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ESTRANHOS NUMA TERRA DESCONHECIDA

Com uma lança apontada às costas, Jake caminhou para o pátio do castelo. Ao centro, por baixo de uma árvore do tamanho de uma sequoia, encontravam-se ainda mais soldados a conversar e a rir. À esquerda, junto à muralha do castelo, erguia-se um conjunto de estábulos de pedra e currais de madeira.

As montadas da sua escolta emitiram um som suave, pressentindo que se aproximavam de casa e de comida. Os Othnielia atiraram as cabeças para trás, mas os soldados nas selas bateram ao de leve nos flancos das criaturas com pequenos paus, semelhantes a bastões, guiando-os e comandando-os com vozes apaziguantes. Na Índia, também era assim que se acalmavam os elefantes.

Ao atravessarem o portão, aproximou-se um grupo de soldados. Vinham dos campos de treino do outro lado do pátio, onde aprendiam a lutar com espadas e lanças. Casernas de dois andares delimitavam os campos. Um homem alto, com um elmo de onde brotava uma pluma carmesim, conduzia os soldados.

— A Guarda Montada — sussurrou Marika ao lado de Jake. — O Heronidus está a treinar para se juntar a eles.

Heronidus avançou e saudou o soldado com o elmo da pluma carmesim, levando o punho direito ao peito.

— Centurião Gaius, temos desconhecidos nas nossas terras para apresentar ao Conselho dos Anciãos.

O centurião olhou de relance para Jake e Kady. A sua reação limitou-se a um ligeiro arregalar de olhos.

— Acreditamos que possam ser espiões enviados pelo Kalverum Rex — acrescentou Heronidus, e endireitou as costas de tal maneira que Jake pensou que as fosse partir.

O centurião estudou atentamente Jake e Kady. A dureza da sua expressão suavizou-se, parecendo divertido. As rugas em volta dos seus olhos acentuaram-se, o que indicava que o homem ria com frequência. Jake deu por si a simpatizar com Gaius, apesar de o homem nem sequer ter dito uma única palavra.

— Se eles são espiões — disse o centurião —, então o Rei Caveira anda a ensiná-los cedo.

Heronidus mudou de posição. O seu rosto ficou vermelho como um tomate ao ouvir a dúvida no tom de voz do centurião. Olhou rapidamente para Pindor, como se estivesse a culpar o irmão mais novo. Para não ficar malvisto, Heronidus virou-se para o centurião e retorquiu:

— Mas não devíamos deixar o Conselho dos Anciãos ponderar esse assunto e decidir…

O centurião Gaius bateu no ombro de Heronidus, silenciando-o.

— Tens razão, jovem Heronidus. Estes dois devem ser levados ao Conselho dos Anciãos. Acontecimentos estranhos marcaram a chegada deles aqui, sobretudo tendo em conta os últimos rumores vindos dos nossos batedores nas profundezas da selva… pelos menos dos poucos que regressaram…

O rosto do centurião tornou-se sombrio e acenou com a cabeça para os dois guardas montados.

— Vou levá-los ao conselho. Vocês os dois regressem aos vossos postos junto aos portões.

Gaius virou-se para Jake e Kady depois de falar com um rapaz vestido com uma toga. O rapaz afastou-se a correr em direção ao castelo. Era provavelmente um mensageiro, enviado à frente para anunciar a sua chegada.

— Eu sou Marcus Gaius, primeiro centurião da Guarda Montada.

— Jake… Jacob Ransom. Esta é a minha irmã, Kady.

Katherine Ransom — corrigiu a irmã, endireitando-se, embora tenha corado um pouco com a atenção do homem.

Gaius acenou com a cabeça.

— Nomes tão invulgares como as vossas vestes. Se fizerem o favor de me seguir, vamos pedir uma audiência ao conselho. — O centurião voltou o seu olhar para Heronidus, Pindor e Marika. — Vocês vêm todos e vão fazer um relatório completo ao conselho.

À direita de Jake, Pindor resmungou baixinho. Era bastante óbvio que não estava contente por ter de explicar onde estivera com Marika. Por outro lado, Marika acenou vigorosamente com a cabeça, disposta a cooperar para provar que tinha razão em relação aos desconhecidos.

Em grupo, dirigiram-se para a entrada principal do castelo. Ao passar pela sombra debaixo da árvore, Jake ouviu um rumor sobre a sua cabeça e olhou para cima. Entre os ramos mais baixos estavam penduradas pequenas criaturas com asas cobertas de escamas e cabeças pontiagudas.

Pterodáctilos minúsculos.

— Alguma notícia dos caçadores no terreno? — perguntou Gaius a um dos soldados que se encontrava a descontrair e que se pôs imediatamente em sentido.

— Não, centurião Gaius. Nem um único dardo-alado regressou da selva nas últimas duas semanas. Estamos a preparar-nos para enviar outro agora. — O homem apontou para onde se encontrava um soldado sentado num banco. O soldado tinha um dos pterossauros pigmeus preso entre os joelhos e estava a atar um pequeno tubo prateado às suas costas, como se fosse uma pequena sela.

— Temos estado a enviar dois dardos-alados por dia, como foi pedido — acrescentou o soldado que caminhava rigidamente ao lado de Gaius —, mas nenhum deles regressou.

O soldado que se encontrava sentado terminou o seu trabalho, levantou-se e atirou o pequeno pterossauro ao ar. As suas asas abriram-se e apanharam o vento. A criatura pairou pelo pátio fora e, com um suave bater de asas, transpôs a muralha e afastou-se.

Jake observou a criatura a voar, depois olhou para cima, para os ramos cheios de pterossauros. Deviam ser usados como mensageiros. Como os pombos na sua terra.

Distraído, Jake bateu com o joelho numa caixa que se encontrava no chão. Um silvo fê-lo recuar. A caixa era uma jaula de madeira com barras de um dos lados. Uma criatura encontrava-se agachada ao fundo. Jake não conseguia ver o que era, mas dava para perceber que estava zangada por ter sido incomodada. Só viu um par de olhos dourados, que refletiam o brilho do sol poente.

Aproximou-se, curioso… De repente, a criatura atirou-se contra as grades. Aturdido, Jake caiu para trás. A criatura enjaulada não era maior do que o seu cão, Watson. No entanto, este animal estava coberto de pelo todo negro com laivos de laranja-vivo. Tinha o pelo eriçado e uma pequena juba emoldurava um focinho de onde brotavam presas tão compridas como a mão de Jake esticada. A criatura cuspia e sibilava. O seu focinho arreganhado exibia agora o verdadeiro comprimento daquelas presas.

Era parecida com um tigre-dentes-de-sabre, mas mais pequena, pensou Jake. Talvez fosse um antepassado dos tigres-dentes-de-sabre maiores. Algo semelhante a um Rhabdofelix.

— Afasta-te daí, rapaz! — avisou um dos guardas.

A agitação atraiu a atenção do centurião. O soldado que se encontrava ao seu lado explicou:

— Uma patrulha apanhou essa fêmea no Bosque Sagrado. Pensámos que talvez a pudéssemos treinar. Não deve ter mais de um ano. É provável que tenha apenas nove luas.

Gaius agachou-se.

— Nove? Ela vai ficar enorme.

O soldado ao lado de Gaius suspirou e disse:

— Mas é demasiado selvagem e demasiado perigosa. Quase arrancou um pedaço ao chefe de caça Rullus. Por isso, está na jaula para a usarmos como isco numa caçada de treino.

Jake ficou tenso. Durante a conversa, aproximara-se novamente da jaula e espreitara lá para dentro. Planeavam matá-la.

Jake não sabia dizer porque fez o que fez a seguir. Olhando de relance por cima do ombro, estendeu a mão em direção à fechadura que trancava a jaula. Kady reparou no que ele estava a fazer e formou a palavra Não com os lábios.

Jake olhou fixamente para ela com as sobrancelhas levantadas. Kady podia ser uma menina mimada e egoísta de vez em quando, mas tinha pena de qualquer animal em perigo. No ano anterior, ela até conseguira que a sua claque patrocinasse uma caminhada a favor de um abrigo de animais.

Kady revirou os olhos e virou as costas a Jake. Apontou para o outro lado do pátio e lançou um grito estridente, como se estivesse aterrorizada:

— O que é aquilo ali?

Como era habitual com Kady, todos se viraram e olharam.

Aproveitando a distração, Jake abriu a fechadura, depois afastou-se rapidamente. Olhou em volta. Ninguém o vira. Nem mesmo a gata, que permaneceu encolhida ao fundo da jaula.

Jake arriscou um sussurrado «Vai», tentando fazer com que a criatura se mexesse.

A Rhabdofelix acabou por se dirigir para junto das barras e abriu a porta com o nariz. Quando esta se abriu por completo, a criatura esgueirou-se para fora da jaula, rasteira ao chão, a sua longa cauda enrolada em forma de ponto de interrogação, toda a sua postura revelando desconfiança e cautela. Tinha os olhos fixos em Jake. As suas narinas contraíam-se, aspirando o cheiro de Jake. As suas orelhas, espetadas e alerta, giravam como antenas parabólicas.

— Foge — murmurou Jake baixinho, e apontou para o portão aberto do castelo.

De repente, a criatura ganhou coragem e saiu disparada. O único sinal da sua passagem foi um bater frenético de asas quando o bando de dardos-alados se assustou e levantou voo dos ramos das árvores.

Os guinchos roucos e ásperos dos pássaros atraíram a atenção dos soldados para cima — e depois para baixo, para a jaula com a porta aberta. Instalou-se o caos e irromperam gritos, mas já era demasiado tarde.

A gata fugiu pelo portão e desapareceu no meio da confusão da cidade. Alguns soldados tentaram persegui-la a pé, mas Jake desconfiava que não seriam capazes de a apanhar.

Esforçando-se ao máximo, Jake tentou manter um ar inocente. Cruzou o olhar com o de Marika. Ela olhou fixamente para ele durante alguns segundos e depois virou-se. Se ela desconfiou de alguma coisa, não o disse.

O centurião Gaius falou com firmeza e apontou em direção ao castelo.

— Basta! Não podemos deixar os anciãos à espera.

O castelo de Kalakryss ocupava a metade de trás do pátio. Jake estudou a fortificação à medida que se aproximavam da entrada principal. Quando esticou o pescoço, reparou em algo que brilhava no cimo da torre à direita. A luz oblíqua do sol fazia cintilar a cúpula feita de bronze martelado. Parecia um observatório usado para estudar as estrelas.

Antes que conseguisse examinar melhor, passaram por baixo de uma arcada e atravessaram duas portas enormes. Jake esperava que o castelo fosse sombrio e escuro por dentro. Em vez disso, encontrou uma entrada acolhedora com tapeçarias coloridas penduradas nas paredes e tapetes no chão. O ar era agradavelmente fresco, sendo o espaço bem isolado do calor do Sol. Um enorme candelabro de bronze iluminava a divisão… mas não com as chamas tremeluzentes de velas. A luz brilhava de forma constante.

Jake pensou que se tratava de lâmpadas, mas a forma de cada uma era irregular e angular. Pareciam pedaços de cristal em bruto… só que cada uma cintilava com um brilho ofuscante.

Jake olhou em volta com o sobrolho carregado. O que estaria a fornecer energia aos cristais?

Gaius conduziu-os pela ala central de um salão de receções comprido e estreito. Bancos de madeira, como os bancos de uma igreja, estendiam-se de ambos os lados, todos virados para a ponta mais longínqua. As paredes tinham estandartes pendurados, dez de cada lado. Cada um deles continha vários símbolos, como uma coleção de brasões de cavaleiros.

Bandeiras.

Marika reparou no seu interesse e disse:

— Os estandartes representam cada uma das Tribos Perdidas.

Pararam à frente do salão, por baixo de um conjunto de janelas altas e estreitas, flanqueadas por passagens abobadadas. Por baixo das janelas encontravam-se dois conjuntos de bancadas, um mais elevado que o outro, com três cadeiras de costas altas em cada nível.

Três pessoas surgiram da passagem da esquerda, todas elas com a mesma expressão preocupada. No entanto, estas três pessoas não podiam ser mais diferentes umas das outras. Uma usava vestes como as de Heronidus e Pindor, mas com uma coroa de louros na cabeça.

Ao seu lado, encontrava-se um homem com feições asiáticas, calvo, com um longo bigode branco que caía até ao queixo e uma barba fina. Do outro lado, estava uma mulher de meia-idade com o cabelo ruivo entrançado, vestida com uma túnica verde e calças. Usava também um elmo com dois chifres recurvados.

— O Alto Conselho de Calypsos — sussurrou Marika.

Pindor deixou-se ficar para trás com a sua lança, tentando esconder-se atrás de Gaius.

Sob o olhar severo do conselho, Kady aproximou-se de Jake.

Antes que alguém conseguisse falar, uma voz aguda exclamou da passagem abobadada à direita:

— Recém-chegados! De certeza que isso não é possível. Mas a ser verdade… conseguem imaginar?

O dono da voz apareceu. Era baixo, e o seu cabelo grisalho estava um pouco despenteado, como se tivesse acabado de acordar. Pelo quadrado de pano preso à volta dos ombros, chamado pati, adornado com penas nas mangas, era claramente maia.

Outro homem surgiu ao seu lado. Era tão largo, como era alto. Este homem corpulento usava um manto comprido com capuz, embora o capuz estivesse caído, revelando uma cabeça com uma farta cabeleira castanha rapada em cima. Parecia um monge inglês da Idade Média. O monge apontou para o grupo de Jake e o homem maia virou-se. Os seus olhos arregalaram-se e deu um passo na direção deles.

— Mari? — começou ele. — O que estás aqui a fazer, minha querida? Porque não estás na escola?

— Papá, fui eu e o Pindor que…

Papá? Jake olhou para ela de relance.

Marika foi interrompida por uma voz retumbante vinda da bancada superior:

— Pindor?

O homem com a coroa de louros na cabeça levantou-se da cadeira. O seu olhar procurou em baixo. Pindor surgiu das sombras com relutância.

— O que é que se passa? Que traquinice é que tu e a tua amiga arranjaram agora? Se isto é algum tipo de partida… Se estás a desperdiçar o tempo precioso do conselho…

— Não, pai — disse Pindor com os olhos fixos no chão. — Não é nenhuma partida.

Antes que alguém conseguisse explicar, um terceiro homem apareceu, vindo da passagem abobadada por trás do monge. Movia-se silenciosamente, tão magro como a sombra de um relógio de sol. Usava um manto totalmente preto, que roçava no chão. Tinha a cabeça rapada e a sua pele era tão escura como os seus modos. Os seus olhos negros eram frios e inexpressivos. O seu olhar varreu o grupo sem expressar qualquer tipo de emoção. O que tornava a sua aparência ainda mais perturbadora eram as tatuagens na testa, num tom vermelho-sangue. Eram hieróglifos egípcios.

O homem juntou-se aos outros dois e, juntos, dirigiram-se para a bancada inferior e sentaram-se nos seus lugares. Jake reparou que cada um deles usava um pequeno martelo de prata numa corrente à volta do pescoço.

Jake olhou de relance para Marika. Ela sussurrou o mais baixinho que conseguiu:

— Aqueles três são os mestres… os três Mestres da Alquimia.

O pai de Pindor permaneceu de pé na bancada superior.

— Com todo o conselho reunido, vamos então descobrir quem são estes desconhecidos e que perigo representam para Calypsos.

Jake sentiu o peso de seis pares de olhos cair sobre ele e a irmã.