12

A MANSÃO BORNHOLM

— Mas quem diabo é esse Rei Caveira? — perguntou Jake, enquanto atravessava o pátio do castelo.

Há muito que queria fazer essa pergunta, mas foi apenas à luz resplandecente do Sol que se sentiu à vontade para a fazer.

Pindor fez uma careta e mordeu o polegar. Olhou de relance para Marika.

Marika baixou a voz para um sussurro e aproximou-se mais de Jake. Pindor também se chegou para mais perto.

— O seu nome é Kalverum Rex. Ele era um mestre em Calypsos há mais de meio século. O meu pai era um dos seus aprendizes. — Marika apontou para o emblema de prata de Jake. — Naquela altura, Kalverum era o melhor alquimista de Calypsos, ofuscando os outros dois mestres. No entanto, tal como o mestre Zahur, ficou com as caves e proibiu toda a gente de lá entrar. Ele também mantinha lá criaturas da selva.

Marika estremeceu.

Pindor continuou:

— Diz-se que ele cometeu todo o tipo de horrores lá em baixo, que fazia experiências com um novo tipo de cristal, a pedra-de-sangue, um cristal negro capaz de envenenar e corromper a carne.

— E talvez esse mesmo veneno o tenha corrompido também — continuou Marika. — Começou a isolar-se cada vez mais, às vezes não via a luz do Sol durante meses a fio. Depois começaram a desaparecer crianças…

Jake sentiu o estômago às voltas.

— O meu pai nunca disse o que foi encontrado nessas caves. Um mestre foi morto. Um incêndio esteve prestes a consumir toda a torre. No entanto, Kalverum escapou. Fugiu para lá do Portão Quebrado, para as profundezas da selva. Uma mão-cheia de pessoas seguiu-o. Foi um período difícil para o nosso povo. Ficámos só com um mestre, e até ele era velho e frágil… e com os três aprendizes da altura.

— O teu pai — disse Jake — juntamente com Zahur e Oswin?

Marika anuiu e continuou:

— Perdemos muito conhecimento, mas pelo menos livrámo-nos do monstro.

— Ou assim pensávamos — acrescentou Pindor.

Marika continuou:

— Vinte anos mais tarde, começaram a surgir rumores da selva profunda sobre bestas corrompidas, como o grakyl que tu viste. Um deles foi apanhado e trazido para aqui. Os mestres examinaram-no e reconheceram a alquimia do mal do Kalverum Rex. Eles acreditam que o Kalverum construiu uma fortaleza no meio das escarpas da Espinha, as montanhas que ficam para lá do pântano de Erva-de-Fogo. Ao longo dos anos, caçadores e batedores desapareceram, enquanto outros regressaram dos limites do pântano a contar histórias de enormes colunas de fumo fétido que se erguiam das escarpas cobertas de neve da Espinha.

— Então, ele ainda anda por aí — observou Jake.

— E cada vez mais forte — concluiu Marika. — Nos últimos anos, as suas criaturas hediondas têm vindo a ganhar terreno. Já chegaram às nossas fronteiras.

Jake lembrou-se do grakyl preso no portão, impedido de avançar pela força misteriosa que protegia o vale.

— E essa pedra-de-sangue? — perguntou ele, pensando na ponta de flecha. — O que é exatamente?

— Ninguém sabe ao certo. Depois do incêndio na torre, foi proibido estudar essa alquimia obscura. É melhor perguntares ao meu pai.

Um grito interrompeu Marika.

— Olha, olha, se não é o irmão mais novo de Heron.

Jake virou-se e avistou um grupo de rapazes mais velhos do outro lado do pátio. Encontravam-se sentados na vedação de um curral. Atrás deles estavam a selar alguns Othnielia.

— Ainda tens medo de lagartos, Pin? — gritou um deles.

Outro inclinou-se sobre o seu companheiro.

— É difícil acreditar que é irmão de Heron. Tem demasiado medo até para colocar uma sandália num estribo.

O rosto de Pindor ficou vermelho. Marika tocou ao de leve no cotovelo do amigo, mas este afastou-se dela. Pindor acelerou o passo em direção aos portões do castelo, deixando Jake e Marika para trás.

— O que foi aquilo? — perguntou Jake, suavemente.

— Pindor queria juntar-se à Guarda Montada que patrulha a cidade, como o irmão e o pai. — Marika abanou a cabeça com tristeza. — Mas, não correu bem. Ele entrou em pânico quando tentou montar. Estava toda a gente lá. Até mesmo o seu pai. Agora vai ter de esperar até ao próximo ano.

— O que aconteceu?

— O Pin… bem, ele fica um pouco nervoso ao pé dos animais maiores. Vês como coxeia da perna esquerda? A antiga montada do pai, uma criatura com um temperamento muito mau, partiu-lhe o osso da canela quando ele tinha apenas cinco anos. Pindor entrou no seu estábulo para lhe dar de comer. Ninguém estava a prestar atenção.

Jake olhou para as costas de Pindor. Ele continuava a caminhar muito direito, mas parecia que queria desatar a correr para fora dos portões do castelo, a fim de sair da linha de visão dos jovens cavaleiros que se encontravam no campo de treino.

— A história da sua humilhação espalhou-se… e foi sendo exagerada à medida que era recontada — continuou Marika. — Se Pindor não fosse filho do ancião Tiberius, talvez a história não tivesse sido tão empolada. As pessoas conseguem ser tão cruéis. Essa foi uma das razões que o levou a atravessar o Portão Quebrado… quando te encontrou a ti e à tua irmã.

— Como assim?

— Se tivéssemos conseguido regressar com um pedaço da casca de um ovo de um lagarto-trovão ou, ainda melhor, com um ovo, a bravura de Pindor ficaria provada e acabaria com todas as histórias de uma vez por todas. Talvez até tivesse outra oportunidade de se tornar membro da Guarda Montada.

Chegaram aos portões e seguiram Pindor para fora do castelo em direção à rua principal. Por fim, Pindor abrandou e Jake e Marika conseguiram alcançá-lo. Ele olhava para os pés enquanto continuava a andar pelas ruas.

Jake caminhou ao lado dele. Não sabia o que dizer, mas não havia qualquer dúvida de que sabia o que Pindor sentia.

O romano fungou e falou num tom baixo:

— Ontem, tu afugentaste aquele lagarto-trovão com aquela flauta que trazias.

— Na verdade, é um apito.

Jake enfiou a mão no bolso e tirou o tubo de aço. Entregou-o a Pindor para ele o examinar. O rapaz pegou no apito com um ar sonhador.

— O apito faz um som que nós não conseguimos ouvir — explicou Jake —, mas alguns animais conseguem. Porque não o guardas durante uns tempos?

Pindor não desviou os olhos do apito.

— A sério?

— Claro.

Jake encolheu os ombros, sabendo que Pindor bem precisava de algo para o animar.

Os dedos de Pindor fecharam-se sobre o presente.

— E isto pode ser usado para controlar as bestas dos campos?

— Isso já não sei, mas de certeza que lhes deve chamar a atenção e, com alguma prática, pode vir a ser uma boa ferramenta de treino.

Pindor anuiu com a cabeça. A dor nos seus olhos suavizara-se e transformara-se em encanto.

— Obrigado — murmurou Pindor, continuando a percorrer a estrada com um passo mais ligeiro.

Marika aproximou-se de Jake e sorriu-lhe.

— O que foi? — perguntou Jake.

Ela virou a cara, depois olhou para ele de relance, pelo canto do olho. Nos seus lábios dançava um sorriso.

— O que foi? — perguntou ele novamente.

— Nada — retorquiu ela. — Nada mesmo.

A mansão viquingue de Bornholm erguia-se à sua frente como um navio de guerra forjado sobre os telhados de Calypsos. A metade de cima do edifício pertencera claramente a um navio antigo. Uma proa de madeira proeminente, esculpida na forma de um monstro marítimo com as presas de fora, projetava-se sobre a rua. Por baixo dela, encontravam-se portas de madeira pesada, talvez até recuperadas do próprio navio.

Pindor agarrou na aldraba de ferro em forma de cabeça de lobo e bateu com força.

Uma minúscula grade abriu-se na porta.

— Quem deseja entrar em Bornholm?

— Eu… — Pindor aclarou a garganta, pois a sua voz soara como um guincho assustado. Tentou novamente, fazendo a voz mais grave: — Venho a mando do mestre Balam. Com o recém-chegado Jacob Ransom. Para visitar a sua irmã.

Passado um momento, uma metade das portas duplas abriu-se. Uma mulher alta e loura surgiu à sua frente e estudou os novos convidados de Bornholm. A avaliar pela ruga acentuada entre as sobrancelhas, a mulher não parecia ter gostado do que tinha à frente.

— Entrem! — disse ela com brusquidão.

Para lá das portas, estendia-se um corredor com traves de madeira até ao fundo do edifício, onde outro conjunto de portas duplas conduzia a um pátio soalheiro. Quando Jake entrou, ficou surpreendido com o espaço cavernoso. Candelabros de ferro em forma de hastes de veado brilhavam com pedaços de cristal branco. Estes iluminavam o mural pintado na parede, do lado oposto à lareira. Um navio sulcava as ondas coroadas de espuma branca de um mar tempestuoso, com as suas velas quadradas içadas e remos a sair de ambos os lados.

A sua guia reparou no interesse de Jake.

— O Valkyrie — disse ela, beijando as pontas dos dedos e tocando no navio pintado ao passar.

Ficou claro que era esse o nome do navio. No entanto, Jake também reconhecia o nome da mitologia nórdica.

— As valquírias? Não eram guerreiras? As escudeiras de Odin?

A guia virou-se para Jake, com uma mão na cintura.

— Conheces as nossas histórias.

Jake olhou para cima, para aqueles olhos azul-gelo, e retorquiu:

— Algumas delas.

A guia acenou com a cabeça, satisfeita.

— Eu sou Brunhildr, a anfitriã de Bornholm. Sejam bem-vindos — disse ela, um pouco mais calorosa. — A tua irmã está lá fora. Sigam-me.

No entanto, assim que ela se virou, o som de botas a bater ruidosamente no chão ecoou vindo da escadaria em frente. Surgiram duas raparigas a correr, ambas de cabelo negro e pele escura. Gémeas. Deviam ser da mesma idade que Kady.

Brunhildr parou à frente delas e perguntou:

— Como está a anciã?

Uma das raparigas abanou a cabeça.

— A anciã Ulfsdottir passou toda a noite em Kalakryss, à cabeceira da irmã. Até agora, ignorou a sua própria cama e passou a manhã inteira a rezar a Odin.

— E recusou todas as refeições — acrescentou a outra rapariga. — Mas nós vimos quem estava à porta e viemos saber se há notícias de Livia.

Todos os olhares se voltam para Jake e para os seus companheiros.

— Esta é a Hrist e a sua irmã, Mist — apresentou Brunhildr. — Foram elas que trouxeram a caçadora Livia das margens do pântano de Erva-de-Fogo.

Marika deu um passo em frente e disse suavemente:

— Receio que não tenhamos boas novas. O meu pai e o mestre Zahur continuam a cuidar de Livia, utilizando todo o seu saber, mas receiam que ainda se encontrem lascas de pedra-de-sangue enterradas na sua carne, mantendo-a encurralada entre este mundo e o próximo.

Hrist e Mist trocaram olhares apreensivos. Mist parecia estar prestes a chorar. Hrist disse para a irmã:

— Fizemos tudo o que podíamos. — Virou-se para Jake e para os seus companheiros. — A caçadora Livia atravessou sozinha o pântano numa pequena jangada, deixando-nos na margem, para espiar mais de perto o covil do Rei Caveira. Esteve ausente cinco noites e voltou quase morta, com uma flecha espetada no ombro, caindo por terra assim que pôs os pés na margem. Não disse uma única palavra.

Marika olhou de relance para Jake e abanou a cabeça de forma quase impercetível. O pai de Marika avisara-os para não repetirem o que Jake ouvira no telhado.

Mist esfregou as mãos e balbuciou:

— Ela tem de sobreviver.

— Os mestres estão a fazer os possíveis — prometeu Marika.

Hrist suspirou e disse:

— Iremos relatar isto à anciã Ulfsdottir.

Agarrou no cotovelo da irmã e subiram novamente as escadas a correr.

Brunhildr continuou a percorrer o corredor em direção ao pátio cheio de sol.

— São tempos difíceis — disse ela entredentes. — Lamento que a tua irmã tenha vindo para Bornholm numa altura tão sombria.

Jake sentia-se cada vez mais preocupado. Como estaria a irmã a aguentar-se no meio destas mulheres duras? Quando saiu do corredor para a luz do Sol, viu a irmã no meio do pátio… com um par de espadas nas mãos!

— Não, é assim — disse Kady, falando para um grande grupo de mulheres à sua volta.

Estava vestida com uma túnica verde e tinha calçadas umas botas até ao joelho.

Kady dançava para trás e para a frente no meio das mulheres e brandia as espadas curtas à volta do corpo numa dança letal.

O que estava ela a fazer?

Jake arquejou quando ela atirou uma das espadas ao ar. A espada rodou, refletindo a luz do Sol, brilhando intensamente… depois caiu. Kady apanhou-a ainda no ar pelo cabo e brandiu-a com destreza e graciosidade.

De repente, Jake lembrou-se de que já vira aquela coreografia antes. Fora num ensaio com bastões da claque de Kady. A irmã praticara a coreografia tantas vezes que era provável que já a conseguisse fazer a dormir… e, ao que parecia, com espadas.

Aplausos seguiram-se à sua demonstração.

Uma bancada que se estendia ao longo da parede ao fundo do pátio estava cheia de homens com capacetes e mantos viquingues. Riam e sussurravam uns com os outros. Numa das pontas da bancada, Jake viu um rosto familiar, um rapaz mais velho de túnica. Parecia que Heronidus estava a gostar dos seus deveres enquanto guarda. Encontrava-se sentado, completamente fascinado por Kady, seguindo cada um dos seus movimentos. Não havia dúvida de que a estava a vigiar de perto.

— Kady! — gritou Jake, chamando-lhe a atenção de imediato.

Ela viu-o e esboçou um enorme sorriso.

— Jake, aí estás tu! Disseram-me que vinhas.

Kady entregou as espadas a outra mulher, depois atravessou o pátio para ir ter com ele. Jake também reparou que ela entrançara o cabelo, como era costume entre as caçadoras, mas embelezara a sua um pouco mais.

Kady reparou na sua atenção e passou a mão pelo cabelo.

— Como é que me fica? Não queria fazer aquela coisa tipo rabo de cavalo. É demasiado parecido com a Heidi para meu gosto.

Mas não se ficara por ali. Jake também reparou que duas das mulheres viquingues também tinham feito uma trança igual à de Kady. Semicerrou os olhos para ver melhor. E será que uma delas estava a usar sombra nos olhos?

Oh, meu Deus.

E ele que pensava que ela estaria em posição fetal a chorar desalmadamente.

— Como é que tu… o que é que… — balbuciou Jake.

— Eu estou bem, se é isso que estás a perguntar. Têm cuidado bem de mim. E tu, estás bem?

Jake não sabia por onde começar. A sua noite incluíra dor, um banho de sangue e rumores de um exército abominável a formar-se na selva profunda. E o que é que Kady tinha andado a fazer? A entrançar o cabelo das amigas e a partilhar segredos de cosmética. Será que havia coisas que nunca mudavam mesmo?

Kady riu-se.

— O que foi? Disseste-me para fazer amigos.

Lá isso era verdade.

Kady baixou a voz e disse:

— E tu? Descobriste alguma coisa?

Jake olhou em redor. Estavam todos a olhar para eles. Baixou a voz até não ser mais do que um sussurro:

— Conto-te mais logo. Mas, por agora, ainda estou a tentar arranjar uma maneira de chegar à pirâmide. Tem de haver alguma fonte de energia lá.

Jake tocou no emblema de prata que tinha preso ao colete de safári e disse:

— Tem algo que ver com os cristais.

Kady inclinou-se sobre ele, olhou fixamente para o emblema e comentou:

— É bonito.

As faces de Jake ficaram quentes.

— Não é bonito… é… é importante.

Kady endireitou-se e encolheu os ombros.

— Então, se a pirâmide é assim tão importante, o que é que estás a fazer aqui?

Pelo tom de voz que usou, era óbvio que ela estava mais a perguntar porque é que estás aqui a incomodar-me?

— Queria saber como estavas.

Kady franziu o sobrolho face à sua preocupação, como se estivesse a ler nas entrelinhas.

— Sabes que eu até me consigo safar, Jake.

— Eu não disse o contrário.

Está bem, talvez o tivesse pensado…

Ainda assim, a conversa não estava a correr como Jake esperara. Numa derradeira tentativa, apontou para a parte da frente de Bornholm.

— Pensei que talvez quisesses ir conhecer a cidade connosco.

— Convosco? — Uma atitude desdenhosa e familiar permeou-lhe a voz. — O Heron ia levar-me aos campos de jogos.

Heron? Desde quando é que Kady e Heronidus eram tão amiguinhos?

Kady continuou:

— Ao que parece, vai haver uma espécie de competição nos próximos dois dias. Um campeonato entre os romanos e outros… — Kady franziu o nariz. — Acho que são lutadores de sumo ou algo parecido.

Lutadores de sumo? Jake deu voltas à cabeça a pensar nas outras culturas que vira naquele mundo.

— Não queres dizer sumérios?

— Talvez seja isso. Quero lá saber. O Heron tentou falar-me do jogo. É parecido com polo. De qualquer forma, ele vai levar-me a um dos treinos.

Kady acenou para o seu guarda, o qual também lhe acenou e a brindou com um sorriso palerma.

Jake acabou por se afastar, desistindo.

— Então, se ficas bem, eu vou com a Marika e o Pindor.

Kady encolheu os ombros, mas a sua voz tornou-se cortante. Olhou fixamente para ele.

— Certifica-te de que sabes o que estás a fazer. Não te distraias demasiado.

Jake percebeu o que ela estava a insinuar. Por outras palavras, não andes a brincar… encontra um caminho para casa. E, enquanto ele trabalhava para isso, Kady poderia continuar a fingir ser a Barbie valquíria-guerreira.

Quando a irmã se afastou para voltar para junto dos outros, Jake franziu o sobrolho. Ela estava a pôr tudo nas costas dele: descobrir o que se estava a passar e arranjar uma maneira de voltar para casa.

Mas será que ele conseguiria fazer isso tudo?

Palavras obscuras ecoaram na sua cabeça, relembrando-lhe que estava a ficar sem tempo.

Ele vem aí… ele vem aí…