20
CONSIGO VER-TE
Porque é que estavam a demorar tanto?
Jake andava para a frente e para trás na enfermaria. Depois de cerca de quinze minutos sentados na cama, Marika levantara-se de repente e pedira para levar o candeeiro da mesa de cabeceira. Jake também se sentira aliviado por se levantar. A tensão tinha estado a aumentar como um dique cheio dentro dele. Assim, andava na escuridão, apenas com a respiração difícil da caçadora por companhia. Ouviu Marika de um lado para o outro na sala vizinha e pareceu-lhe ouvi-la falar sozinha.
Depois de cinco longos minutos, ela regressou com o candeeiro. O seu rosto estava pálido. Trazia alguma coisa na mão — um dos fala-longe. O cristal verde repousava na sua moldura, suspenso por uma teia de fibras minúsculas. Jake percebeu pela primeira vez que parecia uma espécie de espanta-espíritos dos índios. Os espanta-espíritos eram feitos com um aro de um ramo de salgueiro e uma teia de tendões, tudo decorado com pedras e penas. Por tradição, eram pendurados sobre a cama das crianças para apanhar os pesadelos.
Marika levantou o aro.
— Encontrei a coleção de fala-longe do mestre Zahur. Este liga ao meu pai. Não tive resposta. Zahur também tinha outros. Experimentei todos. — Ela abanou a cabeça. — Toda a gente está na Olimpíada.
Jake percebeu. Toda a gente tinha deixado os seus walkie-talkies em casa. Mas ocorreu-lhe um pensamento mais preocupante.
— Ou eles podem não estar a funcionar — disse ele. — Como as luzes. Bach’uuk disse que o manto de sombras do homem sugava a alquimia das luzes. Talvez faça o mesmo aos cristais fala-longe.
Marika olhou para o aro na sua mão. Afundou-se de novo na cama. Tocou com um dedo o cristal esmeralda no coração do espanta-espíritos, talvez procurando alguma ligação com o seu pai.
— Ninguém compreende verdadeiramente os cristais — murmurou ela. — Pelo menos, não inteiramente.
Jake juntou-se a ela, sabendo que Marika precisava de falar.
Ela olhou para ele e dirigiu-lhe um sorriso triste. Os seus olhos refletiam preocupação.
— Há muitos mistérios à volta destas pedras.
— Como por exemplo?
Ela voltou a olhar para o cristal verde entrelaçado.
— Em ocasiões raras, vozes estranhas ecoam das pedras fala-longe, sussurradas e fantasmagóricas. Uma palavra aqui, meia frase ali. Os mestres aprendem que são apenas ondas que ressaltam das paredes do vale. Mas o meu pai pensa que podem ser mensagens que viajam de outros vales como Calypsos… cidades que se situam muito, muito longe.
Como fios de telefone que se cruzam, pensou Jake.
As palavras dela despoletaram a sua curiosidade.
— Não era maravilhoso se esses lugares existissem? — disse Marika, embora sem muito entusiasmo. — Um dia, gostaria de os ver.
Uma porta abriu-se com um estrondo na outra sala, interrompendo a conversa.
Pindor entrou a correr na enfermaria, transportando um cobertor amarrado como uma mochila sobre o ombro.
Bach’uuk seguia-o, trazendo candeeiros acesos lá de cima.
Pindor respirava com dificuldade ao juntar-se a eles.
— Desculpem por termos demorado tanto tempo. Bach’uuk quis avisar o seu povo acerca do intruso. Para o caso de ele voltar. Devemos estar seguros.
— Bem pensado. — Jake estendeu os braços para o cobertor carregado.
— O que queres que faça agora? — perguntou Pindor, ainda ofegante.
Jake apontou para Livia.
— Ajuda a Mari a tirar a ligadura do ombro dela. Arranja água e limpa a pele dela e a ferida.
Ao mesmo tempo que Pindor e Marika metiam mãos à obra, Jake desatou o cobertor e abriu-o no chão. O iPod de Kady estava todo desmontado. Jake procurou entre os destroços e pegou na bateria interna recarregável. Esperava que ainda tivesse carga, voltagem suficiente. Um par de fios — preto e vermelho — pendia de um dos cantos da bateria. Ele tirou o plástico de cada fio com os dentes. Não sabia que tipo de choque poderia apanhar na bateria interna, mas uma vez tinha lambido a ponta de uma bateria de nove volts e apanhara um belo esticão.
Jake juntou as duas pontas dos fios e um par de faíscas saltou delas. Satisfeito, agarrou na bateria e dirigiu-se à cama onde estava Livia.
Marika tinha uma mão na garganta da caçadora e a outra no seu ombro. Pindor recuou para sair do caminho.
O ferimento da seta era sangrento e profundo, a pele à sua volta estava franzida e inchada. Linhas vermelhas em forma de teia saíam do ferimento e estendiam-se pela pele pálida de Livia, pelo seu braço abaixo e pelo pescoço. Só o aspeto daquilo gritava veneno.
Jake engoliu em seco e tentou arranjar coragem.
— Mari, afasta-te. Bach’uuk, aproxima mais essa luz.
Respirando fundo, Jake pôs a bateria entre as palmas das suas mãos e dirigiu as pontas dos fios descarnadas para a água ensanguentada retida na ferida.
— Afastem-se — avisou, não sabendo o que ia acontecer.
Estremecendo, Jake mergulhou os fios na água e juntou-os. Uma centelha de eletricidade saltou.
Jake reteve a respiração, mas não aconteceu mais nada.
Retirou os fios do ferimento. Ao levantá-los, os fios continuaram a faiscar e a crepitar. Mesmo depois de os separar.
— Jake? — chamou Marika, claramente preocupada.
De repente os fios agitaram-se loucamente nos seus dedos. Finas correntes de fogo azul fluíram das pontas descarnadas e bombardearam a carne ferida. Jake recuou, levando a reboque a bateria. Mas as correntes de fogo elétrico continuaram a sair dos fios para o ferimento. Ele continuou a andar para trás até as suas costas tocarem na parede. Os outros três afastaram-se para os lados, receando os raios gémeos que fluíam da bateria para a mulher.
Livia começou a tremer sob o cobertor. A sua cabeça arqueou-se para trás num grito silencioso. Estava a ter uma convulsão.
— O cobertor! — gritou Jake. — Tirem-no de cima dos ombros dela! Cortem a ligação!
Marika e Pindor correram para cada um dos lados da cama e agarraram os cantos opostos do cobertor. Puxaram-no para cima e sobre a cabeça de Livia, atravessando o fogo elétrico.
Jake sentiu a interrupção como um pontapé nas entranhas. O coice atirou-o contra a parede. A bateria emitiu um grande estrondo e começou a deitar fumo negro. Receando que este pudesse ser tóxico, Jake atirou tudo para a outra sala.
Jake voltou a correr para junto da cama. Livia ainda estava tapada com o cobertor, como alguém que tivesse morrido recentemente. E talvez tivesse. O seu corpo jazia imóvel sob o cobertor.
Jake puxou para baixo um canto. O rosto dela estava inerte, os olhos abertos.
Marika e Pindor afastaram-se, chocados. Os olhos dela estavam inteiramente negros, como bocados polidos de obsidiana. Tinham-na matado?
Uma mão ergueu-se de repente de debaixo do lençol e agarrou no pulso de Jake. Os seus dedos apertaram, suficientemente fortes para esmagar ossos. O corpo de Livia ergueu-se como um boneco-surpresa, o seu nariz a centímetros do de Jake. Os olhos negros dela fitaram-no, brilhando de maldade.
— Consigo ver-te…
As palavras não eram de Livia. Jake reconheceu a voz de quando tinha sido transportado para ali. Era a voz de uma cripta aberta, muito, muito antiga, erguendo-se de um lugar onde gritos e sangue fluíam igualmente.
Antes mesmo de Jake poder lutar para se libertar, a mão ficou inerte e soltou o seu pulso. Livia afundou-se na cama.
Recuando um passo, Jake esfregou o pulso. Que tinha acontecido? Lembrou-se do cristal cor de rubi a queimar através da mesa. Teria a eletricidade libertado a maldade dos fragmentos da pedra-de-sangue de repente? Se sim, e agora? Tinham desaparecido, consumidos e queimados? Ou estavam mais poderosos?
Da cama, uma forte tosse gorgolejante fez Livia estremecer — seguida de um impossivelmente longo arquejo em busca de ar, como se a caçadora viesse à superfície depois de descer ao fundo do mar mais profundo. Os seus olhos moviam-se de um lado para o outro até finalmente se focarem. Já não eram negros, mas de um azul-gelo.
— On… onde estou? — perguntou ela numa voz rouca.
Marika colocou-se no seu campo de visão.
— Caçadora Livia, estás em Calypsos.
— Eu conheço-te… — Ela tossiu com força, como que tentando limpar alguma coisa suja. — Tu és a pequena Mari. A filha de Balam.
— Sou — disse Marika, suspirando de alívio.
— Que aconteceu?
— Foste envenenada com uma seta de pedra-de-sangue.
Os olhos dela abriram-se mais, como se de repente se lembrasse de um pesadelo. Com esforço, tirou o cobertor dos seus ombros. O ferimento estava lá, mas as linhas vermelhas do veneno tinham desaparecido.
— Acho que a salvaste — disse Pindor ao lado de Jake.
Jake sentiu uma onda de alívio e orgulho, mas aqueles olhos negros ainda o atormentavam.
Livia não parecia especialmente feliz por ter sobrevivido. Pelo contrário, a sua expressão tornara-se mais ansiosa. Por trás dos seus olhos, Jake podia ver os espaços em branco da sua memória a serem preenchidos, como água a ser deitada num copo, mais e mais depressa.
Livia estendeu a mão para Marika e puxou-lhe uma ponta da manga.
— Há quanto tempo é que eu… que dia é hoje?
Marika tentou acalmá-la.
— É o equinócio da primavera.
Livia reagiu como se alguém a tivesse esfaqueado na barriga.
— Não! — Tentou levantar-se, mas estava demasiado fraca.
Marika ajoelhou-se junto dela.
Livia agarrou-a outra vez, com mais força.
— Ele vem aí…
Jake estremeceu ao ouvir aquelas palavras familiares.
— O Rei Caveira — insistiu Livia. — Capturei um grakyl no pântano de Erva-de-Fogo. Antes de lhe cortar a garganta, ele disse-me. Que ia haver um grande ataque. Que chegaria na noite do equinócio.
As palavras da caçadora estavam carregadas de medo e certeza.
— O Rei Caveira vem esta noite!