21
RUMOR DE GUERRA
Alguns minutos depois, Jake encontrava-se na sala comum com Marika.
— Provavelmente, é só um pesadelo — disse ele —, mas mesmo assim devemos avisar os anciãos.
Marika olhou para cima da mesa onde o cauda-ferrão ainda estava como um centro de mesa macabro. Era um lembrete mortal do perigo que os rodeava.
— Mas ainda não percebo — disse ela. — O grande templo protege o nosso vale. Tanto de ameaças vindas do céu como da terra. Escuda-nos há centenas e centenas de anos. Os exércitos do Rei Caveira não podem passar.
Jake recordou o monstruoso grakyl a contorcer-se contra o escudo. Encolheu os ombros.
— Como eu disse, a caçadora pode estar enganada. Tudo pode não ter passado de uma alucinação. Já para não falar no tipo de pesadelos desencadeados pelo veneno.
Marika suspirou, cada vez mais perturbada. Ela estava mortalmente aterrorizada por causa do seu pai, mas sabia quais eram os seus deveres para com Calypsos. Ela não ia dececionar o pai desatando a chorar.
A estreita porta de lado abriu-se. Bach’uuk estava de volta com dois Ur mais altos, um homem e uma mulher. Estavam vestidos com peles cosidas grosseiramente, que no entanto pareciam limpas e cuidadas.
Bach’uuk levantou um braço.
— Eles vão cuidar da caçadora Livia quando nos formos embora. Vão mantê-la em segurança.
Pindor surgiu vindo da enfermaria.
— Estamos prontos? A caçadora Livia não está muito feliz por ser deixada para trás. Continua a tentar sair da cama. Prometi-lhe que ia falar com o meu pai.
Bach’uuk falou com os outros dois Ur na sua língua, uma mistura de sons guturais e estalidos com a língua. O par acenou afirmativamente e dirigiu-se para a enfermaria.
Pindor disse:
— Por esta altura, a Olimpíada já deve ter acabado. Todos os anciãos estão a caminho da casa do meu pai para a celebração tradicional da noite do equinócio.
— Então é lá que nos devemos encontrar com eles — sugeriu Marika.
Jake e Pindor puseram-se a caminho com Bach’uuk a reboque. Precisavam que ele lhes contasse a sua parte da história sobre o estranho homem de sombras.
Uma vez lá fora no pátio, Jake ficou chocado por já ser tão tarde. O pátio estava mergulhado em sombras profundas. Só o cimo da gigantesca árvore ainda estava ao sol. Os dardos-alados que nidificavam estavam todos amontoados ali em cima, apanhando os últimos raios quentes do dia.
Para oeste, o Sol já estava meio afundado no horizonte montanhoso. No lado oposto do vale, uma pesada Lua cheia começava a despontar, pronta a saudar a noite que chegava.
— Será mais rápido ir a pé! — gritou Pindor fazendo um gesto para o portão do pátio. — Podemos cortar pelo parque.
Jake lembrava-se do parque da viagem que tinha feito há dois dias para Bornholm. Ficava fora das muralhas do castelo, sobrepondo-se à cidade em baixo. Correram enquanto o Sol continuava a afundar-se.
Ao saírem dos portões, sons de festejos ecoaram vindos da cidade: gritos, gargalhadas, badaladas dos sinos, explosões de trompetas, urros de sáurios. Carroças e carruagens, enfeitadas com luzes, moviam-se à frente de uma parada improvisada. Jake imaginou que depois do pôr do sol toda a cidade estaria a brilhar.
Ou pelo menos Jake desejava que estivesse.
Os quatro esquivaram-se pelo parque e deixaram Pindor conduzi-los através do labirinto de caminhos de gravilha. Sob o emaranhado cerrado dos ramos, a noite já tinha chegado a Calypsos.
Ao correrem pela floresta, assustaram um par de jovens namorados que se beijavam. O par afastou-se rapidamente, fingindo estar fascinado pela torção das raízes das árvores junto do seu banco.
Jake e os outros continuaram em frente. Passaram como relâmpagos por um prado de flores silvestres que lhes davam pelos joelhos e pelo ponto de observação onde tinham parado no dia anterior. O coliseu lá longe já estava totalmente mergulhado na escuridão.
Jake perguntou-se onde estaria Kady. Teria regressado a Bornholm? Se Calypsos fosse atacada, pelo menos ela estaria rodeada por alguns dos melhores guerreiros da cidade. Mesmo assim, Jake desejou que ela estivesse aqui com ele. A preocupação fê-lo tropeçar.
Pindor interpretou mal o seu passo em falso, pensando que ele estava exausto.
— Já não falta muito — assegurou, apontando vagamente para a frente.
Depois de mais duas voltas do caminho, as árvores deram lugar a um relvado bem tratado. Arbustos tinham sido esculpidos em elegantes espirais ou esferas perfeitas. No cimo de uma pequena colina ficava uma casa branca com um telhado inclinado e uma linha dupla de pilares à sua frente. Lembrava a Jake um mausoléu.
— É ali que eu moro — disse Pindor começando a correr.
Para a celebração, tinham sido erguidas pequenas tendas no jardim, e mesas compridas encontravam-se repletas de montanhas de comida e pirâmides de garrafas de vinho.
Já havia algumas pessoas ali. Deambulavam em pequenos grupos ou aos pares. Pindor procurou entre eles ao atravessar o pátio. Perto de uma grande estátua do deus Apolo, surgiu alguém que o agarrou.
— Pinny! Dá para acreditar?
Pindor soltou-se e deu um passo atrás. O atacante, um rapaz mais velho, não pareceu notar. O seu rosto estava corado do vinho e da excitação.
Jake reconheceu o rapaz como um dos que atormentavam Pindor anteriormente.
— Acreditar no quê, Regulas? — perguntou Pindor, deixando transparecer a sua irritação.
— Ganhámos a Tocha! Por um ponto! — Deu uma palmada no ombro de Pindor. — Devias ter visto o teu irmão. Atirou uma bola rasteira que passou pelos sumérios e através do anel. Whoosh! — O rapaz fez o gesto de atirar uma bola.
Pindor virou-se para Jake e exclamou:
— Ganhámos!
— Pindor! — gritou Marika, trazendo a atenção deste de volta ao que interessava.
O entusiasmo do rapaz mais velho recusou-se a diminuir.
— Heron saiu do estádio aos ombros da equipa romana. E aquelas caçadoras bem-feitas acompanharam-nos com música…
O rapaz devia estar a falar da claque de Kady. Jake aproximou-se.
— Sabes para onde foram as caçadoras?
Foi a vez de Jake ser agarrado pelo ombro.
— Ah! Essa tua irmã… se Heron não se estivesse a fazer a ela…
Jake empurrou Regulas.
— Sabes onde é que ela está?
— Na floresta! Para a fogueira! Da última vez que a vi, ela e Heron estavam de mão dada. — Acabou a sua frase com um piscar de olho.
Marika afastou Jake.
— Outra tradição. A equipa vencedora faz uma grande fogueira, que representa a Tocha Eterna, no Bosque Sagrado. — Ela revirou os olhos. — Mas na realidade é um pretexto para fazer uma grande festa.
Jake olhou na direção da floresta que rodeava o templo-pirâmide. Os seus receios por Kady cresceram até lhe encherem o peito. Perdeu a sua capacidade de falar, de fazer perguntas.
Pindor aproveitou o seu silêncio.
— Regulas, viste o meu pai?
Ele franziu o sobrolho.
— Lá fora no átrio. Ou talvez lá em baixo na cave. Está a receber os seus amigos mais íntimos. A partilhar o seu melhor vinho com eles! — Esta falta de democracia parecia ferir o rapaz.
Pindor passou por ele e conduziu os outros na direção dos degraus do alpendre.
— Temos de apanhar o meu pai sozinho… e os outros dois anciãos.
No cimo das escadas, uma figura alta bloqueou-lhes o caminho.
— Então estão todos aí! — exclamou o centurião Gaius, com o rosto tão vermelho como a pena do seu elmo. — Passei a tarde à vossa procura. Perdi a nossa vitória na Olimpíada por vossa causa!
Pindor começou a gaguejar, intimidado.
Marika avançou.
— Centurião Gaius, peço desculpa pelo nosso subterfúgio — disse ela formalmente. — Mas houve uma boa razão. Precisamos de falar com o ancião Tiberius.
— Se pensam que vão encontrar alguma indulgência por parte do ancião…
— Não! — Marika interrompeu o homem alto. — Nada disso importa. Deves afastar-te.
O rosto de Gaius ficou ainda mais vermelho. Jake suspeitava que era mais de embaraço por ter sido repreendido por uma rapariga que mal lhe chegava à cintura. Gaius falou entredentes.
— Marika Balam…
— Diz respeito à caçadora Livia! — interrompeu-o ela de novo, quase gritando agora. — Ela está acordada e tem uma mensagem para o conselho que deve ser ouvida imediatamente.
Gaius observou Marika como se estivesse a tentar avaliar a verdade da sua declaração. Outra voz intrometeu-se, vinda de trás do centurião.
— Que notícias são essas da minha irmã?
O centurião Gaius afastou-se para o lado deixando ver a anciã Ulfsdottir. Ela estava lá dentro e ouvira a explosão de Marika.
— Que notícias tens de Livia? — perguntou a anciã. Os seus olhos faiscavam de preocupação. — Vim de Bornholm para saber da minha irmã. Tentei falar com os mestres pelos fala-longe, mas não tive resposta.
Marika inclinou a cabeça numa saudação.
— Ela está viva e acordou com uma história de um grande perigo para Calypsos.
Os olhos da mulher fecharam-se por um momento de alívio e numa oração silenciosa, depois abriu-os, revelando uma determinação férrea.
— De que perigo é que ela falou?
— Talvez os anciãos Tiberius e Wu devessem ouvir também esta história — interveio Gaius, ainda a olhar para eles com alguma desconfiança.
— Sim, claro. — A líder dos viquingues conduziu-os ao jardim. Baixou a voz ao dirigir-se a Marika. — Pensei que a minha irmã estava condenada, envenenada pelos fragmentos de alquimia negra.
— É uma longa história — respondeu Marika, acenando para Jake. — Mas foi a ci-enzia do recém-chegado que a salvou.
A anciã virou o seu olhar azul para Jake com um calor que o fez ficar uns centímetros mais alto.
— Tenho para contigo uma grande dívida de sangue, Jacob Ransom. E, pela quilha do Valkyrie, ela será honrada.
Chegaram ao centro do jardim e encontraram o pai de Pindor a falar com o ancião asiático. O homem calvo tinha encerado o seu fino bigode branco, por isso ele brilhava sob a luz.
O sorriso no rosto de Tiberius desapareceu quando viu o filho.
— Pindor! Onde estavas? Sabes os problemas que deste ao centurião Gaius?
Gaius avançou.
— Talvez devesse ouvir o rapaz.
Pindor olhou para trás na direção de Marika em busca de ajuda. Ela limitou-se a acenar com a cabeça numa instrução simples. Diz ao teu pai.
Pindor engoliu em seco e endireitou as costas. Começou lentamente, gaguejando aqui e ali, mas, à medida que contava a história, a sua voz encontrou firmeza. Ao acabar, o nervosismo tinha desaparecido.
A expressão do seu pai também se transformou: de irritação e dúvida a preocupação e apreensão. Fez perguntas aos outros, até a Bach’uuk, que respondeu a muitas delas com uma única palavra.
— Isso deve ser uma loucura qualquer provocada pelo veneno — disse Tiberius. — O escudo do templo protege-nos.
— Talvez o Rei Caveira planeie cercar-nos — sugeriu o ancião Wu. — Pensando que pode matar-nos à fome.
— Mas nós temos muita comida — disse a anciã Ulfsdottir abanando a cabeça. — E água fresca de nascentes sai da rocha.
Enquanto eles continuavam a discutir a probabilidade de um ataque, o céu passou de azul-escuro a índigo. O Sol pôs-se. Algumas estrelas começaram a brilhar a leste. Os receios de Jake pela irmã — algures no bosque — cresceram, fazendo-o sentir um forte aperto no coração. Não podia continuar em silêncio.
— Peço desculpa por me intrometer — disse Jake.
Olhos viraram-se para ele, mas Jake não recuou.
— Pelo que Bach’uuk viu, pelo menos um dos homens do Rei Caveira está entre vocês. Quem sabe se há mais? E agora três mestres desapareceram. Acho que não devem levar os avisos de Livia como sendo loucura. E quanto mais tempo esperarem, menos tempo têm para preparar a defesa.
Tiberius anuiu.
— O rapaz tem razão. Há uma estratégia perversa em atacar esta noite, quando a maior parte dos habitantes da cidade está a celebrar e muitos terão bebido demasiado vinho.
— Então, o que devemos fazer? — perguntou o ancião Wu.
— Eu vou alertar o Povo do Vento. Teremos todos os seus no ar, para vigiar os céus a noite toda. Em terra, vamos mobilizar as forças da Guarda Montada para patrulhar a cidade.
— E os habitantes da cidade? — perguntou Wu.
A anciã Ulfsdottir respondeu:
— Vou levantar toda a Bornholm. Podemos começar a evacuar as pessoas para o castelo. Foi para isso que Kalakryss foi inicialmente construído. Como uma última linha de defesa se tudo o mais falhasse.
Tiberius virou-se e olhou para Jake e os seus amigos.
— Centurião Gaius, acho que é melhor levar estes quatro de volta a Kalakryss. Uma vez aí, avise toda a gente e ponha os seus homens nas muralhas.
Gaius bateu com o punho no peito em reconhecimento. Virou-se e estendeu um braço para a sua carga, pronto para os arrebanhar.
Jake esquivou-se.
— Ancião Tiberius, a minha irmã… ela foi para a floresta. Creio que foi com o seu filho e a equipa romana.
O ancião franziu o sobrolho, sem compreender.
— A fogueira — lembrou Pindor. — No Bosque Sagrado.
Tiberius acenou lentamente, e linhas sulcaram a sua testa.
Foi a anciã Ulfsdottir que respondeu.
— Vou mandar um mensageiro. Tu salvaste a minha irmã. Não posso deixar que alguma coisa aconteça à tua.
Jake deixou escapar um suspiro de alívio. A garantia desta mulher fleumática ajudou a acalmar a preocupação dentro dele.
Mas só ligeiramente.
Com o assunto resolvido, Gaius juntou Jake, Pindor, Marika e Bach’uuk e dirigiu-se à saída. O centurião resmungou:
— E desta vez ninguém resolva ir embora sozinho.
Ninguém discutiu.