
Marika abanou a cabeça e respondeu:
— Não sabemos. Há muitos séculos, as Tribos Perdidas foram atraídas para este mundo selvagem, foram arrastadas das suas pátrias. Todos chegámos com poucas gerações de diferença uns dos outros e estabelecemos as nossas casas aqui no vale. Onde Kukulkan nos protege.
Jake olhava de Pindor para Marika. Como podiam tribos de eras da história da humanidade tão diferentes umas das outras chegarem praticamente ao mesmo tempo? Se o que Marika dizia era verdade, isso significava que as tribos tinham sido arrastadas das suas pátrias, bem como das suas linhas temporais.
— Circulam rumores de que há outras cidades como Calypsos — continuou Marika. — Noutros vales bem no coração da selva. Mas aqui vivemos o melhor que podemos, em paz e cooperação uns com os outros e com a terra. Pelo menos, costumávamos…
Jake detetou um laivo de preocupação nas últimas palavras dela. Podia tentar adivinhar a razão.
— O Rei Caveira de que falaste? Quem é…?
— Vocês os dois não deviam estar a conversar! — disse Pindor, metendo-se no meio deles. — Já temos todos problemas que cheguem.
Heronidus olhou furioso para trás e gritou:
— Despachem-se!
Marika suspirou, mas obedeceu.
Com a cabeça a mil, Jake continuou a atravessar a cidade. Tribos Perdidas. Ao longo da história da Terra, Jake ouvira histórias idênticas de vilas que desapareceram de repente, de legiões romanas que se eclipsaram sem rasto, de civilizações inteiras que foram simplesmente engolidas pelo tempo.
Seria este o lugar onde todos tinham vindo parar?
Sentiu que havia muito mais para saber.
— Ai! — exclamou Kady, um passo ao lado de Jake.
Kady raspou vigorosamente a sola da sua bota esquerda numa das pedras arredondadas que pavimentavam o chão.
Jake olhou de relance por cima do ombro e viu a pegada da bota de Kady numa pilha de algo que mais parecia terra escura, junto à beira da estrada. Só que não era terra. O cheiro deixou isso claro. Fezes de dinossauro.
Jake tentou não sorrir… sobretudo porque a irmã voltara para o seu lado com o rosto pálido e esverdeado.
— Nós não pertencemos aqui — disse ela. — Temos de voltar para casa.
— E vamos para casa — sossegou-a Jake com mais segurança do que a que ele mesmo sentia.
Kady respirou fundo e acenou com a cabeça.
— É só capaz de demorar algum tempo até descobrir como fazer isso — acrescentou ele entredentes.
Jake olhou em redor, para aquela miscelânea de culturas, cada vez mais confuso. Uma nova preocupação assaltou-lhe o pensamento. Se estas pessoas, passados tantos séculos, não tinham descoberto como abrir o portal para regressarem a casa, como poderia ele ter esperança de o conseguir fazer sozinho? Guardou este medo para si mesmo e estendeu a mão para agarrar na de Kady.
Ela apertou-lhe a mão com força.
Até lá, pelo menos, tinham-se um ao outro.
Por esta altura, a entrada deles na cidade começava a atrair cada vez mais olhares curiosos. As pessoas apontavam e as crianças corriam para eles, puxavam a mochila de Jake e tocavam com curiosidade na roupa de Kady. Heronidus ou um dos guardas montados afastavam-nos constantemente.
Uma rapariga egípcia, com pouco mais de cinco anos, com a cabeça rapada e os olhos pintados, ignorou Heronidus e aproximou-se a correr de Kady. Segurava uma flor com pétalas carmesim e disse:
— És bonita.
Kady aceitou o presente, bem como o elogio.
— Obrigada.
Jake notou uma ponta de alívio na voz da irmã com este simples ato de boas-vindas. Kady largou a mão de Jake e segurou a flor com ambas as mãos. O esboço de um sorriso pairou-lhe nos lábios. Com este pequeno gesto, talvez Kady tivesse agora algo a que se agarrar, onde ir buscar forças.
Teria sido assim que a comunidade de Calypsos se formara?
Através de um simples ato de boas-vindas de uns para os outros?
Jake observou que a estrada fazia uma curva. Mesmo à frente, erguia-se o castelo de Kalakryss. Reparou que havia guardas a fazer a ronda nas muralhas. Pensou que tipo de boas-vindas poderiam esperar.
Olhou de relance para Marika.
O seu rosto tinha uma expressão preocupada.
Não era um bom sinal.