15

O CORAÇÃO DE CRISTAL DE KUKULKAN

Na manhã seguinte, Jake encontrava-se sentado no Astromicon, pronto para começar a sua aprendizagem. Sentia-se mil vezes melhor.

Balam entregou-lhe um tabuleiro de madeira dividido em pequenos compartimentos. Cada um deles continha pedaços de cristais num arco-íris de cores. Deviam estar ali mais de cem tonalidades diferentes.

— Cada cristal colorido serve um único propósito — explicou Balam, ao lado de Jake. — Alguns, nós sabemos o que fazem, como este.

Balam escolheu um cristal do tabuleiro e segurou-o diretamente sob um feixe de luz que passava por uma das doze ranhuras da cúpula. O cristal era vermelho-escuro, cor de vinho.

Balam virou-se para Marika, que estava sentada ao lado de Jake, e perguntou-lhe:

— Qual é o nome deste cristal?

Marika franziu o sobrolho, pensativa.

— Brilho-de-ferro?

— Muito bem — retorquiu ele com um sorriso orgulhoso. — Esta pedra, quando molhada, atrai ferro para o seu coração.

Balam lambeu o cristal e colocou-o junto a um prego de ferro. O prego saltou da mesa e colou-se ao cristal.

Jake aproximou-se, fascinado. De alguma forma, o cristal ficara magnetizado.

Balam sorriu face à reação de Jake, satisfeito com a sua demonstração, depois bateu no cristal com um martelo de prata. O prego de ferro soltou-se da pedra e caiu no tampo da mesa.

— Outros cristais continuam a ser um mistério e é esse mistério que eu passo os meus dias a estudar. — Balam pousou uma mão no ombro de Jake. — Na maior parte das vezes, a alquimia é uma parte sabedoria e nove partes acaso. E, quase sempre, perigosa. — Balam tocou no emblema de prata no casaco de Jake. — Estes são os quatro fundamentos da alquimia. Deves conhecê-los bem.

Jake observou os cristais embutidos no seu emblema. O rubi, a esmeralda e a safira formavam um triângulo à volta do diamante. Balam tocou em cada um deles.

— Destas quatro pedras surgem todas as outras. — Balam passou a mão por cima da caixa. — Das quatro flui todo o poder de Kukulkan.

Enquanto Jake estudava o emblema, algo começou a aflorar no seu cérebro, algo que ele aprendera há muito tempo. Mas o que seria? Era algo que tinha que ver com as três pedras coloridas que formavam o triângulo: vermelho, verde, azul…

De repente, lembrou-se. Era como uma explosão dentro da sua cabeça. Algo que o pai lhe mostrara numa das vezes que foram acampar. Jake torceu-se na cadeira e baixou-se para apanhar a mochila que estava no chão. Vasculhou o seu interior e encontrou o que procurava enterrado no fundo da mochila.

A sua atitude frenética atraíra a atenção de Balam.

Jake retirou da mochila um pedaço de quartzo, cortado na forma de um prisma triangular.

— Vermelho, verde e azul — disse ele. — São as três cores primárias da luz!

O seu pai explicara-lhe como as televisões e os computadores usam fósforo vermelho, azul e verde para produzir milhares de cores no ecrã. O pai de Jake também lhe mostrara outra coisa.

Antes que qualquer um deles conseguisse falar, Jake expôs o prisma diretamente à luz solar. À medida que os raios de sol o atravessavam, a luz formava um pequeno arco-íris que brilhava na parede.

— Isto é alquimia avançada — explicou Balam. — Poucos compreendem como todas as cores do mundo estão escondidas no coração da luz do Sol. Na verdade, toda a alquimia começa com o Sol. — Balam apontou para as brechas na cúpula do telhado que deixavam passar a luz, depois voltou-se novamente para Jake. — Onde aprendeste isso?

— Com os meus pais — respondeu Jake. — Ensinaram-me que, se misturarmos luzes coloridas diferentes, podemos obter uma cor nova. — Jake apontou para o arco-íris na parede, para onde as bandas de luz vermelha e verde se misturavam e davam origem à faixa amarela. — A luz vermelha e a luz verde fazem amarelo, enquanto a vermelha e a azul ao misturar-se formam o roxo. E, quanto mais cores misturarmos, mais cores conseguimos fazer.

Jake baixou o seu prisma e o arco-íris desapareceu.

Balam continuava a olhar fixamente para a parede, como se o arco-íris ainda brilhasse nela. Abanou lentamente a cabeça e disse:

— Esse tipo de conhecimento está reservado a pessoas que já vão no terceiro nível desta jornada — disse ele. — Não para aprendizes de primeiro ano. Este conhecimento encontra-se no coração de como forjamos novos cristais, de como fazemos as pedras de novas cores.

Balam acenou com a cabeça para a caixa de cristais multicoloridos.

— Espere — disse Jake. — Está a dizer que fez todos estes cristais? Como?

Balam aproximou-se de Jake.

— Deixa-me mostrar-te.

Balam retirou da caixa um fragmento de cristal verde-esmeralda e um rubi. Atravessou a sala e colocou as duas pedras dentro de um pequeno cesto de bronze, que se encontrava pendurado por uma corrente de um mecanismo semelhante a um relógio que enchia a cúpula acima das suas cabeças. Balam puxou outra corrente que enviou o cesto de bronze para cima, para dentro do mecanismo.

Jake deixou rapidamente de conseguir seguir o cesto com o olhar, à medida que este girava e rodopiava através do complicado labirinto do mecanismo. Fluidos corriam por dentro de tubos de vidro e a luz do Sol refratava por todo o aparelho das doze ranhuras no telhado.

Jake lembrou-se das palavras de Balam: Toda a alquimia começa com o Sol.

Será que a energia solar alimentava tudo isto?

Enquanto tentava perceber tudo aquilo, ficou tonto a olhar para o coração da maquinaria rodopiante.

Por fim, a máquina completou o ciclo. Balam estendeu a mão e mostrou a Jake que restava apenas um cristal dentro do cesto. Brilhava intensamente num tom amarelo, como um pedaço de Sol.

— Vermelho e verde fazem amarelo — murmurou Jake.

Jake olhou para cima, fascinado, para o mecanismo que zunia, estalava e borbulhava. De alguma forma, as duas pedras tinham-se tornado uma.

Como é que isso acontecera?

Balam declarou:

— Ao longo dos séculos, os alquimistas forjaram cristais de todos os tons e de todas as cores a partir de cada fragmento de luz solar.

Uma pergunta ainda incomodava Jake. Já o incomodava desde que tinha visto pela primeira vez o candelabro de cristal no corredor principal do castelo.

— Mas o que faz com que os cristais brilhem? — perguntou ele. — O que lhes dá energia?

Balam sorriu de forma mais calorosa:

— Que mente curiosa tu tens, Jacob. Não é de admirar que tenhas crescido tão rapidamente em termos de conhecimento. — Balam virou-se para a sua filha. — Mas talvez a Mari te possa responder a essa pergunta.

Jake olhou de relance para a rapariga.

Marika fitou os seus pés, timidamente.

— Todo o poder tem origem no coração de cristal de Kukulkan.

Balam anuiu com a cabeça, acrescentando:

— Jacob, já alguma vez atiraste uma pedra para o centro de um lago e observaste a pequena ondulação que surge em todas as direções até à margem?

Jake acenou com a cabeça. É claro que já vira.

— Passa-se o mesmo com o coração de cristal no centro do grande templo. O seu batimento é como uma pedra atirada para um lago tranquilo. Lança pequenas ondas para o vale, que inflamam as nossas lareiras e acendem todas as nossas pedras. Permite que as tribos falem uma só língua e estende-se até às escarpas que rodeiam o vale, protegendo-nos.

Jake imaginou a energia a fluir do templo, fornecendo energia aos cristais e protegendo o vale.

Marika continuou:

— Contudo, para lá do vale, as ondas de energia esmorecem rapidamente. Para lá do vale, uma tribo não compreende a outra e os cristais verdes perdem a capacidade de comunicar à distância. É por isso que precisamos de dardos-alados para enviar mensagens para as profundezas da selva, e é também por isso que os caçadores e os batedores viajam com membros das suas próprias tribos.

Jake compreendeu. O campo de proteção só fazia efeito até uma certa distância. Não era de admirar que as Tribos Perdidas tivessem permanecido neste vale.

Com um suspiro preocupado, Balam olhou fixamente para o Sol através de uma das ranhuras do telhado.

— Tenho de ir ter com o mestre Zahur e ver como está a caçadora Livia.

Jake virou-se no seu assento. Estava curioso em relação a um cristal que o pai de Marika não mencionara.

A pedra que envenenara a caçadora Livia. A pedra-de-sangue…

Uma nuvem escura abateu-se sobre o rosto de Balam, que respondeu:

— Nós não falamos de tamanha maldade. É proibido forjar essas pedras.

Jake olhou para cima, para o mecanismo giratório.

Balam devia ter conseguido ler-lhe os pensamentos.

— Essa maldição não nasceu aqui, no Astromicon. A pureza da luz do Sol não deu origem a essa pedra. Foi criada por uma chama bem mais sombria.

Com essas palavras duras, Balam dirigiu-se para a porta. Ficou parado alguns momentos com a mão no trinco e olhou para trás de relance.

— Mari, talvez seja melhor limitar o estudo de hoje aos nomes das pedras. Não queremos cansar demasiado o Jake depois da noite de ontem.

Balam abriu a porta e saiu para a luz intensa do Sol.

Marika respirou fundo quando a porta se fechou. Tinha um ar apologético no rosto.

— O papá não gosta sequer que se pronuncie o nome pedra-de-sangue.

— Mas eu não percebo. Está no coração do poder do Rei Caveira. Não deviam saber mais sobre ela?

Marika mudou de posição na cadeira e colocou a caixa de fragmentos de cristal no meio deles.

— Talvez devêssemos saber mais sobre estes primeiro.

Apesar da sua hesitação, Jake viu uma faísca de curiosidade nos olhos de Marika. Era igual à sua. Olhou fixamente para o cristal branco, que brilhava intensamente dentro da caixa. A luz branca continha todas as cores do espectro, enquanto o preto era a ausência de toda e qualquer luz. Jake estremeceu, lembrando-se de como a pedra-de-sangue parecia ter sugado por completo a luz da Lua.

O aviso de Balam ecoava na cabeça de Jake. A pedra-de-sangue não era forjada na pureza da luz do Sol, mas era criada por uma chama muito mais sombria.

Jake encolheu os ombros. O que é que importavam as pedras-de-sangue? Não era problema dele. Jake só queria voltar para casa. E a única maneira de o fazer era descobrindo o máximo que pudesse sobre a pirâmide… o que, por sua vez, implicava que aprendesse mais sobre estes estranhos cristais.

E havia apenas uma única maneira de o fazer.

Jake acenou com a cabeça para o seu tabuleiro de madeira e disse:

— Então, talvez seja melhor começar.

Passadas algumas hora, Jake descansava lá fora. Estava sentado com as pernas cruzadas no topo da torre em cima de um cobertor. A luz do Sol queimava. Embora estivesse calor, a claridade ajudava a dissipar a tensão que se acumulara dentro dele.

A alguns passos de distância, Pindor encontrava-se sentado na beira do parapeito. Para alguém que tinha medo de sáurios, parecia destemido em relação à possibilidade de cair para trás. Baloiçava-se para trás e para a frente no parapeito, enquanto mordiscava o que parecia ser uma asa de galinha. Tinha molho espalhado pela boca toda.

— Muito poucos sobrevivem à picada de um cauda-ferrão — disse Pindor, apontado a asa de frango para Jake. — O deus Apolo deve estar a tomar conta de ti.

— Acho que não foi o deus Apolo — interrompeu Marika. Ajoelhou-se no tapete com Jake e vasculhou o cesto de junco que Pindor fizera chegar lá acima. Procurou no meio dos pãezinhos e da carne seca. Encontrou um feijão-kwarma e sentou-se com ele. — O mestre Zahur ajudou mais Jake a sobreviver do que qualquer deus do monte Olimpo.

Pindor encolheu os ombros e desencostou-se da parede.

— E achas que alguém colocou o cauda-ferrão no teu quarto?

Marika olhou para Jake. Ele acenou com a cabeça.

— Quem faria isso? — perguntou Pindor. — Ouvi o meu pai falar com o mestre Oswin. Toda a gente diz que foi um acidente. Que uma das criaturas de Zahur fugiu da jaula e acabou no quarto de Jake.

Marika abanou a cabeça.

— Tenho a certeza de que ouvi alguém no corredor no início da manhã. Mas não o posso provar.

— Porque haviam de o querer matar? — indagou Pindor.

Marika descascou lentamente o seu feijão-kwarma.

— Talvez alguém tenha medo dele. Ou do que ele sabe. Da sua ci-enzia.

Pindor não parecia convencido, mas mudou de assunto.

— Então, que mais faz essa ci-enzia? — Pindor recostou-se e olhou fixamente para Jake. — Mostra-nos mais.

— Pindor, ele não é um macaco amestrado que faz o que tu queres.

Ainda assim, Jake viu como Marika tentava esconder o seu próprio interesse. Também reparou que os seus olhos verdes refletiam a luz como esmeraldas.

— Posso mostrar-te uma ou duas coisas — ofereceu Jake.

— Não tens de o fazer — disse Marika, mas a sua expressão iluminou-se.

Sentindo-se estranhamente quente por dentro, Jake levantou-se. Deixara a sua mochila no Astromicon.

Bora! — disse ele.

Jake conduziu os outros pela escotilha e para o interior da cúpula. A sua mochila encontrava-se debaixo da mesa, junto ao banco onde estivera sentado. Puxou-a e vasculhou dentro dela. Os seus dedos encontraram uma lanterna em forma de caneta. Era do tamanho de uma pequena chave de fendas.

— Nós chamamos a isto lanterna.

Carregou no botão, apontou-a à parede e dançou com o feixe de luz na superfície curva de bronze da cúpula.

Olhou de relance para os outros dois.

Pindor permaneceu de pé, com os braços cruzados, e disse:

— Nós também temos luzes. Estão por todo o lado a iluminar Calypsos.

Contudo, Marika semicerrou os olhos, intrigada.

— Posso ver? — pediu ela.

— Claro — respondeu Jake, entregando-lhe a lanterna.

Marika girou-a nos seus dedos, depois tocou na lente da lanterna.

— Isto é alguma espécie de cristal plano? É isto que lança tanta luz?

— Não, funciona a… — Jake teve de se concentrar para que a palavra lhe saísse dos lábios em inglês — … baterias.

Bat-trias — repetiu Pindor. — O que é isso?

Jake tirou a lanterna das mãos de Marika e rodou-a para abrir. Deixou deslizar para a palma da sua mão duas baterias AAA.

— Estas produzem energia e fazem com que a lâmpada dentro da lanterna brilhe. Usando eletricidade — explicou Jake, mais uma vez forçando a sua língua a pronunciar a última palavra.

Entregou uma bateria a Marika e outra a Pindor. Marika examinou a sua com a intensidade de um cientista a estudar uma nova espécie de escaravelho. Pindor cheirou a sua, como se se estivesse a perguntar qual seria o seu sabor. Acabou por apontar a bateria a Jake.

— Faz mais alguma coisa com ela.

— Pindor… — repreendeu Marika.

— Só quero ver o que mais faz. Por exemplo, o que é que estas bat-trias fazem aos nossos cristais.

Antes que alguém o conseguisse impedir, Pindor virou-se para a caixa de cristais e atirou a bateria com toda a força para cima deles. Jake ficou tenso. Marika afastou o braço de Pindor. Mas não aconteceu nada.

No entanto, deu uma ideia a Jake. Talvez a ideia de Pindor não fosse assim tão disparatada. Será que a sua ciência e a alquimia deles podia, de alguma maneira, ser usada em conjunto?

— Vermelho e verde fazem amarelo — murmurou, lembrando-se da demonstração do pai de Marika.

Jake pegou na bateria de Pindor e inclinou-se para apanhar um pedacinho de cristal azul que caíra ao chão.

Recuando um passo, pôs-se em bicos de pés e colocou a bateria e o cristal azul no cesto de bronze.

— Jake — disse Marika. — Não podemos mexer nisso.

Jake olhou de relance para ela. As suas palavras de aviso dela tinham-lhe soado um tanto ou quanto inseguras.

Pindor mostrou-se menos relutante e disse:

— Não vai acontecer nada.

Jake manteve o seu olhar fixo em Marika. Se ela dissesse não, ele obedecer-lhe-ia. No entanto, a curiosidade dela parecia ter aumentado. Ela era como o pai nesse aspeto.

— A alquimia é… nove partes acaso — disse Jake, citando Balam.

Marika respirou fundo e dirigiu-se para a porta. Jake receou que ela se fosse embora, mas Marika limitou-se a fechar a porta que tinham deixado aberta. Virou-se para Jake e acenou com a cabeça.

Com um sorriso, Jake esticou-se e puxou a corrente. O cesto elevou-se no ar.

Jake deu um passo atrás. A luz do Sol brilhou e faiscou à medida que refratava entre centenas de cristais embutidos nas engrenagens da máquina. À primeira vista, não pareceu acontecer nada… depois, o mecanismo começou a girar um pouco mais rapidamente. Salpicou as paredes de pequenos arco-íris.

— Jake… — avisou Marika.

Foi então que começou a rodar ainda mais depressa. Pequenas válvulas, aqui e ali, deixaram escapar vapor e a máquina assobiou. As engrenagens giravam num frenesim.

— Temos de a parar — gritou Marika.

— Como? — indagou Jake.

Todos se baixaram enquanto o mecanismo trabalhava ruidosamente, uma massa rodopiante de vidro e bronze. A máquina arfava e gemia e murmurava e suspirava. Não havia como pará-la.

À medida que o mecanismo trabalhava cada vez mais depressa, a sala inteira começou a estremecer. Ferramentas e cristais tilintavam em cima da mesa. Uma pilha de livros tombou. E, ainda assim, rodava cada vez mais furiosamente.

Jake recuou até à mesa. O que é que eu fui fazer?

— Jake! — gritou Marika, aflita.

Marika ergueu a segunda bateria, que ainda se encontrava na sua mão. Saíram faíscas de um dos lados da bateria, que se elevaram no ar e foram, em seguida, sugadas para dentro da máquina rodopiante.

Jake correu para junto de Marika e agarrou na bateria. Levou um choque, que ardeu como quando um elástico se parte nas mãos. Atirou a bateria para cima da mesa, onde rolou e foi embater num pedaço de cristal do tamanho de um ovo de ganso. Saíram faíscas da bateria e acertaram na pedra.

Incendiou-se de imediato, ardendo como um Sol carmesim.

Antes que Jake se conseguisse mexer, o cristal vermelho derreteu e atravessou o tampo da mesa. Não era apenas tão brilhante como o Sol… era também tão quente como o Sol!

O cristal caiu da mesa e bateu no chão de pedra. Jake suspirou de alívio… até ver o granito a borbulhar junto das faces do cristal. Estava a derreter o chão de pedra!

Jake imaginou o cristal a derreter e a passar de um andar para o outro. Quando pararia? Será que pararia?

Marika permaneceu imóvel, em choque.

Jake correu e agarrou num dos martelos de prata. Se conseguisse bater no cristal, desligá-lo como o pai de Marika fizera anteriormente…

Virou-se para Marika. Ela acenou com a cabeça, compreendendo de imediato o seu plano.

Juntos, correram para junto do cristal e ajoelharam-se, Jake protegeu o rosto contra a luminosidade intensa e contra o calor. Através dos olhos semicerrados, Jake viu a pedra. Encolhera e ficara do tamanho de um ovo de pisco. Flutuava agora numa poça de pedra derretida.

Enquanto Jake se aproximava com o martelo, o cristal encolhia cada vez mais depressa, como se estivesse a ser consumido pelo seu próprio fogo interior, tal como uma estrela moribunda a colapsar sobre si mesma. Jake parou por um momento. Num período de dois segundos, o cristal ardera até ficar do tamanho de uma cabeça de alfinete extremamente brilhante. Em seguida, eclipsou-se.

— Desapareceu… — disse Marika, e encostou-se para trás. A expressão do seu rosto era um misto de horror e curiosidade.

A poça de granito derretido endureceu rapidamente, como se soubesse que a sua própria natureza estava errada e procurasse de alguma forma reverter o seu estado. Num curto período de tempo, tudo o que restava era uma mancha escura no chão.

O mesmo não se podia dizer da mesa.

Jake olhou fixamente para a parte de baixo de um buraco perfeitamente redondo no tampo da mesa de bronze. Conseguia ver através dele. O metal já não estava quente, mas o estrago tinha sido feito.

— Olhem! — disse Pindor.

Durante toda a agitação, não repararam que o mecanismo sobre as suas cabeças desacelerara. Já não trabalhava a grande velocidade nem chiava. Limitava-se a girar. Jake olhou para cima, para o delicado mecanismo. Estaria a ranger um pouco mais do que antes? Estaria mais ruidoso? Teria ele estragado a máquina?

Do seu interior mais profundo, saiu lentamente o cesto de bronze. Todos tinham os olhos fixos nele.

Pindor apontou para Jake e disse:

— A ci-enzia é tua, espreita tu!

Ele tinha razão.

Jake esticou-se e inclinou o cesto, apanhando a bateria. Não parecia ter mudado… mas não havia mais nada! Vasculhou o cesto. O fragmento de cristal azul desaparecera.

Jake olhou de relance para a mancha fumegante no granito. Teria o cristal desaparecido da mesma maneira? Teria sido reduzido a cinzas pelo mecanismo, talvez até alimentado o seu rodopiar frenético?

Marika perguntou:

— O que aconteceu?

Jake limitou-se a abanar a cabeça. Não conseguia perceber.

Marika franziu o sobrolho. Pegou na outra bateria que se encontrava em cima da mesa e entregou-a a Jake. Tinha uma expressão extremamente preocupada no rosto. Já não queria saber da ciência dele. A culpa tirou-lhe o brilho do olhar e fez com que começasse a mordiscar o lábio inferior, ao mesmo tempo que olhava para a mesa.

Jake sentiu uma pontada de dor ao vê-la naquele estado de aflição. Fez com que se sentisse ainda mais culpado. Lembrou-se das palavras que lhe dissera, citando o seu pai: a alquimia é nove partes acaso. No entanto, falhara ao não levar a sério o que o pai dela dissera depois. E, quase sempre, perigosa.

Jake olhou fixamente para as duas baterias na palma da sua mão. Podia ter reduzido a cinzas a torre toda. Voltou a montar a lanterna, colocou de volta as baterias e atarraxou a parte de cima. Como era hábito, premiu o botão e ligou-a. A sua luz brilhou. Voltou a desligá-la. A lanterna ainda funcionava. Enfiou-a dentro de um dos bolsos das calças de safári.

— O que vamos fazer? — perguntou Pindor. Olhou fixamente para o buraco derretido. — Os mestres vão pendurar-nos pelas orelhas.

— Desculpem — disse Jake.

— Bem que devias pedir desculpa! — ripostou Pindor com alguma agressividade.

Marika franziu o sobrolho para os dois, colocando as mãos nas ancas.

— Tu disseste-lhe para avançar, Pin. Nenhum de nós lhe disse para parar. Somos todos culpados.

Pindor não discutiu. A expressão do seu rosto ficou ainda mais abatida com a verdade das palavras dela.

— E amanhã é o equinócio. E a Olimpíada! Vai estar toda a gente lá! Assim que o meu pai souber de tudo isto, terei sorte se voltar a ver o Sol antes do próximo equinócio!

— Não há como arranjar isto — disse Marika com um suspiro profundo. — Mas talvez consigamos fazer com que ninguém descubra o que aconteceu.

O rosto de Pindor iluminou-se.

— O que queres dizer com isso? O teu pai passa a vida aqui. Vai ver…

Marika dirigiu-se para uma pilha de livros que caíra na confusão. Pegou em dois livros, aproximou-se da parte danificada da mesa e cobriu o buraco com livros. Empilhou um em cima do outro.

— Vão buscar o resto! — ordenou ela.

Jake e Pindor recolheram rapidamente os livros. A pilha subiu de novo, formando uma torre vacilante. Jake sorriu para Pindor. O buraco estava agora escondido e a marca da queimadura debaixo da mesa passava facilmente despercebida.

Marika inspecionou o trabalho deles.

— O papá costuma deixar pilhas como esta por todo o lado e esquece-se delas.

— Então é capaz de não encontrar o buraco durante várias luas — disse Pindor.

— Não, vai descobrir mais cedo que isso — retorquiu Marika com um franzir severo da sua testa.

— Como? — perguntou Pindor.

— Porque eu vou contar tudo ao meu pai. Mas vou esperar até à manhã depois do equinócio.

— Mari!

— Não, Pin. Ele tem de saber. Mas não há razão para estragar as celebrações. Era o dia preferido do meu pai e da minha mãe. E agora somos só nós os dois… — As suas palavras morreram, mas ela olhou para Pindor. — Não vou estragar a festa do equinócio! Mas depois das celebrações tenho de dizer ao papá!

O rapaz resmungou entredentes. Aparentemente, estava longe de concordar com ela. Neste caso, Jake estava ao lado do seu amigo romano. Se alguém descobrisse o que eles tinham feito, era provável que a sua carreira como aprendiz de alquimista chegasse ao fim.

— Bem, pelo menos não vou faltar ao jogo — disse Pindor.

O Sol já se dirigia para o horizonte quando saíram do Astromicon.

Pin olhou uma vez mais pela porta antes de Marika a fechar.

— Não admira que alguém tenha tentado ver-se livre de ti — disse ele a Jake. — A tua ci-enzia só dá problemas.

— Eu não sabia. — Jake olhou para Marika. — Quem me dera poder fazer tudo de novo.

— O meu pai diz sempre olha duas vezes e pisa uma, porque em algumas estradas não há como voltar atrás.

Marika pôs o trinco na porta e selou o Astromicon. Eles juntaram os restos do piquenique em silêncio, perdidos nas suas preocupações e arrependimentos.

Olha duas vezes e pisa uma…

Jake lembrou-se de ter empurrado a metade da moeda de Kady na reentrância da pirâmide de ouro no Museu Britânico. Mesmo nessa altura, ele tinha-se lançado sem olhar e arrastara Kady com ele.

Em algumas estradas não há como voltar atrás.

Seria isso verdade também aqui?

Jake endireitou-se com a manta do piquenique dobrada nos seus braços. Para lá das muralhas do castelo, olhou para o dragão de pedra parado no bosque, a guardar o grande templo. Jake recusava-se a acreditar que não houvesse um caminho de volta para casa. Porém, sentia a pressão do tempo como faixas de aço a apertar-lhe o peito. Logo que o acidente ali fosse descoberto, perderia qualquer esperança de explorar a pirâmide. Na melhor das hipóteses, tinha mais um dia.

Mas isso poderia ser suficiente.

Jake lembrou-se da tristeza de Pindor por perder a Olimpíada. Toda a gente vai lá estar! Os olhos de Jake semicerraram-se ao olhar para a pirâmide. Com toda a cidade a olhar para o estádio, quem estaria a ver o outro lado da cidade?

Isso poderia ser a sua única oportunidade. Ele tinha de se esgueirar para lá e descobrir que segredo encerrava o coração de cristal de Kukulkan.

Porém, as palavras de Marika ecoavam na sua cabeça.

Olha duas vezes e pisa uma…

Se ele tentasse e falhasse, não haveria como voltar atrás. Seria certamente preso ou banido. E Kady? Provavelmente, partilharia o mesmo destino.

— Estás pronto? — perguntou Marika.

Jake anuiu.

Era melhor que estivesse pronto.