22
PRIMEIRO SANGUE
Quando chegaram aos terrenos do parque outra vez, o Sol já se pusera. As estrelas enchiam o céu e a estrada branca da Via Láctea cintilava lá em cima. A lua cheia estava suspensa sobre Calypsos, brilhando intensamente sobre os festejos lá em baixo. A música subia da parte mais baixa da cidade, com canções num coro de muitas línguas.
Mas quanto duraria aquilo?
Um Raz gigantesco voou baixo sobre eles, vindo da propriedade de Tiberius. Jake sentiu o ímpeto das suas asas quando ele passou. Era provavelmente um batedor enviado para lançar o alarme entre o Povo do Vento.
— Continuem a andar — urgiu Gaius quando Jake abrandou para ver o voo do pássaro.
O caminho de gravilha rangia sob os seus pés como se corressem sobre ossos esmagados.
A cada passo que davam para dentro da floresta, Jake não podia escapar à sensação de que alguma coisa estava a observá-los — ou antes a observá-lo a ele. Jake perscrutou os dois lados do caminho. Aqui na escuridão, lembrou-se dos olhos pretos de Livia e das palavras que tinham saído da sua garganta.
— Consigo ver-te…
Os pelos na nuca de Jake levantaram-se na certeza de que alguma coisa assustadora partilhava aquela floresta escura. Uma sombra moveu-se à sua esquerda, um ramo estalou.
Alguma coisa estava ali!
Sobressaltado, Jake virou-se e chocou com Bach’uuk. Este foi suficientemente ágil para apoiar Jake e manter os dois em pé. Fugiram para a frente. Finalmente, Jake notou uma quebra na escuridão. Correu e tomou a dianteira. O caminho saía da floresta e desembocava num dos muitos prados, aquele sobranceiro à cidade.
Ao sair, a convidativa Lua brilhou sobre ele. A sua luz prateada banhava o campo e revelava alguma coisa empoleirada na ponta do miradouro. Era preto como se um coágulo de sombras recusasse fugir do luar.
O primeiro pensamento de Jake foi que era o sinistro assassino que Bach’uuk tinha visto, o homem com um manto de sombras vivas. Essa ilusão aumentou quando a forma se contorceu à sua aproximação, lançando asas de escuridão do seu corpo encoberto. Recortado contra as estrelas, tornou-se claro que as asas não eram feitas de tecido ou sombras — mas de couro e ossos.
— Um grakyl — gritou Gaius atrás deles.
Jake fugiu a correr do miradouro, arrastando os outros com ele. Só o centurião ficou para trás. Gaius empunhou a sua espada e baixou-se. A besta surgiu no ar de asas estendidas. Com um único bater de asas mergulhou na direção de Gaius.
— Corram! — gritou o centurião. — Fujam para o castelo!
Eles obedeceram, mas Jake manteve meio olhar para trás. O grakyl caiu sobre Gaius com um grande estardalhaço. Atingiu-o com as suas asas. Mas Gaius esquivou-se e virou-se e golpeou com a sua espada. A besta guinchou como um garfo ferrugento arrastado sobre um quadro negro. Sangue jorrou dos seus ferimentos. Mas não fugiu. Com um grande estremecimento, preparou-se para atacar outra vez.
Pior ainda, o seu grito foi respondido por outro grito. De trás do miradouro, um segundo grakyl ergueu-se no ar. O par caiu sobre Gaius como uma tempestade de garras e dentes.
Então Jake entrou noutra parte da floresta e deixou de ver o centurião. Os quatro fugiram, demasiado assustados para falar, limitaram-se a correr. Mais uma vez, Jake experimentou aquela sensação esmagadora de que alguma coisa o observava, possivelmente o perseguia. De novo, ouviu os murmúrios da perseguição: um restolhar de folhas, um estalido de ramos.
Chegaram ao banco onde os jovens namorados se tinham beijado. O par há muito fugira, mas alguma coisa ocupara o seu lugar. Saltou do banco e encheu o caminho. Asas estenderam-se e bloquearam inteiramente o caminho. Todos gelaram.
Um grakyl. O seu nariz porcino cheirou-os. As suas orelhas giraram, apanhando cada ténue ruído. Respirou pesadamente na direção deles, revelando uma boca cheia de dentes afiados.
Porém, não era um grakyl vulgar.
Este empunhava uma espada numa garra e dois chifres curvos cresciam na sua cabeça como uma coroa horrível. Sibilou-lhes e baixou a espada, como se estivesse a avaliar qual deles ia matar primeiro. Jake tateou no bolso em busca da lanterna, mas tinha-a num dos outros bolsos das calças.
Atrás de Jake, um partir de ramos avisou-o de que uma segunda besta se aproximava por trás. Estavam cercados. Não tinha tempo de agarrar na lanterna. Pegou na mão de Marika e mergulhou para o lado.
Mas a besta atrás de Jake passou simplesmente por eles, correndo junto ao chão, uma mancha de sombras. Saltou para o ar e atingiu o grakyl na garganta. A velocidade a que se deslocava e o seu peso atiraram a criatura de costas. Um feroz grito felino seguiu-se quando as presas em forma de sabre rasgaram profundamente a garganta tenra do monstro.
Era a Rhabdofelix! Aquela que Jake libertara. Ferrada à garganta do monstro, ela abanou, sacudiu e mordeu até as asas do grakyl pararem de bater.
Jake incitou os outros a contornar o caminho.
— Vão! Vão à volta! — Ele apontou e foi atrás deles.
Quando passou junto do lugar do massacre, a gata rugiu na direção de Jake. Os seus olhos captavam cada centelha de luz sob a densa copa das árvores enquanto ela o fitava. A gigantesca gata devia estar a segui-lo todo o tempo. Ele leu os seus olhos quando ela o fitou, sentindo o elo entre eles. Não como animal de estimação e dono, mas como iguais. Tu proteges-me; e eu protejo-te.
Depois, ela deu um salto e desapareceu na floresta. Mas Jake sabia que ela ainda estava ali.
Jake correu atrás dos seus amigos. Ainda sentia olhos em cima de si, mas agora ofereciam-lhe conforto. Sentiu-se um pouco menos só.
— Por todos os fogos de Hades, o que é aquilo? — gaguejou Pindor. — Tinha chifres! Empunhava uma espada!
— Um senhor dos grakyls! — respondeu Marika, ofegante. — Li… mas ninguém acreditava que eram reais.
— Aquilo pareceu-me real! — exclamou Pindor.
Jake fê-los parar na orla da floresta, mantendo-os debaixo das sombras dos ramos. À frente, a lua iluminava o caminho. Porém, enquanto recuperava o fôlego, o mundo ficou um pouco mais escuro.
Preocupado, Jake viu que uma sombra baixa e negra passava à frente da Lua e voava para o castelo.
Em baixo, toda a música parou. O silêncio caiu sobre a cidade.
Algures, muito acima, soou um grito penetrante. A este sinal, grakyl após grakyl mergulhou das nuvens.
Gritos ergueram-se das ruas.
Jake empurrou todos para a proteção da floresta.
— Eles estão aqui! — gemeu Marika. — Atravessaram a barreira. Como?
— Não sei, mas atravessaram.
— O que vamos fazer? — perguntou Pindor.
— Descobrir um sítio onde nos escondermos. É o que temos de fazer primeiro.
— E Gaius? — perguntou Marika.
Jake abanou a cabeça. Não podiam contar com a ajuda do centurião.
— Ele disse-nos para irmos para o castelo — lembrou Pindor.
Todos se viraram para Kalakryss. Bandos de grakyls trepavam as suas muralhas. Alguns soldados ainda lutavam, mas estavam a ser derrotados. Mais grakyls invadiram o pátio. Para lá das muralhas, sáurios berravam e homens gritavam.
O toque límpido de uma trompeta soou no estádio.
Jake olhou para cima de novo quando uma nova força se elevou no céu. O Povo do Vento! Uma onda dos poderosos Raz lançou-se no ar em dezenas de grupos numa formação em V, partindo das suas casas nos penhascos. Subiam alto, depois mergulhavam rapidamente. Como uma salva de flechas negras, os pássaros picavam sobre a nuvem negra. Com uma única passagem, dezenas de grakyls caíram por terra, arrastando asas despedaçadas. Os afiados esporões dos Raz rasgavam couro e osso com facilidade.
Porém, os cavaleiros alados estavam em inferioridade numérica.
Pindor também percebeu isso.
— Não vão aguentar — disse ele. — Precisamos de reforços.
— Quem? — indagou Marika. — A Guarda Montada está espalhada por toda a Calypsos. O Povo do Vento é só uma tribo.
Pindor abanou a cabeça.
— Não sei. Mas por agora Jake tem razão. Precisamos de um sítio seguro para reagrupar, talvez algum lugar onde possamos juntar mais forças.
Jake estudou Pindor. Aparentemente, o seu talento para a estratégia não se limitava a jogos de bola. Mais alguém tinha um plano? Jake deu por si a estudar o mais silencioso do grupo.
— Bach’uuk — disse Jake. — As vossas grutas ficam na ponta mais afastada da muralha.
Ele anuiu.
— Os nossos anciãos desejam olhar para a frente da floresta para não se esquecerem. Esse é o nosso caminho.
Jake virou-se para Pindor e Marika.
— A cidade não é segura e o castelo também não. O melhor para nós pode ser escondermo-nos aí.
Pindor dirigiu-se a Bach’uuk.
— O teu povo viria para defender Calypsos?
Jake sabia o que Pindor queria, que talvez a tribo do neandertal pudesse ser a força extra de que ele falara. Mas Bach’uuk recusou-se a olhar para o rapaz romano e fitou os seus pés. O seu sobrolho carregado escondia as suas feições.
— Esse não é o caminho do nosso povo — murmurou Bach’uuk. — Mas esses assuntos devem ser julgados pelos nossos anciãos.
— Então, vamos falar com eles — disse Pindor. — Para os convencer.
Os olhos do rapaz dos Ur cintilaram momentaneamente de raiva, mas o fogo desapareceu rapidamente e a sua expressão apaziguou-se.
Pindor não notou.
— Como é que podemos ir ter com eles?
— Há um caminho. Eu posso levar-vos. — Bach’uuk apontou para lá do castelo para o Bosque Sagrado. — Um túnel.
Jake olhou para lá. De momento, a luta centrava-se na cidade e no castelo. A floresta permanecia escura e não perturbada. Kady também estava nesse bosque.
Marika franziu o sobrolho.
— Não me lembro de ouvir falar de um túnel na floresta.
Bach’uuk apontou com a mão. Jake seguiu a direção dela. Parecia estar a apontar para o dragão de pedra que pairava sobre a copa das árvores, iluminado pelo luar.
— Estás a falar do grande templo? — perguntou Marika.
Bach’uuk anuiu.
— Túnel aí.
— Dentro do templo? — insistiu ela.
Um aceno de cabeça de novo, desta vez seguido de um grunhido de impaciência.
— Mas só os mestres estão autorizados a entrar no Templo de Kukulkan — insistiu ela.
De novo, um fogo brilhou nos olhos do rapaz dos Ur.
— Mestres… e aqueles que os servem.
Marika fitou Bach’uuk por um momento, atónita, depois dirigiu-se a Jake.
— Não sabia.
— Ninguém nos vê — disse Bach’uuk, deixando alguma da sua irritação transparecer mais abertamente. — Ninguém conta connosco. Nós somos apenas Ur.
Jake lembrou-se de como o pai de Marika parecia mal reconhecer Bach’uuk. Marika apreciava a sua ajuda, sem dúvida, mas Jake recordou a sua anterior descrição da inteligência dos Ur. O pai acredita que há uma indolência nos seus pensamentos, mas eles são fortes e obedecem a instruções simples.
Jake não pensava assim. E aparentemente Bach’uuk também não.
— Podes levar-nos lá? — perguntou Jake.
Bach’uuk anuiu e virou-se, mas Marika não se mexeu.
— Mesmo que os Ur sejam autorizados a entrar no templo, nós não somos — disse ela. — É proibido a todos, com exceção dos mestres, pôr os pés no interior da pirâmide.
Jake esforçou-se por não revirar os olhos. Tinha muita consideração por Marika, mas ela era tão teimosa como ele. Ele precisava de vencer a sua rigidez. Agarrou na sua mão.
— Mari, já não há mestres em Calypsos. Pelo menos nenhum por perto neste momento.
Ele viu o quanto as suas palavras a magoaram, recordando-lhe o desaparecimento do pai. Mas elas tinham de ser ditas.
Jake tocou no alfinete que ainda tinha preso no seu casaco.
— Como aprendizes, neste momento nós somos os únicos mestres que Calypsos tem.
As sobrancelhas dela uniram-se, digerindo o ponto de vista dele sobre o assunto. Ela olhou para o combate que se travava no céu, depois anuiu.
— Podes ter razão. — A sua voz tornou-se mais firme. — Temos de tentar.
Jake apertou a sua mão, depois fez sinal a Bach’uuk para os conduzir.
Pindor seguiu-os, murmurando o seu mantra agourento do costume.
— Vocês são os únicos mestres de Calypsos? Então estamos condenados com toda a certeza.