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DIA DE JOGO

Quando Jake desceu na manhã seguinte, encontrou Marika e o pai já na sala comum. Eles moviam-se como uma máquina bem oleada, pondo as tigelas sobre a mesa, provando o chocolate quente com o dedo, cortando um melão cor-de-rosa em fatias. Balam murmurou qualquer coisa junto do ouvido de Marika, fazendo uma careta apatetada. Ela riu-se quando o pai, ao provar o chocolate demasiado quente, se queimou no dedo e o levou à boca. Os dois moviam-se com a facilidade que vinha de anos de amor. Era uma dança da manhã feliz e fácil, partilhada por pai e filha.

Jake parou a meio das escadas, lembrando-se de manhãs semelhantes em Ravensgate: a sua mãe a ajudar a tia Matilda a estrelar ovos e a fritar bacon, o seu pai sentado à mesa de meias e roupão, absorto num dos seus jornais. Lembrou-se de risos, abraços e sorrisos calorosos.

— Parece que alguém se juntou finalmente a nós!

Jake sacudiu-se e relutantemente pôs de lado os fantasmas dos seus pais. Levantou um braço cumprimentando o pai de Marika e continuou a descer as escadas.

Durante a noite, Jake arquitetara um plano, delineando-o na escuridão. Armou-se para a parte de representação necessária para pôr a primeira fase do seu plano em movimento.

Jake coxeou no último degrau e fingiu um grito de dor. Sentiu realmente uma pontada de remorsos por estar a enganar Marika e o seu pai, mas não tinha escolha. Mancou em direção à mesa.

— Que se passa? — indagou Marika.

Jake inclinou-se e esfregou a perna direita.

— Acordei com cãibras na perna. E… e… — Jake pôs a palma da mão na testa. — E acho que não me estou a sentir lá muito bem.

Balam dirigiu-se rapidamente para o seu lado, pôs a mão na sua testa e instou Jake a sentar-se.

— Deixa-me ver a tua perna. O veneno do cauda-ferrão deve ser levado a sério.

Jake arregaçou a perna das calças. Balam examinou a cicatriz na barriga da perna.

— Não há vermelhidão. Não está inchado — constatou o ancião com alívio. — Está com bom aspeto. Os músculos devem ter sido afetados pelo veneno e contraíram-se.

Jake acenou com a cabeça. Soava-lhe bem — e ia de encontro ao seu plano. Precisava de ficar para trás quando toda a gente se dirigisse ao estádio para o grande jogo. Uma vez sozinho, tinha uma boa oportunidade de se esgueirar para o templo.

— Talvez seja melhor ficares mais um dia aqui na torre — disse Balam. — É uma pena perderes a Olimpíada.

Jake forçou o seu rosto a uma máscara de desapontamento.

— Vou-me deitar. Talvez à noite me sinta suficientemente bem para ir à festa do equinócio.

Marika tocou no braço do pai.

— Papá, eu posso ficar com o Jake. Não podemos deixá-lo sozinho. E se ele precisar de alguma coisa… ou ficar mais doente?

Jake endireitou-se na cadeira.

— Não, eu fico bem. A sério. Se perdesses a Olimpíada por minha causa, não me perdoaria. Ia ficar a sentir-me horrivelmente culpado.

Mas as sobrancelhas do pai de Marika franziram-se de preocupação. Antes que ele pudesse responder, a estreita porta de serviço abriu-se. Uma pequena forma entrou na sala. Era Bach’uuk, balançando uma grande taça nos seus braços.

— Ah, as papas de aveia… — exclamou Balam. — Põe em cima da mesa, Bach’uuk. Obrigado.

O pai de Marika continuava a olhar para Jake com preocupação.

Quando Bach’uuk pousou a taça sobre a mesa, Marika animou-se de repente.

— E se Bach’uuk ficasse contigo, Jake? Ele de qualquer modo não ia ao jogo. Assim, não ficas a sentir-te culpado.

Antes que Jake pudesse responder, Marika disse:

— Bach’uuk, o Jake está a sentir-se um pouco fraco. Não te importas de ficar com ele até nós regressarmos da Olimpíada?

— Posso fazer isso — respondeu Bach’uuk, fitando Jake fixamente.

Jake levantou-se. Com toda a certeza que não precisava que alguém olhasse por ele, muito menos o rapaz das sobrancelhas espessas. Jake lembrou-se das suas suspeitas anteriores sobre quem poderia ter deixado o cauda-ferrão no seu quarto. Bach’uuk podia tê-lo feito facilmente.

O pai de Marika falou.

— E se houver algum problema, Bach’uuk pode ir a correr às caves do mestre Zahur pedir ajuda. O mestre vai ficar na torre para tratar a caçadora Livia.

O estômago de Jake ficou frio. Sentia o seu plano desmoronar diante de si. Não só seria vigiado pelo estranho rapaz, mas também a outra única pessoa na torre seria aquela que tinha deixado o cauda-ferrão escapar. E se houvesse outro atentado à sua vida?

Jake recalculou rapidamente. Talvez tivesse uma oportunidade melhor se fosse com eles ao estádio. Com toda a gente e o caos, podia despistar os outros e esgueirar-se sozinho para o templo de Kukulkan. Afinal de contas, talvez pudesse salvar os seus planos.

Jake esticou a perna direita e deu alguns passos pela sala.

— Talvez nada disso seja necessário. A minha perna está muito melhor. — Contornou a mesa para o provar. — Se calhar não é uma boa ideia ficar deitado. Talvez fique melhor se me mantiver em movimento. Exercitar a perna. E… e odiaria perder o jogo.

— Tens a certeza? — perguntou o pai de Marika na dúvida.

— Realmente, sinto-a muito melhor. Estava só com cãibras.

Balam animou-se.

— Vamos sair cedo então. Vamos devagar. Mas se te sentires cansado ou se as cãibras voltarem…

Jake acenou com a cabeça vigorosamente.

— Eu aviso, prometo.

— Então vamos acabar as nossas papas de aveia, agarrar nas nossas bandeiras e pormo-nos a caminho do jogo!

Marika aquiesceu com satisfação e começou a servir tigelas cheias de papas de aveia quentes com pedaços de frutos secos, canela e mel.

Esquecido pelos outros, mas com plena consciência de que a sua presença já não era necessária, Bach’uuk retirou-se pela porta de serviço.

Pelo canto do olho, Jake observou-o. Leu a expressão do rapaz. Desapontamento… e uma ponta de raiva.

Jake ficou contente quando ele se foi embora.

— Comam! — disse Balam com animação. — Temos um dia excitante à nossa frente!

Para lá dos portões na muralha do castelo, uma multidão enchia as ruas. Estandartes agitavam-se, as pessoas cantavam e ainda outras dançavam em pequenas paradas.

Marika puxou-o para o lado quando um bando de crianças passou por eles a correr, batendo címbalos e tocando cornetas, perseguidas por um dragão chinês feito de seda carregado por adultos sorridentes. Jake reconheceu os mais novos; tinha-os visto a praticar em frente do seu pagode há dois dias.

Quanto mais avançavam, mais pessoas se comprimiam à sua volta. A necessidade de Jake de chegar à pirâmide pesava-lhe. Tinha de encontrar o momento certo para se escapar. Mas a multidão era compacta.

E outra coisa.

Marika dera-lhe a mão assim que passaram os portões do castelo. Pura e simplesmente, ela receava que ele se perdesse ou que pudesse sentir-se mal de repente. Vigiava-o o tempo todo. O seu rosto estava corado de excitação e o sol dançava nos seus olhos. Na mão livre, agitava uma bandeira carmesim com um glifo maia.

Marika viu-o olhar para ela.

— É a bandeira da equipa maia. Perdemos durante uma das primeiras eliminatórias, mas temos de mostrar o nosso orgulho na equipa.

O mestre Oswin soprava e arquejava atrás deles, forçando-os a andar mais devagar.

— Devia ter ficado com o Zahur — queixou-se o monge inglês a Balam. — Se a caçadora morre, gostava de tentar tirar do corpo dela um dos fragmentos da pedra-de-sangue.

— Nós removemos tudo o que conseguimos ver na primeira noite — disse Balam suavemente. Jake teve de abrandar e deslizar para mais perto para ouvir à socapa. — Mas ela continuou a enfraquecer. Todos os fragmentos que possam ter ficado são demasiado pequenos para serem tirados e só arriscarias envenenares-te se tocasses numa lasca com os dedos sem querer.

Balam bateu numa bolsa pesada que trazia pendurada no cinto.

— Tenho o cristal fala-longe de Zahur. Se houver qualquer problema, ele dir-nos-á. Até lá, não vamos lançar sombras sobre este dia claro.

— É justo. — Oswin pôs a mão aberta sobre a sua ampla barriga. — E já saltei as papas de aveia para deixar espaço para o jantar no palácio de Tiberius. Os romanos sabem realmente como organizar um grande banquete!

— Primeiro têm de ganhar — retorquiu Balam com pouca esperança na voz. — Os sumérios derrotaram a nossa equipa sem perder um único ponto. São fortes e estão determinados a ganhar a Tocha Eterna para a sua tribo.

Agora, o seu grupo tinha chegado à saída da cidade, e o rio de pessoas era ainda mais compacto. Ainda de mão dada com Marika, Jake foi puxado pela maré da multidão que fluía pelo portão norte da cidade.

Visto dali, o enorme estádio parecia definitivamente um coliseu romano. Rebocado a branco e pintado em tons de ouro, brilhava com uma claridade ofuscante ao sol do meio-dia.

Arcadas maciças rodeavam o estádio e abrigavam enormes gigantes de pedra. Seguindo a multidão, Jake encontrou-se perante a estátua de Zeus, apoiada sobre um raio. Os seus ombros pareciam carregar o peso de toda a secção superior do estádio. Jake avistou outra estátua — Odin, o principal deus nórdico. Calculou que cada uma das tribos teria aqui algum símbolo seu esculpido na pedra.

À medida que continuavam a andar em direção ao estádio, alguém chamou por eles.

— Ei! Aí estão vocês!

Pindor acenou e dirigiu-se a eles. Quando chegou ao pé deles, Marika largou finalmente a mão de Jake. Ele esfregou a mão no seu casaco, ambos aliviados por estarem livres… mas também um pouco desapontados. O olhar de Marika dizia que talvez ela não estivesse a segurar-lhe a mão só para não o perder entre a multidão.

A este pensamento, Jake sentiu-se de súbito mais leve, porém os cadernos dos seus pais no casaco lembraram-lhe o seu dever. Não podia distrair-se. Tinha de chegar ao templo hoje.

— É melhor apressarmo-nos — disse Pindor com o rosto a brilhar com a excitação de tudo aquilo.

Jake olhou para trás, para a cidade, depois olhou para a multidão à sua volta. Talvez pudesse escapar quando entrassem no estádio. O amontoado de gente oferecer-lhe-ia uma boa oportunidade para se esgueirar.

— A tua irmã Katherine já está lá dentro — disse Pindor a Jake, atraindo a sua atenção.

Jake acenou com a cabeça. Talvez fosse melhor esperar até falar com Kady antes de tentar fugir. Ela devia saber o que ele planeava fazer. Talvez até pudesse ajudar.

Jake revirou os olhos com este último pensamento — sim, ele estava assim tão desesperado.