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O CONSELHO DOS ANCIÃOS

— … e foi assim que os trouxemos pelo Portão Quebrado — terminou Marika.

O silêncio abateu-se sobre o conselho. Marika e Pindor já tinham sido interrogados de forma exaustiva e até Heronidus fizera alguns comentários. Até àquele momento, Jake e Kady tinham sido ignorados.

Por fim, o pai de Marika falou:

— Gostaria de ver uma demonstração dessa estranha alquimia que espantou o lagarto-trovão.

O monge ao seu lado anuiu e disse:

— Concordo com o mestre Balam. Também gostaria de o testemunhar com os meus próprios olhos.

O terceiro mestre limitava-se a fitar Jake.

O pai de Pindor acenou da bancada superior para eles obedecerem.

Jake enfiou a mão no bolso e tirou o assobio para cães, acrescentando:

— Não sei se serão capazes de ouvir alguma coisa.

Jake levou o apito aos lábios e soprou. Não ouviu nada mais que um som estridente muito ténue. Os anciãos na bancada pareciam ter ouvido ainda menos. Abanaram a cabeça e encolheram os ombros.

— E foi isso que afastou o lagarto-trovão? — perguntou o pai de Pindor, a dúvida evidente na sua voz.

— Foi, sim, ancião Tiberius — declarou Marika. — É uma alquimia estranhamente silenciosa.

Jake dirigiu-se à bancada e ergueu o apito de aço.

— Isto não vem da alquimia. Vem do que nós chamamos alquimia.

Jake franziu o sobrolho. Estava a pensar em ciência, mas a palavra alquimia saíra-lhe dos lábios.

A confusão espalhou-se pelas bancadas… à exceção do egípcio, que permaneceu impassível.

Jake tocou com os dedos na garganta e lembrou-se do que Marika lhe explicara. Alguma força misteriosa ajudava a traduzir as suas palavras para a língua toda-a-terra. Será que o tradutor universal pensava que alquimia e ciência eram a mesma coisa? E talvez, de alguma maneira, até fossem. Os antigos alquimistas dedicavam-se também à química e à física. Até Isaac Newton se considerava um alquimista.

Jake tentou novamente, concentrando-se nas palavras:

— O apito não é um produto da alquimia… mas da ciência.

Desta vez, a palavra saiu-lhe da maneira que ele queria, mas com algum esforço. A sua língua lutara para formar a palavra, como quando tentamos falar depois de o dentista nos anestesiar a boca toda.

Ciii… enzia? — repetiu o pai de Marika.

Jake procurou desesperadamente alguma forma de o demonstrar. Virou-se para Kady e apontou para o bolso do seu colete.

— Mostra-lhes o teu iPod.

— O meu iPod?

— Deixa-os ouvir.

Kady franziu o sobrolho, mas obedeceu.

Enquanto procurava o iPod dentro do bolso, Jake explicou:

— De onde nós vimos, usamos uma alquimia diferente, chamada ciência.

Kady colocou um dos auscultadores no ouvido e ligou o iPod. As suas sobrancelhas arquearam de imediato.

— Esta é a «Straightjacket Love»! — exclamou ela, alto. Quando todos os olhares se fixaram nela, a sua voz tornou-se praticamente um sussurro. — É… uma das minhas preferidas.

Jake acenou-lhe para que se aproximasse dele.

— Deixa-os ouvir.

Kady dirigiu-se para a bancada inferior. Os anciãos e os mestres juntaram-se e ouviram à vez pelo auscultador. Os seus olhos arregalaram-se, surpreendidos, mas não ficaram agitados como Jake previra. A seguir, os três mestres reuniram-se e discutiram entre si.

Jake ouviu algumas palavras do pai de Marika:

— … algum tipo de fala-longe… talvez uma amálgama de cristais verdes…

Jake perdeu as restantes palavras quando o pai de Pindor bateu com o punho do seu lado da bancada e gritou:

— Basta! Eu quero saber mais sobre o grakyl que vos tentou atacar no portão. Têm a certeza de que era um dos lacaios do Rei Caveira?

— Tenho a certeza, pai — respondeu Pindor.

A mulher com o elmo com chifres, que devia ser descendente de viquingues, pronunciou-se:

— O Kalverum Rex está a ficar cada vez mais audacioso. Se o que as crianças contam é verdade, ele está mesmo às nossas portas.

— É verdadeiramente preocupante, Astrid. Quais são as últimas notícias das caçadoras?

Ela abanou a cabeça.

— Ainda não tivemos notícias daquelas que foram enviadas para as profundezas da selva. Rezamos a Odin todas as manhãs para que regressem sãs e salvas.

— Vamos juntar-nos às vossas preces — assegurou-lhe o homem asiático. Virou-se para Jake e Kady. — Antes de julgarmos estes recém-chegados, gostaria de saber mais sobre a terra de onde vêm. Como chegaram aqui?

Jake sentiu o peso da metade da moeda que tinha pendurada ao pescoço. Aclarou a garganta primeiro, com receio de que Kady lhes falasse sobre as moedas. Não queria que isso acontecesse. As moedas poderiam ser a única maneira de voltarem para casa. Se lhes fossem tiradas, podiam ficar ali presos para sempre. E, a um nível mais profundo, Jake recusava-se a ser separado delas. Era o último presente que tinham recebido dos pais.

— Não sabemos como viemos aqui parar — disse Jake com cautela, hesitante. — Num minuto estávamos num grande átrio. Durante uma grande trovoada.

Jake virou-se para Kady, que anuiu.

— E, no minuto seguinte, um relâmpago atingiu-nos e… bum… o mundo ficou escuro. Parecia que estávamos a cair, depois… zás… estávamos no meio da selva.

As suas palavras foram recebidas com acenos de cabeça. Jake ouviu a palavra relâmpago a ser repetida na fila de cima da bancada. Parecia que estas histórias se assemelhavam à chegada dos seus compatriotas a este lugar.

— Viemos de uma cidade chamada North Hampshire — continuou Jake —, numa terra chamada América.

— Ah Merika? — repetiu o pai de Pindor com o sobrolho carregado. — Desconhecemos essa tribo.

Jake elevou um pouco a voz para a tornar mais forte e continuou:

— Não sabemos como ou porque viemos aqui parar. Mas desconhecemos esse Rei Caveira, e é certo que não somos espiões de ninguém. Juro.

Jake levantou a mão direita como um escuteiro, embora nunca tivesse pertencido aos escuteiros.

O ancião Tiberius olhou para Jake e respirou fundo. Jake manteve a mão direita no ar e olhou-o nos olhos, com a mesma intensidade. Por fim, o romano acenou para o centurião.

— Levem esses dois para um lugar privado, enquanto nós falamos sobre o que ouvimos aqui.

Gaius bateu no peito com o punho e fez sinal a Jake e a Kady para o seguirem.

Tiberius gritou mais uma vez:

— O rapaz que deixe a sua mala e a rapariga, a sua estranha ferramenta musical. Vão ser analisadas pelos mestres para ver se contêm algum vestígio da alquimia do Rei Caveira.

A sua cela improvisada não tinha janelas e era pouco maior que um closet. O chão estava coberto de feno seco. Várias prateleiras enchiam a parede do fundo de cima a baixo e estavam repletas de frascos de vidro verde, selados com uma camada espessa de cera, que escondia os seus conteúdos obscuros. Barris de madeira e potes de barro alinhavam-se noutra parede. O lugar tinha um cheiro almiscarado e apimentado.

Uma espécie de despensa, pensou Jake, o que lhe valeu um roncar de protesto do seu estômago. Quando comi pela última vez? Londres parecia-lhe estar a milhões de quilómetros e a milhões de anos de distância. E talvez estivesse mesmo.

Kady andava de um lado para o outro no pequeno espaço, com os braços cruzados sobre o peito.

Jake atravessou o espaço até à parede oposta e estudou a única luz existente na cela. Uma tocha de ferro encontrava-se presa na pedra e tinha em cima um daqueles cristais que brilhavam intensamente. Estava muito alta, fora de alcance, mas Jake procurou fios ou cabos, alguma ligação a uma fonte de energia. Não encontrou nada, mas queria ver mais de perto.

Se eu arrastar um destes barris para aqui, talvez consiga…

Kady deu um pontapé num pote de barro, olhou para Jake e perguntou:

— Como é que nós realmente chegámos a este lugar maluco?

O seu olhar estava um pouco desvairado. Jake encolheu os ombros, ficando com a clara impressão de que ela precisava de uma resposta, qualquer resposta.

— Talvez tenhamos ativado algum tipo de… Não sei, talvez um buraco de minhoca quântico…

— Um quê quântico?

— Uma espécie de brecha no espaço e no tempo. Uma anomalia espacial.

Kady revirou os olhos.

— Por outras palavras… não fazes a mínima ideia.

Jake franziu o sobrolho… mas a verdade é que ela tinha razão. Lembrou-se do artefacto brilhante.

— Bem, o que eu sei é que deve ter que ver com a moeda partida que o pai e a mãe nos deram.

Kady levou a mão à garganta.

— Então, porque é que nos enviaram estas coisas estúpidas?

Jake recuou e sentou-se num dos barris.

— Acho que… apenas para as manter escondidas e em segurança. Mas não sei…

A sua voz fraquejou no final. Tudo o que sabia era que se sentia cada vez mais preocupado. E se o conselho os banisse de volta para a selva? Nunca conseguiriam sobreviver.

Kady atravessou a sala e sentou-se no barril ao lado de Jake.

— Talvez tenhas razão, Jake — disse ela, suavemente. — A mãe e o pai nunca pensaram que nós fôssemos enfiar as nossas moedas naquela pirâmide.

Kady cruzou os braços à frente do peito e pareceu preocupada.

Jake lembrou-se do artefacto incandescente no Museu Britânico. Também se lembrou de Morgan Drummond a correr na sua direção, a avisá-los que se afastassem. Será que o homem sabia de alguma coisa? Ou será que estava apenas com receio que eles estragassem algum tesouro antigo à sua guarda? Jake abanou a cabeça e tentou ordenar as questões que saltitavam de um lado para o outro no interior da sua cabeça.

— Do que temos a certeza é que não fomos os únicos a aterrar aqui — disse Jake, por fim, concentrando-se no que sabia ser verdade. — Alguém ou alguma coisa tem estado a colecionar parcelas de civilizações da Terra, de diferentes tempos e lugares, e a prendê-las neste mundo.

— É uma sorte essas tribos não se terem aniquilado umas às outras quando aqui chegaram — respondeu Kady.

— Devem ter-se unido para sobreviver. Neste lugar perigoso, o inimigo do teu inimigo é teu amigo. — Jake tocou na garganta. — Além disso, existe o tradutor universal. Serem capazes de falar uns com os outros deve ser essencial para manter a paz por aqui. Onde quer que aqui seja.

— Mas onde estamos?

Jake abanou a cabeça.

— Talvez noutro mundo? Noutra dimensão? Se conseguirmos perceber isso, talvez consigamos perceber como viemos aqui parar.

Kady suspirou ruidosamente, como se tudo isso fosse dar demasiado trabalho.

— Esquece o como chegámos aqui. Como é que voltamos para casa?

Jake reparou mais uma vez que a irmã estava novamente a roçar a histeria. Antes que isso o contagiasse, falou alto, mantendo a cabeça ocupada contra o medo que lhe enchia o coração.

— Estes dois mistérios estão relacionados. Como viemos aqui parar, como voltamos para casa. Não seremos capazes de solucionar um, se não solucionarmos o outro.

Kady aproximou-se e apertou os dedos de Jake.

— Tu estudaste todas aquelas coisas de arqueologia e história antiga. Se alguém consegue perceber este lugar, és tu.

Jake abanou a cabeça, mas, ao mesmo tempo, imaginou o dragão de pedra a flutuar por cima da floresta vizinha. A pirâmide tinha de conter algumas respostas. Tinha de descobrir uma maneira de entrar nela. No entanto, lembrou-se do aviso de Marika.

É proibido ir até lá. Apenas os três Mestres da Alquimia têm permissão para entrar e contemplar o coração de cristal de Kukulkan.

Jake olhou para cima, para a gema luminosa do tamanho de um punho que se encontrava no topo da tocha de ferro, e começou a engendrar um plano.

— O que precisamos de fazer primeiro é… — murmurou ele.

Kady aproximou-se dele, a ouvir.

Jake disse com a voz mais firme:

— O que precisamos de fazer primeiro é reunir informação.

— Informação?

— Descobrir tudo o que conseguirmos. Mas, para o fazermos, vamos ter de cooperar e chamar o mínimo de atenção possível enquanto investigamos este lugar.

Kady franziu o sobrolho.

— Então, vamos ter de fazer aquilo de que nos acusam. Vamos ter de espiar estas pessoas.

Jake anuiu, consciente do perigo.

— Desde que nos mantenhamos juntos, vai correr tudo bem. Devemos conseguir…

Uma pancada forte na porta fez com que os dois saltassem. Com um chiar, a porta da despensa abriu-se e o centurião Gaius entrou. A sua voz era dura e implacável.

— Venham comigo — ordenou ele. — O Conselho dos Anciãos já decidiu o vosso destino.

Todos os olhares se focaram neles quando os dois irmãos se aproximaram. Ninguém falou. O silêncio tornava o ar ainda mais pesado, à medida que Tiberius se dirigia a eles. Tinha uma expressão severa, pouco calorosa.

Oh-oh.

As primeiras palavras do romano não ofereceram qualquer conforto.

— Chegaram a Calypsos numa altura conturbada. Criaturas sinistras assombram as nossas fronteiras. Correm rumores de que existem monstruosidades ainda maiores nas profundezas da selva, da existência de forças que se estão a juntar como uma tempestade prestes a desabar sobre nós. Assim, a vossa chegada levanta alguma desconfiança da nossa parte.

Jake sentiu um nó no estômago.

— No entanto, desde a sua fundação, Calypsos sempre foi um lugar de paz e harmonia. E, mesmo quando confrontados com a escuridão, nunca poremos de lado os nossos princípios. Além disso, com as vossas estranhas alquimias, salvaram não só uma das nossas crianças — Tiberius levantou um braço e apontou para Marika —, mas também salvaram o meu filho.

Os ombros de Pindor, já caídos, curvaram-se ainda mais.

Tiberius continuou:

— A filha do mestre Balam também é testemunha do terror nos vossos rostos quando viram o grakyl, um dos lacaios do Rei Caveira. Ela acredita que esse medo era real.

Jake lembrou-se da criatura presa entre as torres, a esbracejar no meio do ar e a tentar escapar. O seu medo fora real, disso não restava qualquer dúvida. Jake olhou de relance para Marika, agradecendo-lhe silenciosamente por apoiar a sua história. Ela olhou timidamente para baixo, para os pés.

Tiberius continuou, atraindo novamente a atenção de Jake:

— Embora a decisão não tenho sido unânime no conselho, a maioria votou a favor da vossa permanência em Calypsos por agora.

Jake deixou escapar o suspiro que estivera a reter até então. Não eram propriamente as mais calorosas boas-vindas a esta estranha terra, mas ele aceitava a decisão de bom grado.

Tiberius apontou para o pai de Marika e disse:

— O mestre Balam foi extremamente generoso ao abrir as portas de sua casa, jovem Jacob, tendo até expressado grande interesse em aprender mais sobre essa tua ci-enzia.

Jake voltou a encontrar a sua voz:

— Ob… obrigado. Não daremos qualquer trabalho. Prometemos.

Tiberius levantou a mão.

— Confundiste-te com as minhas palavras. A tua irmã não vai contigo.

— O quê? — gaguejou Jake. — Esperem. Eu não acho…

Tiberius silenciou-o com uma expressão severa.

— A anciã Astrid Ulfsdottir pediu para Katherine Ransom ficar com ela em Bornholm Hall.

A mulher alta anuiu, acrescentando:

— Ela está em forma e tem braços e pernas fortes. Vejo nela as características de uma guerreira.

Jake virou-se para a irmã. O rosto de Kady tinha empalidecido.

Tiberius continuou:

— Uma última condição para permanecerem aqui, em Calypsos, é que os meus filhos serão designados vossos… acompanhantes. Não deverão vaguear pelas nossas ruas sem ser acompanhados por eles.

Jake compreendeu o significado por trás das suas palavras. Estavam a atribuir-lhes guardas

— Pindor ficará contigo — disse Tiberius a Jake — e Heronidus acompanhará a tua irmã, pelo menos, por algum tempo.

Até confiarem em nós, pensou Jake.

— Agora, já se faz tarde — concluiu Tiberius. — O melhor é deixar-vos ir para as vossas novas casas para se acomodarem.

A mulher viquingue aproximou-se de Kady e colocou-lhe a mão sobre o ombro. Marika correu para junto de Jake. A expressão no rosto da rapariga era um misto de pedido de desculpa e entusiasmo.

No entanto, Jake olhava fixamente para Kady. Os seus olhares cruzaram-se. Ele sabia o que ela estava a pensar. Ela depositara a sua confiança nele para que encontrasse o caminho para casa. As palavras que dissera antes a Kady ecoavam-lhe agora na cabeça.

Desde que nos mantenhamos juntos, vai correr tudo bem.

No momento em que estavam prestes a ser separados, Jake percebeu que o seu plano, com apenas alguns minutos de existência, já estava a desmoronar-se.

Como é que iam regressar a casa agora?