10
A ESTRADA BRANCA
Jake abraçou a irmã antes de serem separados. Era estranho. Não se conseguia lembrar de uma vez em que a tivesse abraçado. E estavam todos a olhar para eles, o que tornava tudo duplamente desconfortável. Ele sussurrou ao ouvido dela, forçando a sua língua a falar inglês e não toda-a-terra. Não queria que os outros o percebessem.
— Observa tudo. Aprende o que conseguires.
— O que é que devo…?
— Entra no jogo. Faz amigos.
Era um talento que Kady dominara ao longo dos anos e uma aptidão inexistente em Jake. No entanto, em termos de espionagem, era uma qualidade muito útil.
Tiberius aclarou a voz atrás deles.
— Já chega. A noite está a cair e ainda temos todos muito que fazer antes de ir dormir.
Jake recuou. Kady, que já não abraçava Jake, parecia não saber o que fazer com os braços. Acabou por cruzá-los à frente do peito, claramente nervosa.
A mulher viquingue aproximou-se de Kady e tocou com a mão no cotovelo da irmã.
— Não é uma longa caminhada até Bornholm, mas devemos partir quanto antes, senão vamos encontrar um jantar frio à nossa espera.
Kady lançou a Jake um último olhar desamparado, depois acompanhou Astrid Ulfsdottir pelo salão. Jake observou-as enquanto se afastavam.
— Não te apoquentes, amigo — disse o pai de Marika a Jake, usando algumas entoações da língua maia. — Verás a tua irmã pelo menos uma vez por dia… senão dia sim, dia não. Para já, deixa-nos mostrar-te onde vais ficar.
Marika agarrou na ponta do colete de safári de Jake e puxou-o para a passagem à direita da bancada superior.
— O papá e eu vivemos na Torre do Esclarecimento, como todos os mestres de Calypsos. — Uma ponta de timidez brilhou nos olhos cor de jade de Marika. — Anda, deixa-me mostrar-te…
— Mari, deixa o teu amigo respirar — avisou o pai. — Vais ter muito tempo para lhe mostrar tudo por aqui, mas agora talvez lhe interesse mais encher a barriga.
A barriga de Jake roncou a sua concordância.
Jake foi conduzido pela passagem abobadada, onde encontrou uma estreita escada de caracol. No patamar, parou, sem saber se devia subir ou descer. Marika disse:
— Em baixo é o domínio do mestre Zahur. Ele cuida das raízes da torre, onde tem pequenas criaturas da selva dentro de jaulas e cestos para fazer os seus estudos sobre a alquimia da vida.
Jake lembrou-se do egípcio tatuado. Também reparou que Marika contraíra os lábios, expressando desagrado, claramente descontente com a linha de estudo do homem.
Marika fez sinal a Jake para subir as escadas.
— Estes primeiros andares pertencem ao mestre Oswin. — Marika baixou o tom de voz enquanto atravessavam os andares do seu território e disfarçou um ligeiro sorriso. — Ele não gosta de subir mais escadas do que as estritamente necessárias… a não ser que no final tenha uma boa refeição à espera.
Subindo vários andares mais, chegaram a um patamar, e Marika percorreu um pequeno corredor que terminava numa porta de madeira. Tirou do bolso uma chave de latão comprida e meteu-a na fechadura. Com uma volta, puxou a maçaneta e abriu a porta.
— A nossa casa — disse ela, e fez sinal a Jake para entrar à sua frente.
Ele entrou para uma sala comum, ampla e circular. Outras portas davam para quartos vizinhos e uma escadaria estreita levava ao andar de cima. Embora não tivesse janelas, a sala era iluminada por pedaços irregulares de cristais de âmbar luminosos, pendurados em correntes de ferro presas às vigas.
Uma mesa redonda no centro já se encontrava posta, com tigelas de barro brancas que fumegavam sob as suas tampas e cheiravam a especiarias e estufado. Num dos lados havia pão ázimo. Do outro, uma pilha de fruta descascada do tamanho de meloas enchia uma taça grande.
Quando Jake se aproximou da mesa, um movimento à esquerda captou-lhe a atenção. Virou-se a tempo de ver uma porta estreita, pouco mais larga que uma tábua de engomar, fechar-se sem fazer qualquer ruído.
— Quem…? — perguntou Jake quando Marika e o seu pai surgiram atrás dele. Ele olhou fixamente para a porta. — Vive mais alguém aqui convosco?
— Só nós os dois… agora — disse o mestre Balam com uma certa tristeza. — Anda. Vamos comer enquanto está quente.
Jake esticou o pescoço para estudar a porta estreita enquanto o apressavam para se sentar à mesa. Talvez tivesse imaginado o movimento. Virando-se para a mesa, Jake atacou a refeição, seguindo o exemplo de Marika, que usava o pão ázimo como uma tortilha para tirar a carne estufada de dentro das tigelas de barro.
O pão era estaladiço e quente, e a carne desfazia-se na língua. Comeu depressa, sem se aperceber da fome que tinha. Depois de algumas dentadas, o seu rosto ficou quente e Jake começou a agitar uma mão à frente da boca. O ardor ficou ainda pior.
Marika sorriu com a aflição de Jake.
— Pimentas-de-fogo.
O ardor acalmou o suficiente para Jake conseguir falar.
— É… é bom.
O pai de Marika deu-lhe uma pancadinha nas costas, enquanto mastigava uma série delas. Os olhos do velhote lacrimejavam.
— Podia estar mais picante — exclamou ele.
O sorriso de Marika tornou-se maior, o que encorajou Jake a experimentar tudo o que estava em cima da mesa. Ela serviu uma mistura semilíquida escura de um pequeno bule de cerâmica para uma caneca. Jake fez uma careta ao ver o líquido lamacento e quente, mas pegou na caneca e cheirou. Os seus olhos arregalaram-se, surpreendido com o cheiro distinto e familiar, como um pedaço de casa.
— Chocolate!
No entanto, Jake não devia ter ficado surpreendido. Os maias tinham inventado as bebidas de chocolate. Deu um gole na sua. Era mais amargo e espesso que o chocolate quente a que estava habituado. Talvez juntando uns quantos marshmallows para o adoçar um pouco…
— Chamamos-lhe cacau — disse Marika.
Jake anuiu e continuou a beber, mas sentiu que o pai de Marika o estudava. Jake esforçou-se ao máximo por parecer descontraído. Não queria que alguém desconfiasse de que ele conhecia os costumes do povo maia. Eles já desconfiavam dele o suficiente.
Quando terminaram a refeição, Jake estava de tal maneira cheio que teve de se recostar na cadeira. À sua direita, o pai de Marika fez o mesmo, soltando um arroto que fez estremecer os pratos.
Marika pareceu horrorizada com o comportamento do pai.
Aparentemente indiferente à sua própria falta de educação, o pai de Marika piscou o olho a Jake e levantou-se.
— Tenho algumas leituras a fazer antes de me ir deitar. Mari, podes mostrar ao jovem Jacob o quarto onde vai ficar?
— Papá, antes disso, posso mostrar-lhe o Astromicon? Ele é capaz de apreciar a vista de lá.
Quando o pai concordou, Marika levantou-se de um pulo e praticamente arrastou Jake da sua cadeira.
— Mas, não toquem em nada, Mari.
— Não, papá.
— E não fiquem lá muito tempo! — gritou-lhe o pai, ao mesmo tempo que se dirigia a uma das portas e a abria.
Por cima do ombro de Balam, Jake viu de relance uma secretária com pilhas de manuscritos e pergaminhos, e estantes repletas de livros e papéis.
Jake olhou com ansiedade na direção do escritório. Talvez algures no meio daquelas pilhas de livros estivessem as respostas a várias perguntas… Onde estava? Como chegara ali? E como poderia regressar a casa?
Marika arrastou-o para a porta que levava às escadas de caracol. Sem que desse por isso, encontrou-se a subir os degraus atrás dela.
— Onde vamos? — perguntou ele, contendo um enorme bocejo. Com a barriga cheia, o seu corpo parecia pesar o dobro.
— Já vais ver.
Enquanto subiam, uma pergunta incomodava Jake. Ainda a sentir o sabor do chocolate nos lábios, Jake perguntou:
— Mari, como é que vocês fazem o cacau aqui, em Calypsos? Não precisam das vossas árvores de cacau?
Marika anuiu com a cabeça.
— Embora tenhamos aprendido a cultivar o que cresce neste mundo, não abandonámos totalmente os nossos costumes. Algumas pessoas do meu povo trouxeram sementes que nós plantámos. É um costume antigo, desde a fundação de Calypsos. Apesar de trabalharmos todos juntos, em harmonia, cada tribo honra o lugar de onde veio. Na esperança de que um dia possamos regressar a casa.
Jake lembrou-se da cidade, começando a compreender um pouco melhor aquele lugar. A cidade não era tanto um caldeirão de raças e culturas, era mais um estufado feito com pedaços de culturas diferentes, cada uma preservando a sua identidade e costumes.
Até lhes ser permitido regressar a casa.
Jake compreendia esse desejo demasiado bem.
— Cá estamos nós — disse Marika, e subiu a correr os últimos degraus.
Tinham chegado ao fim das escadas de caracol. Quando Marika empurrou a porta no cimo da torre, uma brisa fresca envolveu-os. O calor abrasador do dia dera lugar a uma noite amena. O vento ajudara a limpar as teias de aranha da cabeça de Jake depois daquela refeição farta.
Jake saiu das escadas para o cimo da torre e os seus olhos arregalaram-se. O céu sobre as suas cabeças era uma explosão de estrelas… mais estrelas do que Jake alguma vez vira. Tentou avistar alguma constelação que conhecesse, mas nada parecia bater certo. Mas também os seus conhecimentos de astronomia eram bastante limitados. Em casa, Jake passava a maior parte do tempo a olhar para baixo à procura de fósseis, a estudar livros, sempre à procura de pistas no meio do pó e da terra.
Contudo, um dos pontos no céu noturno era inconfundível. Uma faixa de estrelas com uma luz cintilante percorria o céu, formando um arco brilhante.
— A Via Láctea — sussurrou para si mesmo. Sentiu uma onda de calor percorrer-lhe o corpo, uma sensação maravilhosa de familiaridade, de casa.
Marika encontrava-se de pé ao seu lado e olhou para o céu também. Ergueu um braço e traçou a faixa cintilante.
— Sak be — disse ela na língua maia.
O coração de Jake bateu acelerado quando começou a perceber o que se passava. As mesmas palavras estavam escritas em símbolos nas duas metades da sua moeda de ouro: sak be, que significava «estrada branca».
Jake olhou fixamente para o céu.
A Via Látea… era essa a Estrada Branca dos maias.
Marika continuou:
— Existe uma crença entre o meu povo de que a Estrada Branca é o caminho para este mundo. Foi por ele que viemos para aqui.
Jake estudou o borrifo cintilante no céu. O que lhe parecera reconfortante e familiar há um momento, assumia agora uma faceta fria e misteriosa. Os seus dedos ainda apertavam o cordão que tinha à volta do pescoço. Pelo menos, no que dizia respeito a Jake e Kady, a Estrada Branca conduzira-os ali.
No entanto, será que os conduziria de volta a casa?
— Todas as noites, o papá observa os céus à procura de respostas sobre o mundo e sobre a passagem do tempo.
— E também procura um caminho para casa?
Marika acenou com a cabeça. A sua voz foi ficando cada vez mais baixa.
— Ele passa muito tempo aqui. Sobretudo, nos últimos anos.
Marika desviou a sua atenção das estrelas para o cimo da torre. Este era delimitado por um muro de pedra à altura dos seus ombros, mas no centro aberto encontrava-se uma cúpula de bronze gigantesca. Jake avistara-a do chão. Era do tamanho de uma garagem para dois carros.
O bronze fora martelado até ficar um espelho polido. A luz das estrelas refletia-se na sua superfície, interrompida apenas por pequenas fissuras no seu topo, como as marcas das horas num relógio.
— O Astromicon — disse Marika. — É aqui que o meu pai trabalha, mapeando o movimento do Sol, da Lua e das estrelas. Ele previu o grande eclipse que ocorreu ontem.
A curiosidade e o desejo atraíram o olhar de Jake para uma escotilha na cúpula. Ele tinha de ver aquilo lá dentro.
Quando se aproximou, algo escuro passou sobre o reflexo das estrelas. Marika também viu e arquejou de medo.
A mente de Jake vagueou para o monstruoso grakyl alado. Será que o tinha encontrado?
Jake puxou Marika para a porta das escadas. Ambos olharam fixamente para cima, enquanto a enorme figura sobrevoava em círculo o cimo da torre e se inclinava sobre uma asa. Iluminado pela luz das estrelas, tornou-se evidente que não era um grakyl. Era demasiado grande e tinha penas negras. As suas asas recolheram e a criatura mergulhou em voo picado, aterrando pesadamente com o ruído áspero das asas a fazerem resistência contra o vento a fim de parar. Pousou sobre o parapeito elevado do muro que delimitava a torre.
Marika parou de recuar e exclamou:
— É um dos batedores de Calypsos.
A criatura baixou a cabeça e revelou um homem sentado nas suas costas, preso a uma sela. Com uma aptidão nascida de muitos anos de experiência, o batedor desprendeu-se e içou um passageiro da parte de trás. Em seguida, deslizou da sela e aterrou no cimo da torre.
O batedor deu dois passos cambaleantes na direção deles, mas a exaustão fez com que caísse de joelhos, deixando cair o seu passageiro no chão de pedra.
— Vão buscar ajuda… — gemeu o batedor com a voz rouca.
Marika virou-se para a porta das escadas. Gritos ecoaram na sua direção. Alguém avistara a chegada da criatura e a ajuda já vinha a caminho. Marika virou-se para Jake e disse:
— Fica aqui.
Desapareceu pelas escadas abaixo, como um coelho assustado.
Jake ficou, caso pudesse ajudar de alguma maneira.
A criatura alada continuava empoleirada no muro, o seu bico entreaberto e a arfar, visivelmente tão exausta como o seu cavaleiro. O enorme pássaro parecia suficientemente poderoso para arrebatar uma vaca de um pasto.
O batedor aproximou-se do vulto caído nas pedras. Jake fez o mesmo e viu que o passageiro era uma mulher. Estava vestida como a anciã viquingue que levara Kady, com calças e uma túnica verde, e botas até ao joelho. A julgar pelo cabelo louro, devia pertencer ao povo de Astrid Ulfsdottir. Jake lembrou-se da conversa sobre as caçadoras desaparecidas. Parecia que uma tinha sido encontrada.
— Vem cá, rapaz — ordenou o batedor com uma voz firme e perentória. — Fica com ela.
Jake correu para a mulher e ajoelhou-se junto dela. O batedor levantou-se e dirigiu-se para a sua montada. Estendeu a mão para acalmar a criatura e foi buscar um balde que se encontrava por baixo de uma bomba de água. A sua cabeça tinha uma coroa de penas da mesma cor da sua montada. Pelas linhas duras do seu rosto moreno, parecia ser nativo americano.
O homem ofereceu o balde cheio de água ao enorme pássaro, depois estendeu o braço para o acalmar.
Jake voltou a sua atenção para a mulher. Os seus olhos estavam abertos, mas Jake desconfiava que ela não estivesse a ver nada. O seu peito subia e descia, mas nada mais se movia no seu corpo. Não pestanejava, nenhum músculo estremecia. Nem mesmo quando Jake estendeu a mão para tocar na dela, com a intenção de lhe transmitir que alguém estava ao seu lado, ela se mexeu.
Uma haste com penas saía do ombro dela. A túnica à sua volta escurecera com o sangue. Jake estendeu a mão na direção da haste e…
— NÃO TOQUES NISSO! — gritou alguém, o que fez com que Jake se imobilizasse.
O grito viera das escadas. Jake virou-se no momento em que o mestre Zahur deslizou na sua direção como um corvo negro, com a sua capa a esvoaçar atrás dele. À luz das estrelas, as suas tatuagens vermelhas na testa pareciam estar em chamas.
Zahur ajoelhou-se no chão de pedra e enxotou Jake com a mão, como se ele fosse um mosquito irritante. Nessa altura, Marika regressou com o pai. O mestre Balam juntou-se ao seu par, ajoelhando-se do outro lado da mulher. Zahur já começara a examiná-la. Tocou na garganta e nos lábios da mulher, depois inclinou-se sobre ela e olhou-a atentamente nos olhos.
O batedor juntou-se a eles e disse:
— Encontrei-a e a duas das suas irmãs um pouco para lá de Pináculo dos Ossos. Estavam a transportá-la numa maca. As outras duas mal se aguentavam em pé. O meu chefe levou as duas para Bornholm, mas ordenou-me que trouxesse a caçadora para aqui. Para ver se ainda havia alguma esperança.
— É a caçadora Livia — disse o mestre Balam num tom solene.
Marika foi para junto de Jake. A preocupação estava gravada no seu rosto.
— É a irmã de sangue da anciã Ulfsdottir. Em tempos, ela e a minha mãe foram muito próximas. Ela costumava ler-me histórias.
— Temos de a levar para os meus aposentos lá em baixo — disse Zahur, as suas palavras erguendo-se como vapor, vindas de uma fúria profunda. — Todos os meus unguentos curativos estão lá em baixo. Mas a ponta da flecha continua enterrada na sua carne. Temos de a tirar. Agora.
Balam virou-se para Jake e Marika e disse:
— Ajudem-nos.
Os mestres viraram a mulher de lado. Jake segurou-lhe a cabeça, enquanto Marika lhe prendia as ancas para a manter imóvel.
Zahur pegou na flecha com penas e disse:
— Tenho de empurrar a seta até sair do outro lado do ombro dela, depois posso partir a ponta. — Zahur olhou para Jake e voltou a avisar: — Ninguém toque nela!
Balam segurou a mulher do outro lado, enquanto Zahur segurava a flecha com força.
— Agora! — gritou ele, e empurrou a seta.
A ponta da flecha saiu do outro lado, nas costas da mulher. Por um momento, Jake pensou que parecia a cabeça de uma serpente com as presas de fora, pronta para atacar, mas pestanejou e viu que era apenas a ponta da seta, um pedaço afiado de obsidiana, tão negro como a sombra mais escura.
— Despachem-se! — avisou Zahur.
Balam tirou do bolso uma vara curta. Parecia que a ponta estava incandescente, mas Jake reparou que esta era, na verdade, um fragmento afiado de cristal.
Estendendo a mão, Balam tocou com o cristal na ponta da flecha. Um grito rasgou a noite e percorreu o céu. O corpo da mulher contorceu-se nas suas mãos, mas o grito não viera da sua garganta. Jake tinha a certeza, porque ainda se encontrava a segurar na cabeça da mulher. O grito viera da ponta da flecha.
Quando Balam se afastou, Jake viu que a ponta já não estava negra, era agora um cristal puro e translúcido. Balam avançou rapidamente com um pedaço de couro e partiu com ele a ponta da flecha.
Zahur fez-lhes sinal para deitarem a mulher de costas. A caçadora voltara a ficar inerte. Tinha agora os olhos fechados, mas a sua respiração tornara-se mais regular.
— Ela vai sobreviver? — indagou o batedor.
— É muito cedo para dizer — respondeu Balam. — A pedra-de-sangue envenenou-a. E há a possibilidade de ainda existirem pequenos estilhaços dentro da carne, lascas que se separaram da ponta da flecha.
Foram interrompidos pela chegada ruidosa do mestre inglês, que arrastou todo o seu peso pelas portas.
— Eu ouvi… o que posso fazer?
— Acalma-te, Oswin — disse Balam, mostrando ao mestre gordo a ponta da flecha embrulhada em couro. — Já a tirámos.
O rosto de Oswin empalideceu, mas ainda assim estendeu a mão para a ponta da flecha e comentou:
— Temos de a examinar antes que a sua alquimia desapareça por completo.
Zahur acercou-se deles como uma tempestade e ribombou:
— Estás louco? Tem de ser destruída.
— Mas pode conter respostas sobre o que a pedra-de-sangue…
As restantes palavras tornaram-se um sussurro entre os mestres. Jake não conseguia perceber o que eles estavam a dizer. Todavia, enquanto segurava a cabeça da mulher, reparou que os seus lábios se moviam. Muito levemente. Inclinou-se sobre ela, aproximando o ouvido dos seus lábios. Com cada respiração sussurrante, Jake ouviu duas palavras serem repetidas vezes sem conta.
— Ele vem aí… ele vem aí… ele vem aí…
De repente, os olhos dela abriram-se. O seu olhar cruzou-se com o de Jake. Uma mão agarrou-lhe com força no pulso.
— Ajuda-me…
Antes que Jake conseguisse responder, a caçadora voltou a desmaiar, os seus olhos fecharam-se e os seus lábios caíram no silêncio, perdida novamente para o mundo.
Sem reparar no que acontecera, Zahur afastou-se dos outros mestres e voltou para junto da mulher.
— Basta! — gritou, e apontou para o batedor. — Ajuda-me a levá-la para baixo! Tenho de fazer o meu melhor com os meus unguentos para lhe salvar a vida!
Jake levantou-se e balbuciou:
— Mas ela…
Zahur afastou-o para o lado com uma cotovelada. O batedor e os três mestres usaram o manto da mulher como uma maca improvisada para a transportar.
O pai de Marika gritou:
— Mari, leva o Jacob e mostra-lhe onde fica a sua cama. Penso que já tivemos todos excitação suficiente para uma noite.
Marika anuiu. Afastando-se para o lado, Jake esperou que o grupo começasse a descer. Atravessou a torre até ao parapeito e olhou para Calypsos. Conseguia identificar a espiral da estrada principal, que se afastava do castelo em direção ao portão principal. Tudo tão pacífico e sossegado.
Contudo, Jake só precisava de se virar e ver o sangue fresco espalhado sobre as pedras para perceber que aquela tranquilidade não passava de uma ilusão.
Ele vem aí… ele vem aí… ele vem aí…
Jake lembrou-se também do azul profundo dos olhos da caçadora. Naquele breve momento, os olhos dela lembraram-lhe os olhos da sua mãe… sempre sorridentes e repletos de vida e amor. Olhos que nunca mais veria.
Ajuda-me…
Jake estremeceu. Ele não conseguira salvar a sua mãe, mas naquele momento fez um voto silencioso de fazer o que fosse possível por aquela mulher. Mas como? Não sabia nada sobre este mundo. Enquanto desesperava, o seu olhar prendeu-se numa última visão, uma derradeira esperança.
Iluminado pela luz prateada do luar, um dragão de pedra pairava sobre o bosque sombrio. Fitava as cristas do vale, como um cão de guarda vigilante à procura de intrusos.
Jake sentia que as respostas se escondiam ali.
Mas será que as conseguiria desvendar a tempo?