23
UM ASSOBIO NO BOSQUE
O Bosque Sagrado estendia-se como um mar negro para lá da periferia da cidade sitiada de Calypsos. Lançava-se contra as suas muralhas num emaranhado tortuoso de árvores. Todas elas eram gigantes com troncos retorcidos, como a árvore que adornava o pátio do castelo.
Um trilho atravessava o bosque, iluminado por candeeiros solitários de cristais luminosos, mas estes encontravam-se muito afastados uns dos outros, deixando longas faixas de profunda escuridão entre eles. O grupo fugiu ao longo do trilho.
O templo ficava no coração do bosque, a cerca de um quilómetro de distância. À medida que corriam, ouviam os sons da luta. A guerra continuava a espalhar-se. Outros habitantes da cidade procuravam refúgio na floresta. Vozes chamavam-nos de esconderijos quando eles passavam. Porém, eles continuaram em frente, guiados por um determinado Bach’uuk.
Jake perscrutou o bosque em busca da luz vacilante de uma chama. Kady tinha vindo para a floresta com os seus amigos para fazerem uma grande fogueira depois do jogo. Porém, Jake não viu qualquer sinal de uma. Ou ela ardia num lugar muito mais remoto no denso bosque ou tinham-na apagado quando o combate começara.
A preocupação mantinha tensos os músculos do seu maxilar.
— Nunca vamos conseguir entrar no templo — sussurrou Marika que corria ao seu lado. — Da mesma maneira que o coração de cristal de Kukulkan protege o nosso vale, pelo menos até esta noite, ele também lança um escudo sobre a abertura para o templo. Só os mestres são autorizados a passar.
Jake visualizou o grakyl no Portão Quebrado, contorcendo-se contra o escudo de forças.
— Estás a dizer que há uma barreira à entrada?
O rosto de Marika estava na sombra, mas Jake sabia que ela franzia o sobrolho.
— O que pensas que eu estava a dizer no parque há momentos? Só os mestres podem entrar… e, aparentemente, os Ur.
Jake tinha pensado que o templo estava guardado por homens ou por mera superstição.
— E se nós não conseguirmos entrar?
— Como disseste, Jake, talvez nós sejamos os mestres agora e sejamos autorizados a passar. Ou talvez Bach’uuk saiba de alguma passagem secreta para lá entrar, conhecida apenas pelos Ur. Ele mencionou um túnel.
Jake acenou com a cabeça e apressou o passo. Ultrapassaria aquela barreira invisível quando lá chegasse.
Continuaram a caminhar pela floresta em silêncio. À medida que se embrenhavam no bosque, os sussurros e os chamamentos iam-se silenciando à sua volta. Nenhum dos habitantes da cidade que se escondiam no Bosque Sagrado chegara tão longe. E porque o fariam? Se Marika tinha razão, o templo não lhes oferecia qualquer refúgio.
Jake pressentiu a pirâmide antes de a ver. O ar tinha-se tornado mais pesado e de alguma forma carregado, como antes de uma trovoada, quando os céus estavam baixos e escuros e os relâmpagos crepitavam à distância. Os seus sentidos tornaram-se mais apurados. Os seus ouvidos captaram o sussurro das folhas na copa das árvores. Cheirou a doçura do musgo que desabrochava à noite e crescia com uma luminescência fantasmagórica nos troncos retorcidos das árvores. A sua pele formigou com a leve brisa.
E ali estava ela.
A floresta acabava a poucos metros do primeiro degrau da pirâmide.
Jake avançou para a clareira. Não era uma coisa muito avisada de fazer, pois a refrega continuava a desenrolar-se em cima. Porém, ele nunca se tinha deparado com uma visão tão espantosa. Não havia dúvida. Era exatamente igual ao artefacto de ouro do museu, aquele que fora recuperado na escavação dos seus pais.
Só que este era em tamanho gigante.
Cada um dos níveis da pirâmide ficava acima da cabeça de Jake, subindo cada vez mais até ultrapassar as árvores mais altas. E ali, empoleirado mesmo no topo, aninhava-se o dragão de pedra. O luar tornara-o prateado, delineando nitidamente cada detalhe.
As asas abertas tinham penas gravadas nelas. Jake ficou a olhar para cima. A estátua, na realidade, era uma serpente emplumada. Não admirava que o povo de Marika lhe tivesse chamado Kukulkan quando ali chegara. Ou, talvez, os mitos de Kukulkan entre os maias tivessem vindo daquele lugar. Jake lembrou-se do que tinha visto na biblioteca de Balam. Aquilo fê-lo refletir mais uma vez. Teria o povo antigo, em tempos, descoberto naquele lugar uma maneira de regressar a casa? Teriam eles levado mitos de monstros e serpentes emplumadas deste lugar para as suas terras nativas?
Jake estudou a estátua. O dragão olhava para o horizonte. O seu focinho não era propriamente sáurio, nem tão-pouco parecia reptiliano, mas de alguma maneira uma coisa inteiramente nova, mesmo vagamente humana. Esta última impressão vinha dos olhos de pedra semicerrados, que olhavam em frente com tanta esperança, parecendo cheios da uma antiga sabedoria.
Por último, Jake reparou na sua cauda. Esta enrolava-se inteiramente à volta do nível mais elevado, como se estivesse a proteger o ninho com os ovos. A ponta da cauda formava um círculo perfeito, destacando uma porta redonda no topo da pirâmide. Parecia ser a única entrada. Situava-se no ponto onde Jake tinha inserido as duas metades da moeda maia no artefacto de ouro do Museu Britânico.
— Por aqui — disse Marika, apontando para a frente.
Em baixo, no centro da face lateral da pirâmide, os degraus gigantescos eram cortados por uma escadaria mais estreita com degraus de tamanho normal. A escadaria dirigia-se exatamente para a entrada redonda. Ela avançou para lá.
— É melhor despacharmo-nos — sugeriu Pindor, olhando por cima do ombro ao passar por Jake.
Jake ergueu a cabeça e viu que a tempestade serpenteante de grakyls e Raz com garras afiadas os tinham alcançado. Não tinham mais tempo. Jake correu atrás de Pindor com Bach’uuk nos seus calcanhares.
Jake chegou aos degraus e começou a subir. Procurou desajeitadamente a sua lanterna em forma de caneta. Queria tê-la nos seus dedos se fossem atacados. Manteve o polegar no interruptor, mas sem ligar a luz. Queria poupar a bateria. Não sabia quanto tempo ela duraria. Também receava que o feixe de luz pudesse atrair olhares indesejados.
Porém, no fundo, não fazia diferença.
Os grakyls tinham uma visão apurada. Alguns deles avistaram os quatro vultos que corriam pela pirâmide iluminada pelo luar. Um guincho rompeu a noite. Jake olhou para cima e viu uma dezena de grakyls mergulharem na sua direção. O que estava no comando era o maior, com chifres recurvados na cabeça, e a sua espada negra refletia a luz em toda a sua perigosa extensão.
Um dos senhores dos grakyls.
— Todos juntos — gritou Jake.
Encontravam-se a apenas um quarto da subida da face lateral da pirâmide. Nunca iam conseguir. A toda a volta, os grakyls precipitavam-se para as paredes de pedra da pirâmide. O senhor das abomináveis bestas aterrou alguns degraus abaixo de Jake. Preparou-se para saltar, com as asas abertas, a sua espada apontada diretamente ao coração de Jake.
Jake ergueu a sua única arma. Apontou a lanterna para o rosto do grakyl e ligou a luz. O brilho intenso começou por incomodar a besta, que estendeu uma asa protegendo os olhos como com uma capa. Então, de repente, gritou de dor quando o toque glacial da luz transformou os seus olhos em gelo. Caiu para trás, arranhando o próprio rosto, rasgando-o, ao mesmo tempo que rolava pelos degraus.
A sua espada bateu no degrau de baixo e tilintou. Jake investiu e agarrou-a antes que ela ressaltasse para longe. Precisavam de cada arma. Ao passá-la a Pindor, Jake vislumbrou um símbolo fundido no seu punho, que lhe pareceu familiar. Porém, não tinha tempo para o examinar melhor.
Os gritos do senhor dos grakyls tinham provocado uma sede de sangue nos seus irmãos. Dirigiram-se ao pequeno grupo vindos de todos os lados. Jake atingiu mais dois na face, cegando-os e mandando-os a rebolar atrás do seu senhor. Pindor fez o seu melhor para afastar os outros com a espada. Mas mais bestas se aproximavam de todas as direções, guinchando de dor e fúria.
Tinham de sair dali.
Jake virou e apontou o feixe de luz para o grakyl que se encontrava no degrau acima dele. Ele sibilou e escondeu a face. As criaturas estavam a aprender. Pensando rapidamente, Jake apontou a luz para os joelhos do grakyl, fazendo-a incindir entre as duas articulações ósseas.
— Corre — gritou Jake. — Segue-me.
Correu direito ao monstro que se encontrava à sua frente e gritou um desafio. A besta tentou avançar para um confronto direto — mas os seus joelhos estavam congelados e não dobravam. Tombou para a frente, para cima de Jake, pronto a rasgar-lhe a garganta. Mas Jake agachou-se e usou um movimento de taekwondo com o ombro para atirar a besta pelas escadas abaixo. Esta caiu aos trambolhões. Os outros esquivaram-se dela e continuaram a subir.
Jake subia dois degraus de cada vez. Atrás dele, outro grakyl perseguia-o, trepando pelas escadas, saltando de degrau em degrau, tentando intercetá-los. Não iam conseguir chegar à entrada. Os seus perseguidores aproximavam-se.
— JAKE! — gritou Marika.
Ele voltou-se. Um dos grakyls agarrara Marika pela cintura. Batia as asas e tentava arrastá-la. Então, Jake ouviu um assobio e alguma coisa atingiu a cabeça do monstro. O grakyl caiu como uma pedra e libertou Marika.
De repente, uma grande barragem de pedras foi disparada da orla da floresta. Um grupo de homens jovens de toga saiu das árvores para a clareira em baixo. Tinham fundas e manuseavam-nas com grande perícia.
Jake reconheceu uma face familiar.
— Heronidus! — gritou Pindor, avistando também o irmão.
A chuva de pedras abateu-se sobre os demoníacos grakyls. Ossos partiram-se e crânios racharam-se. As bestas tentaram escapar, mas em seguida veio uma carga de setas. A vibração dos arcos fez-se ouvir uma e outra vez. Atrás dos romanos, surgiu uma linha de mulheres viquingues, empunhando pequenos arcos.
Os grakyls em fuga ficaram crivados de setas e caíram por terra.
Porém, a batalha na pirâmide não passou despercebida. Mais guinchos irromperam do combate feroz que se desenrolava em cima. Uma ala negra da horda dos grakyls desceu em direção ao banho de sangue. Cerca de trinta vezes mais forte. Alguns dirigiram-se para a pirâmide, outros para a orla da floresta.
Um grito irrompeu de baixo:
— JAKE!
Ele desviou os olhos do céu. Uma mulher vestida à maneira viquingue acenou-lhe, indicando-lhe que se dirigisse para a abertura da pirâmide.
— CORRE, JAKE!
Era Kady!
Ele mal a reconheceu. O seu vestuário estava rasgado, o seu rosto coberto de sangue, mas de alguma forma ela parecia mais alta. Na sua mão, erguia uma espada que apontava para o topo da pirâmide.
— VAI! AGORA!
Ele viu Kady e os outros voltarem para a floresta. Jake correu para a abertura na pirâmide. Em cima, o dragão de pedra continuava a olhar para os céus, com uma expressão imutável, alheio ao derramamento de sangue e aos gritos.
Jake correu mais depressa. Tinham de chegar à entrada. Já não era muito longe. Estavam quase no cimo da pirâmide.
Então, um punhado sombrio de grakyls aterrou no degrau à sua frente — oito ao todo, chefiados por outro senhor dos grakyls. Bloquearam-lhes o caminho. Pindor ia à frente. Confrontou o monstro com a espada roubada.
Jake avançou, pronto a defendê-lo.
Porém, Pindor sentiu que aquela era uma guerra que não podiam vencer. Estavam em desvantagem numérica. Baixou a espada, desistindo. O senhor dos grakyls sorriu como um tubarão, revelando uma fileira de dentes afiados.
Mas Pindor não tinha desistido. Levou a outra mão aos lábios… e soprou. Jake ouviu um débil gemido agudo que desapareceu no nada. Pindor tinha o apito do cão de Jake entre os lábios e soprava-o com toda a alma.
A horda de grakyls gritou e retorceu as orelhas pontiagudas, como se estivessem a metê-las nos seus canais auditivos para bloquear o barulho. O seu ignóbil senhor sibilou em agonia e lançou-se pelo ar. Torceu-se e contorceu-se com se tivesse perdido o equilíbrio. Os outros dispersaram, fugindo do penetrante assobio ultrassónico.
Com o caminho livre de novo, Jake apontou.
— VAI!
Pindor correu com ele para cima.
— Eles têm umas grandes orelhas — arquejou ele. — Pensei que talvez…
— Pensaste bem! — retorquiu Jake, sabendo que Pindor lhes tinha salvado a vida.
Correram pelos últimos degraus e saltaram por cima do anel da cauda que rodeava a entrada. Jake sentiu um ligeiro formigueiro, como quando tinha passado pelo Portão Quebrado, mas ninguém os parou.
Jake fez uma pausa e olhou para trás. Os grakyls tinham voltado, mas pairavam à entrada. Um tentou atingi-los com uma garra. Um pequeno crepitar de faíscas percorreu a pele do grakyl. Mas foi tudo. Não foi repelido, o que queria dizer que a barreira da pirâmide, como a que rodeava todo o vale, estava em baixo.
No entanto, a criatura recuou. Recusou-se a segui-los para dentro da pirâmide. Outros juntaram-se lá fora, mas nenhum deles entrou.
— Parece que eles têm medo de entrar — sussurrou Marika.
Medo de quê?, perguntou-se Jake com um arrepio de terror.
— Com medo ou não, o certo é que não se vão embora — disse Pindor.
Era verdade. Mais e mais grakyls juntavam-se lá fora. Jake imaginou toda a pirâmide coberta com aqueles monstros. Talvez eles estivessem a arranjar coragem para irromper por ali adentro. Jake queria estar longe quando isso acontecesse.
— Para onde vamos agora? — perguntou Jake.
Bach’uuk acenou e conduziu-os em frente. O túnel da entrada inclinava-se fortemente para baixo, em direção ao centro da pirâmide. O caminho estava às escuras, mas uma luz brilhava no final do corredor.
Não tinham escolha senão enfrentar o que estava à sua frente.