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PRIMEIRA ESCARAMUÇA

Jake saiu de um curto túnel escuro para a luz do estádio. Este já pulsava com as vozes excitadas da multidão ali concentrada. Ao longo dos três níveis de assentos, estandartes e bandeiras agitavam-se, formando uma manta de retalhos de cores em volta do campo à medida que as tribos se instalavam nas suas áreas. Mesmo o rebordo do estádio estava à cunha com os Raz alados e o Povo do Vento.

— Por aqui! — urgiu Pindor, quase arrastando Jake atrás dele. Marika apressou-se a segui-los.

Pindor conduziu-os para a frente da secção romana, onde alguns lugares vazios os aguardavam. Jake e Marika apressaram-se para a primeira fila. Os dois mestres instalaram-se na fila atrás deles, suspirando com satisfação.

Pindor recusou-se a sentar-se e ficou de pé junto à vedação ao fundo das bancadas. Jake e Marika juntaram-se a ele.

Em cada lado do campo estavam duas equipas de Othnielia. Cada animal estava selado. Homens e mulheres afadigavam-se à volta deles, ajustando correias e verificando cada montada. A equipa romana usava faixas brancas com o raio de Zeus a vermelho. Na outra ponta do campo estavam os sumérios. Usavam lenços pretos que cobriam a parte inferior dos seus rostos. Já estavam a subir para as selas.

— Não demora muito agora — disse Pindor.

Marika olhou para o Sol no céu e concordou.

— Estamos quase a meio do dia do equinócio.

O centurião Gaius apareceu de repente no degrau ao lado deles. Chamou Jake.

— Recebi ordens para te vir buscar e levar-te a ver a tua irmã antes que a Olimpíada comece.

Jake viu que os apoiantes dos viquingues se tinham sentado numa secção vizinha. Eles acenavam com bandeiras azul-mar com um olho prateado no centro.

Jake seguiu o homem corpulento por um conjunto de degraus estreitos. A areia rangia por baixo dos seus pés ao contornarem o campo. Na ponta mais remota da secção viquingue, avistou um grupo de raparigas mais velhas que usavam elmos com chifres, túnicas verdes e calções.

À aproximação de Gaius, algumas raparigas endireitaram as túnicas ou inclinaram-se para sussurrar e apontar para o guarda alto e de ombros largos. Jake procurou Kady.

Então o grupo de raparigas abriu caminho diante do centurião, e Jake viu-a. Kady estava inclinada contra um muro ao lado de um portão. Um dos cavaleiros romanos encontrava-se ao lado dela, com um braço na parede. O romano inclinava-se para ela como se estivesse prestes a beijá-la.

— Heronidus — gritou Gaius.

O irmão de Pindor virou-se e pôs-se em sentido.

Gaius apontou para o portão.

— Não devias estar a verificar a tua montada em vez de estar a fazer olhinhos a uma rapariga?

— Não… Quero dizer, sim, centurião Gaius.

— Então, sugiro que o faças.

Heronidus bateu com o punho no seu peito, depois virou-se e escapuliu-se dali. Kady endireitou-se. Ela tinha uma bandeira enrolada na sua mão, provavelmente um presente de Heronidus. Pelo menos teve a decência de corar ao dirigir-se a eles.

Jake abanou a cabeça. Nada muda. Mesmo nesta terra estranha, Kady já andava a namorar com o capitão da equipa.

— Jake — exclamou ela, aproximando-se. — Ouvi que foste picado por alguma coisa. Estás…?

Ele interrompeu-a.

— Não há tempo para explicar, mas penso que alguém tentou matar-me. Deixaram um escorpião enorme na minha cama.

Os olhos dela abriram-se mais e ficaram mais brilhantes.

— O quê? — Ela puxou a manga da camisa dele. — O que aconteceu?

Ele mudou para a sua língua.

— É uma longa história… com montes de buracos nela. Mas preciso da tua ajuda.

— Como? A fazer o quê?

— Com toda a gente aqui no estádio, agora é a melhor e provavelmente a única oportunidade para me esgueirar para aquela pirâmide e verificá-la. Preciso de uma manobra de diversão. Uma barafunda ou coisa do género. Qualquer coisa de modo que eu possa escapar-me sem que ninguém veja.

— Está bem.

— Está bem o quê?

Ela anuiu.

— A minha claque e eu havemos de nos lembrar de alguma coisa.

— A tua claque?

Jake ficou a olhar para o grupo de raparigas viquingues. Só agora é que ele reparava que todas elas tinham o cabelo apanhado numa trança francesa, exatamente como Kady.

— O que é que vais…?

Ela fez um gesto para ele se ir embora.

— Ainda não sei exatamente. Mas fica atento a um sinal meu e põe-te a andar.

Antes que ele pudesse pedir mais esclarecimentos, soou um gongo, seguido por um tambor.

O centurião Gaius dirigiu-se a eles.

— É melhor voltares para o teu lugar. A Olimpíada está a começar.

Uma vez de volta para junto de Pindor e Marika, Jake ficou a ver as duas equipas tomarem as suas posições em lados opostos do campo. Havia sete jogadores em cada equipa. Os sáurios bufaram e sacudiram os seus pescoços compridos. Os cavaleiros gritaram uns aos outros as instruções de última hora. A multidão ficou silenciosa em antecipação. O troar de quatro grandes tambores — um em cada lado do estádio — podia ser sentido no peito de Jake.

Pindor inclinou-se por cima da vedação. Marika mordeu o nó dos dedos.

Os seus amigos tinham tentado explicar as regras do jogo a Jake, mas ele mal lhes prestara atenção. Tudo o que sabia é que a primeira parte da Olimpíada era chamada escaramuça.

Um corno tocou uma única e longa nota, e de cima um dos poderosos Raz levantou voo do local mais alto da coroa do estádio. Uma bola carmesim, do tamanho de uma abóbora, foi lançada para o solo de areia.

O que se seguiu parecia caos puro, uma briga de animal e cavaleiro pela bola, mas devia haver algum tipo de estratégia.

— Oh, não — gemeu Pindor. — Eles vão fazer a manobra de arrastar… será que o Heron não vê!

Um forte aplauso subiu do campo dos sumérios e dos seus apoiantes. Os estandartes subiram mais alto ali e as bandeiras foram freneticamente agitadas. Os romanos gritaram e resmungaram.

Pindor não perdeu o entusiasmo.

— É só a escaramuça! Que interessa os sumérios terem ganhado a primeira bola? Não é o fim do jogo… apenas o princípio.

Porém, os romanos não se saíram melhor na jogada seguinte.

— Atenção ao homem à esquerda! — gritou Pindor. — Ele está a cortar para o passe.

De novo, Pindor provou que sabia do que falava. Heronidus atirou a bola, mas esta acabou na mão do adversário. O sumério ziguezagueou entre mais dois romanos e, usando os braços como se fossem pistões, atirou a bola para a baliza dos romanos. Gemidos espalharam-se pelo campo romano.

Pindor deixou-se cair no seu lugar enquanto as equipas se reagrupavam.

— Porque é que ninguém me ouve?

Marika aproximou-se dele.

— Porque não te podem ouvir.

Pindor cruzou os braços. Ele podia ficar nervoso junto dos grandes sáurios por causa do seu acidente, mas claramente compreendia o decorrer e a estratégia do jogo. Provavelmente melhor do que o seu irmão. Mas isso não o punha em cima da sela.

No silêncio da sua cabeça, Jake ouviu uma voz abafada.

Mestre Balam, consegue ouvir-me?

Jake deu meia-volta. O pai de Marika tateou desajeitadamente a bolsa pendurada do seu cinto. Abriu os cordões e tirou dela a pequena estrutura que segurava o pedaço de cristal verde numa teia de seda.

Mestre Balam… — retiniu o cristal um pouco mais urgentemente.

Balam debruçou-se sobre o cristal com Oswin. A sua posição agachada deixou o fala-longe mais perto de Jake.

Jake endireitou-se no seu assento e fingiu não estar a ouvir, mas Marika tinha-se aproximado e agarrou na mão de Jake. A chamada era do mestre Zahur. Os dois ficaram imóveis, tentando não perder uma palavra.

— Estou a ouvir-te, Zahur. Qual é o problema?

— É a caçadora Livia. Nestes últimos minutos, parece ter ficado louca, está a destruir tudo e a gemer. Debate-se desvairadamente. Entre os gemidos, palavras ininteligíveis saem da sua boca como bolhas numa tigela de papas de aveia demasiado aquecida. Murmura e agarra-se a mim, como se estivesse a tentar comunicar, mas não consegue fugir das sombras que a possuem.

Oswin resmungou no seu lugar.

— Eu disse-vos que devíamos ter feito mais para tirar as últimas lascas.

Não o ouvindo, Zahur continuou.

— É como se ela soubesse que a morte está a chegar, mas luta até ao último fôlego para dizer o que sabe.

Jake sentiu um aperto nas entranhas ao ouvir estas palavras. Lembrou-se da cabeça de Livia no seu colo, dos seus olhos azuis, tão parecidos com os da sua mãe. Jake não conseguia evitar sentir-se ligado a ela, compelido tanto pelo derramamento de sangue como pelo juramento que fizera.

Balam tocou no cristal.

— Zahur, não há mais nada que possas fazer por ela?

— Não. Acabou. A sua morte agora vem em asas rápidas.

Oswin levantou-se, dando um encontrão nas costas de Jake.

— Não aguento mais. Vou regressar a Kalakryss.

Balam anuiu e falou para o cristal.

— Oswin e eu vamos ter contigo, Zahur. Não sei que mais possamos fazer além de oferecer o nosso apoio e estar com ela até ao fim. Ela morrerá se os bocados partidos da pedra-de-sangue não desaparecerem miraculosamente da sua carne.

— Eu compreendo.

Balam terminou a chamada e voltou a guardar o dispositivo na sua bolsa. Inclinou-se e pôs uma mão nos ombros de Jake e Marika.

— Tenho de regressar a Kalakryss — disse ele.

— Mas papá…

O pai levantou-se.

— Fica e diverte-te com a Olimpíada. Vou fazer o possível para ir ter contigo ao palácio de Tiberius para a festa. — Acenou a Gaius. — Centurião, pode ter a amabilidade de tomar conta da minha filha e do jovem Jake? E escoltá-los depois do jogo?

— Certamente, mestre. É uma honra.

— Papá… — tentou Marika mais uma vez, mas o pai já se afastara com Oswin.

O centurião Gaius sentou-se num dos lugares atrás de Jake e Marika.

Soou um corno no campo e os cavaleiros voltaram a subir para as selas para o segundo tempo.

Pindor pôs-se de pé novamente. Era o único romano que mostrava tanto entusiasmo. Mesmo o seu pai permaneceu sentado, resignado com a derrota. Jake tentou juntar-se a Pindor, mas Marika agarrou no seu braço e puxou-o para trás.

Ela inclinou-se para ele.

— Ouviste o que o meu pai disse?

Jake franziu as sobrancelhas, mas anuiu.

— Não parece estar a correr bem.

— Não, não essa parte. No fim. Quando o meu pai disse que a única esperança de Livia residia num milagre. Que, se os bocados da pedra-de-sangue desaparecessem de repente, ela poderia viver.

Ela cravou o olhar em Jake, mas ele continuava a não perceber. Ela leu a falta de compreensão no seu rosto e suspirou.

— As tuas bat-trias e os seus poderes de eletra-cidade, que consumiram o cristal rubi no Astromicon.

Jake pestanejou, lutando para acompanhar a rapidez do seu pensamento. Lembrou-se do cristal rubi do tamanho de um ovo de ganso a encolher e a desaparecer. Mas também se lembrou da destruição que provocara antes de isso acontecer: o buraco no meio da mesa, a pedra queimada.

Marika aproximou-se ainda mais de Jake.

— Podes lançar o teu poder sobre a carne dela e fazer desaparecer aqueles bocados da mesma maneira?

— Talvez. — Ele pensou rapidamente. O que aconteceria se desse um choque na ferida da caçadora? Se a abalasse com eletricidade? Ainda se lembrava do buraco no bronze.

— Também a podia matar.

— Ela vai morrer de qualquer maneira.

Isso podia ser verdade, mas Jake não queria ser ele a causa da morte dela. E se alguma coisa corresse mal?

— Pelo menos, podíamos falar com o meu pai — insistiu ela. — Deixa que ele decida.

Jake hesitou. Quando o mestre Balam soubesse da quase catástrofe no Astromicon, Jake podia dizer adeus a qualquer possibilidade de visitar a pirâmide. Mas podia deixar alguém morrer para manter aquele segredo? E ele tinha feito uma promessa. Se havia a mínima hipótese de salvar a caçadora…

Marika leu a determinação no seu rosto.

— Então vamos dizer ao meu pai.

Jake anuiu. Os dois levantaram-se ao mesmo tempo e começaram a andar para a ponta da bancada, mas alguma coisa apertou o ombro de Jake. Ele virou-se e deu de caras com o centurião Gaius a olhar para eles. Tinha uma mão no ombro de Marika também.

— Ninguém vai a lado nenhum — disse Gaius, e empurrou Jake e Marika de volta aos seus lugares.

Marika virou-se para Jake, uma pergunta patente no seu rosto.

O que vamos fazer?