17
PRIMEIRA ESCARAMUÇA
Jake saiu de um curto túnel escuro para a luz do estádio. Este já pulsava com as vozes excitadas da multidão ali concentrada. Ao longo dos três níveis de assentos, estandartes e bandeiras agitavam-se, formando uma manta de retalhos de cores em volta do campo à medida que as tribos se instalavam nas suas áreas. Mesmo o rebordo do estádio estava à cunha com os Raz alados e o Povo do Vento.
— Por aqui! — urgiu Pindor, quase arrastando Jake atrás dele. Marika apressou-se a segui-los.
Pindor conduziu-os para a frente da secção romana, onde alguns lugares vazios os aguardavam. Jake e Marika apressaram-se para a primeira fila. Os dois mestres instalaram-se na fila atrás deles, suspirando com satisfação.
Pindor recusou-se a sentar-se e ficou de pé junto à vedação ao fundo das bancadas. Jake e Marika juntaram-se a ele.
Em cada lado do campo estavam duas equipas de Othnielia. Cada animal estava selado. Homens e mulheres afadigavam-se à volta deles, ajustando correias e verificando cada montada. A equipa romana usava faixas brancas com o raio de Zeus a vermelho. Na outra ponta do campo estavam os sumérios. Usavam lenços pretos que cobriam a parte inferior dos seus rostos. Já estavam a subir para as selas.
— Não demora muito agora — disse Pindor.
Marika olhou para o Sol no céu e concordou.
— Estamos quase a meio do dia do equinócio.
O centurião Gaius apareceu de repente no degrau ao lado deles. Chamou Jake.
— Recebi ordens para te vir buscar e levar-te a ver a tua irmã antes que a Olimpíada comece.
Jake viu que os apoiantes dos viquingues se tinham sentado numa secção vizinha. Eles acenavam com bandeiras azul-mar com um olho prateado no centro.
Jake seguiu o homem corpulento por um conjunto de degraus estreitos. A areia rangia por baixo dos seus pés ao contornarem o campo. Na ponta mais remota da secção viquingue, avistou um grupo de raparigas mais velhas que usavam elmos com chifres, túnicas verdes e calções.
À aproximação de Gaius, algumas raparigas endireitaram as túnicas ou inclinaram-se para sussurrar e apontar para o guarda alto e de ombros largos. Jake procurou Kady.
Então o grupo de raparigas abriu caminho diante do centurião, e Jake viu-a. Kady estava inclinada contra um muro ao lado de um portão. Um dos cavaleiros romanos encontrava-se ao lado dela, com um braço na parede. O romano inclinava-se para ela como se estivesse prestes a beijá-la.
— Heronidus — gritou Gaius.
O irmão de Pindor virou-se e pôs-se em sentido.
Gaius apontou para o portão.
— Não devias estar a verificar a tua montada em vez de estar a fazer olhinhos a uma rapariga?
— Não… Quero dizer, sim, centurião Gaius.
— Então, sugiro que o faças.
Heronidus bateu com o punho no seu peito, depois virou-se e escapuliu-se dali. Kady endireitou-se. Ela tinha uma bandeira enrolada na sua mão, provavelmente um presente de Heronidus. Pelo menos teve a decência de corar ao dirigir-se a eles.
Jake abanou a cabeça. Nada muda. Mesmo nesta terra estranha, Kady já andava a namorar com o capitão da equipa.
— Jake — exclamou ela, aproximando-se. — Ouvi que foste picado por alguma coisa. Estás…?
Ele interrompeu-a.
— Não há tempo para explicar, mas penso que alguém tentou matar-me. Deixaram um escorpião enorme na minha cama.
Os olhos dela abriram-se mais e ficaram mais brilhantes.
— O quê? — Ela puxou a manga da camisa dele. — O que aconteceu?
Ele mudou para a sua língua.
— É uma longa história… com montes de buracos nela. Mas preciso da tua ajuda.
— Como? A fazer o quê?
— Com toda a gente aqui no estádio, agora é a melhor e provavelmente a única oportunidade para me esgueirar para aquela pirâmide e verificá-la. Preciso de uma manobra de diversão. Uma barafunda ou coisa do género. Qualquer coisa de modo que eu possa escapar-me sem que ninguém veja.
— Está bem.
— Está bem o quê?
Ela anuiu.
— A minha claque e eu havemos de nos lembrar de alguma coisa.
— A tua claque?
Jake ficou a olhar para o grupo de raparigas viquingues. Só agora é que ele reparava que todas elas tinham o cabelo apanhado numa trança francesa, exatamente como Kady.
— O que é que vais…?
Ela fez um gesto para ele se ir embora.
— Ainda não sei exatamente. Mas fica atento a um sinal meu e põe-te a andar.
Antes que ele pudesse pedir mais esclarecimentos, soou um gongo, seguido por um tambor.
O centurião Gaius dirigiu-se a eles.
— É melhor voltares para o teu lugar. A Olimpíada está a começar.
Uma vez de volta para junto de Pindor e Marika, Jake ficou a ver as duas equipas tomarem as suas posições em lados opostos do campo. Havia sete jogadores em cada equipa. Os sáurios bufaram e sacudiram os seus pescoços compridos. Os cavaleiros gritaram uns aos outros as instruções de última hora. A multidão ficou silenciosa em antecipação. O troar de quatro grandes tambores — um em cada lado do estádio — podia ser sentido no peito de Jake.
Pindor inclinou-se por cima da vedação. Marika mordeu o nó dos dedos.
Os seus amigos tinham tentado explicar as regras do jogo a Jake, mas ele mal lhes prestara atenção. Tudo o que sabia é que a primeira parte da Olimpíada era chamada escaramuça.
Um corno tocou uma única e longa nota, e de cima um dos poderosos Raz levantou voo do local mais alto da coroa do estádio. Uma bola carmesim, do tamanho de uma abóbora, foi lançada para o solo de areia.
O que se seguiu parecia caos puro, uma briga de animal e cavaleiro pela bola, mas devia haver algum tipo de estratégia.
— Oh, não — gemeu Pindor. — Eles vão fazer a manobra de arrastar… será que o Heron não vê!
Um forte aplauso subiu do campo dos sumérios e dos seus apoiantes. Os estandartes subiram mais alto ali e as bandeiras foram freneticamente agitadas. Os romanos gritaram e resmungaram.
Pindor não perdeu o entusiasmo.
— É só a escaramuça! Que interessa os sumérios terem ganhado a primeira bola? Não é o fim do jogo… apenas o princípio.
Porém, os romanos não se saíram melhor na jogada seguinte.
— Atenção ao homem à esquerda! — gritou Pindor. — Ele está a cortar para o passe.
De novo, Pindor provou que sabia do que falava. Heronidus atirou a bola, mas esta acabou na mão do adversário. O sumério ziguezagueou entre mais dois romanos e, usando os braços como se fossem pistões, atirou a bola para a baliza dos romanos. Gemidos espalharam-se pelo campo romano.
Pindor deixou-se cair no seu lugar enquanto as equipas se reagrupavam.
— Porque é que ninguém me ouve?
Marika aproximou-se dele.
— Porque não te podem ouvir.
Pindor cruzou os braços. Ele podia ficar nervoso junto dos grandes sáurios por causa do seu acidente, mas claramente compreendia o decorrer e a estratégia do jogo. Provavelmente melhor do que o seu irmão. Mas isso não o punha em cima da sela.
No silêncio da sua cabeça, Jake ouviu uma voz abafada.
— Mestre Balam, consegue ouvir-me?
Jake deu meia-volta. O pai de Marika tateou desajeitadamente a bolsa pendurada do seu cinto. Abriu os cordões e tirou dela a pequena estrutura que segurava o pedaço de cristal verde numa teia de seda.
— Mestre Balam… — retiniu o cristal um pouco mais urgentemente.
Balam debruçou-se sobre o cristal com Oswin. A sua posição agachada deixou o fala-longe mais perto de Jake.
Jake endireitou-se no seu assento e fingiu não estar a ouvir, mas Marika tinha-se aproximado e agarrou na mão de Jake. A chamada era do mestre Zahur. Os dois ficaram imóveis, tentando não perder uma palavra.
— Estou a ouvir-te, Zahur. Qual é o problema?
— É a caçadora Livia. Nestes últimos minutos, parece ter ficado louca, está a destruir tudo e a gemer. Debate-se desvairadamente. Entre os gemidos, palavras ininteligíveis saem da sua boca como bolhas numa tigela de papas de aveia demasiado aquecida. Murmura e agarra-se a mim, como se estivesse a tentar comunicar, mas não consegue fugir das sombras que a possuem.
Oswin resmungou no seu lugar.
— Eu disse-vos que devíamos ter feito mais para tirar as últimas lascas.
Não o ouvindo, Zahur continuou.
— É como se ela soubesse que a morte está a chegar, mas luta até ao último fôlego para dizer o que sabe.
Jake sentiu um aperto nas entranhas ao ouvir estas palavras. Lembrou-se da cabeça de Livia no seu colo, dos seus olhos azuis, tão parecidos com os da sua mãe. Jake não conseguia evitar sentir-se ligado a ela, compelido tanto pelo derramamento de sangue como pelo juramento que fizera.
Balam tocou no cristal.
— Zahur, não há mais nada que possas fazer por ela?
— Não. Acabou. A sua morte agora vem em asas rápidas.
Oswin levantou-se, dando um encontrão nas costas de Jake.
— Não aguento mais. Vou regressar a Kalakryss.
Balam anuiu e falou para o cristal.
— Oswin e eu vamos ter contigo, Zahur. Não sei que mais possamos fazer além de oferecer o nosso apoio e estar com ela até ao fim. Ela morrerá se os bocados partidos da pedra-de-sangue não desaparecerem miraculosamente da sua carne.
— Eu compreendo.
Balam terminou a chamada e voltou a guardar o dispositivo na sua bolsa. Inclinou-se e pôs uma mão nos ombros de Jake e Marika.
— Tenho de regressar a Kalakryss — disse ele.
— Mas papá…
O pai levantou-se.
— Fica e diverte-te com a Olimpíada. Vou fazer o possível para ir ter contigo ao palácio de Tiberius para a festa. — Acenou a Gaius. — Centurião, pode ter a amabilidade de tomar conta da minha filha e do jovem Jake? E escoltá-los depois do jogo?
— Certamente, mestre. É uma honra.
— Papá… — tentou Marika mais uma vez, mas o pai já se afastara com Oswin.
O centurião Gaius sentou-se num dos lugares atrás de Jake e Marika.
Soou um corno no campo e os cavaleiros voltaram a subir para as selas para o segundo tempo.
Pindor pôs-se de pé novamente. Era o único romano que mostrava tanto entusiasmo. Mesmo o seu pai permaneceu sentado, resignado com a derrota. Jake tentou juntar-se a Pindor, mas Marika agarrou no seu braço e puxou-o para trás.
Ela inclinou-se para ele.
— Ouviste o que o meu pai disse?
Jake franziu as sobrancelhas, mas anuiu.
— Não parece estar a correr bem.
— Não, não essa parte. No fim. Quando o meu pai disse que a única esperança de Livia residia num milagre. Que, se os bocados da pedra-de-sangue desaparecessem de repente, ela poderia viver.
Ela cravou o olhar em Jake, mas ele continuava a não perceber. Ela leu a falta de compreensão no seu rosto e suspirou.
— As tuas bat-trias e os seus poderes de eletra-cidade, que consumiram o cristal rubi no Astromicon.
Jake pestanejou, lutando para acompanhar a rapidez do seu pensamento. Lembrou-se do cristal rubi do tamanho de um ovo de ganso a encolher e a desaparecer. Mas também se lembrou da destruição que provocara antes de isso acontecer: o buraco no meio da mesa, a pedra queimada.
Marika aproximou-se ainda mais de Jake.
— Podes lançar o teu poder sobre a carne dela e fazer desaparecer aqueles bocados da mesma maneira?
— Talvez. — Ele pensou rapidamente. O que aconteceria se desse um choque na ferida da caçadora? Se a abalasse com eletricidade? Ainda se lembrava do buraco no bronze.
— Também a podia matar.
— Ela vai morrer de qualquer maneira.
Isso podia ser verdade, mas Jake não queria ser ele a causa da morte dela. E se alguma coisa corresse mal?
— Pelo menos, podíamos falar com o meu pai — insistiu ela. — Deixa que ele decida.
Jake hesitou. Quando o mestre Balam soubesse da quase catástrofe no Astromicon, Jake podia dizer adeus a qualquer possibilidade de visitar a pirâmide. Mas podia deixar alguém morrer para manter aquele segredo? E ele tinha feito uma promessa. Se havia a mínima hipótese de salvar a caçadora…
Marika leu a determinação no seu rosto.
— Então vamos dizer ao meu pai.
Jake anuiu. Os dois levantaram-se ao mesmo tempo e começaram a andar para a ponta da bancada, mas alguma coisa apertou o ombro de Jake. Ele virou-se e deu de caras com o centurião Gaius a olhar para eles. Tinha uma mão no ombro de Marika também.
— Ninguém vai a lado nenhum — disse Gaius, e empurrou Jake e Marika de volta aos seus lugares.
Marika virou-se para Jake, uma pergunta patente no seu rosto.
O que vamos fazer?