24
SOMBRA NA MÁQUINA
Ao percorrer o túnel, Jake deslizou um dedo ao longo da parede. As pedras ajustavam-se perfeitamente, porém, em vez de estarem empilhadas, cada uma delas tinha uma forma irregular que se encaixava perfeitamente nas outras como as peças de um puzzle. No entanto, a linha de junção das pedras era tão lisa que ele duvidava de que pudesse caber uma lâmina de barbear entre cada um dos blocos.
A luz tornou-se mais brilhante à sua frente. Jake sentiu um pulsar no ar, como se alguma coisa lhe estivesse a comprimir o peito, libertando-o em seguida, voltando a comprimi-lo. A cada passo que dava, aquela sensação aumentava.
Pindor esfregou o estômago, sentindo a mesma coisa ali. Apesar do perigo, Marika franziu o sobrolho de curiosidade. Apenas Bach’uuk parecia imperturbado. Mas ele já tinha estado ali.
A passagem continuava a descer, mas o seu fim parecia estar mesmo à frente. O pulsar tornou-se mais intenso e a luz mais clara quando o corredor desembocou numa câmara cavernosa, com uma cúpula semelhante à do Astromicon.
Jake parou, assombrado pelo que via à sua frente.
Uma esfera perfeita de cristal estava no centro da câmara. Rodava lentamente sobre si própria, suspensa no ar sob a cúpula. Irradiava um brilho constante, mas Jake sentia aquele pulsar a cada volta completa que ela dava.
O coração de cristal de Kukulkan!
O pulsar era o batimento do seu coração.
À medida que os seus olhos se habituavam ao brilho, Jake viu mais uma coisa que o surpreendeu. A esfera era na realidade constituída por três esferas, cada uma dentro da outra, como matrioscas. Duas delas rodavam em direções opostas: uma da esquerda para a direita, a outra da direita para a esquerda. A terceira girava de cima para baixo. Letras estranhas estavam esculpidas na superfície das três esferas e giravam de forma a fazer toda a espécie de combinações, como se fosse um computador de cristal.
Marika avançou e passou entre Pindor e Bach’uuk. Os seus olhos estavam arregalados. O chão afundava-se formando uma taça sob o coração de cristal. Sob a esfera que rodava estavam três versões em miniatura da maior. Uma esmeralda, uma rubi, uma azul-safira.
De novo, as três cores primárias.
Jake olhou de relance para o seu anel de prata de aprendiz. As mesmas três pedras formavam um triângulo em volta do diamante. Apercebeu-se de que o padrão devia ser uma versão miniaturizada daquele que estava à sua frente. O diamante representava o coração de cristal. As gemas coloridas correspondiam às três esferas mais pequenas.
Fascinado, contemplou o centro da sala.
Sob o gigantesco coração de cristal, as pequenas esferas giravam sobre si próprias, como pequenas luas apanhadas na órbita de um planeta maior — ou, mais exatamente, duas delas giravam.
O cristal esmeralda parecia oscilar e, enquanto as outras esferas brilhavam com a sua própria luz interior, a esfera verde mantinha-se escura e sombria. Alguma coisa estava definitivamente errada com ela.
A causa para isso tornou-se evidente quando, de um corredor escuro no ponto mais distante da cúpula, irromperam sombras. Flutuavam em volta de uma forma humana, mas era impossível ver os pormenores. As sombras ocultavam inteiramente a figura e agitavam-se à sua volta como chamas negras.
Tinha de ser o assassino que Bach’uuk vira a fugir de Kalakryss.
Jake refugiou-se no corredor e arrastou Marika consigo. O homem das sombras — se é que era um homem — ajoelhou-se junto ao cristal verde e levantou as duas mãos sobre a sua superfície. Dos seus dedos, a escuridão fluiu e afundou-se na pedra esmeralda. A oscilação tornou-se mais errática.
O assassino estava a fazer alguma coisa para controlar ou possivelmente destruir aquela esfera. Mas porquê? Com que fim? Jake lembrou-se de Marika ter falado sobre as dádivas de Kukulkan, da sua descrição do campo projetado pela pirâmide, que concedia uma língua comum a todos, protegia o vale dos perigos e mantinha os cristais carregados de energia.
Três dádivas… três esferas coloridas.
Duas das dádivas ainda funcionavam — a língua e o poder dos cristais —, mas não a terceira. A barreira não funcionava. Jake sabia agora como é que as forças do Rei Caveira tinham penetrado as defesas do vale. Estava a olhar para isso. A criatura tinha enfraquecido a barreira na sua origem — envenenando a esfera esmeralda.
Ela tinha de ser parada ou todo o vale seria destruído.
Jake saiu do corredor. Caminhou em bicos de pés e ligou a lanterna. Se se movesse em silêncio, poderia apanhar o assassino de surpresa. E com o alcance do feixe de luz da lanterna, nem precisaria de se aproximar muito. Valia a pena correr o risco.
Jake levantou uma mão a fim de avisar os outros para se deixarem ficar para trás. Deu mais alguns passos — quando um grito estridente se elevou da horda de grakyls lá fora. Jake encolheu-se face ao tom triunfante dos gritos. Receou o que aquilo poderia querer dizer para todos no vale. Mas naquele momento queria dizer desastre para Jake.
A figura sombria, talvez curiosa com o barulho, olhou na direção da entrada. A sua face retorcida virou-se diretamente para Jake. Este imobilizou-se como que atingido pelo feixe de luz da sua própria lanterna. A criatura investiu, levada pelas sombras atrás dela. Correu para Jake.
Finalmente, Jake reagiu e levantou a lanterna. Fê-la incindir diretamente na poça de sombras que ocultava a face da figura. A luz glacial queimou através das trevas. A escuridão fluiu para longe da luz como água.
A criatura atirou-se para o lado. Jake quase conseguiu ver a face atrás da máscara — e então o feixe de luz da lanterna piscou e morreu.
Em pânico, Jake abanou-a. Conseguiu que ela brilhasse mais um segundo, depois apagou-se outra vez. As sombras precipitaram-se de novo sobre a face da criatura e engoliram as suas feições.
A figura levantou os dois braços e as sombras irromperam da sua forma e lançaram-se sobre a parte inferior do corpo de Jake. As pernas deste ficaram imediatamente frias. As sombras adensaram-se até à consistência do alcatrão. Jake não conseguia mexer-se.
— Jake! — chamou Marika.
— Não saias daí! — gritou ele. Ou seremos todos apanhados.
A criatura parecia não ter qualquer problema em atravessar as sombras na direção de Jake. Embora a figura não tivesse um rosto, Jake imaginou um sorriso maldoso.
Palavras fluíram, abafadas pelas sombras.
— Tu sobreviveste à minha armadilha. O meu mestre ficará satisfeito. Ele tem grandes planos para ti.
Jake não sabia do que a criatura estava a falar. Sacudiu freneticamente a lanterna, mas as baterias estavam completamente gastas. Nesse momento, ouviu pés correrem atrás dele. Olhou por cima do ombro e viu Marika, Pindor e Bach’uuk a virem em sua ajuda, dirigindo-se diretamente para a poça das sombras. Não lhe tinham dado ouvidos. Várias emoções debateram-se dentro dele. Estava ao mesmo tempo aliviado por si próprio, mas também aterrado pelo que podia acontecer aos seus novos amigos.
Pindor alcançou a poça de sombras primeiro e as suas pernas cederam debaixo dele. Caiu de cara na poça negra. Bach’uuk e Marika usaram o corpo do rapaz como uma ponte. Bach’uuk ia à frente e, quando atingiu os ombros de Pindor, virou-se, agarrou Marika pela cintura e lançou-a para Jake. Ela voou por cima da poça e aterrou dois passos atrás dele — e então afundou-se até à cintura como Jake.
Marika tentou dar um passo, içando a parte de cima do corpo, mas não conseguia mexer-se. Todos os seus esforços pareciam divertir a sombria criatura. Um risinho abafado fluiu, mas não transmitia calor, apenas gelo.
— A filha do mestre e o filho do ancião. E um jovem Ur. Vocês sozinhos pensam ser capazes de derrotar o Rei Caveira?
De novo, aquele riso sinistro.
— Jake… — disse Marika atrás dele.
Ele olhou para ela. Marika tinha uma mão na sua garganta e batia com um dedo por baixo do queixo, como se lhe estivesse a fazer um sinal. Ele não compreendia o que ela lhe queria dizer. A outra mão dela ergueu-se por detrás das suas costas. Nos seus dedos, ela segurava uma haste fina, encimada por um cristal rubro. Era a vara do seu pai.
Ela segurou-a na direção de Jake, fora das vistas da sombria criatura. Marika voltou a bater na garganta.
Então, Jake lembrou-se. Bach’uuk descrevera uma característica que o seu olhar perspicaz captara da forma de sombras quando o assassino fugira de Kalakryss. Um fecho na garganta, decorado com uma pedra-de-sangue.
Jake virou-se e enfrentou a escultura de sombras. Marika fez deslizar a vara para a mão que Jake mantinha atrás das costas. Ele levantou o queixo e ficou a olhar em frente à medida que a figura reduzia a distância entre eles.
— Mesmo que o mestre te queira — sibilou —, isso não quer dizer que não possa fazer-te sofrer pelos problemas que causaste. E que melhor maneira de te fazer sofrer do que ver um dos teus amigos morrer?
A criatura apontou com um braço. Jake arriscou um olhar e viu Pindor debater-se para sair do meio da poça negra. Tinha a cabeça de fora e lutava por respirar. Então as sombras subiram pelo corpo do seu amigo, fluindo para cima e enchendo a sua boca e o nariz, deixando apenas os olhos acima da escuridão. Pindor debateu-se, assustado. A sua boca abriu-se num grito silencioso quando ele tentou respirar.
Jake virou-se, irritado, e enfrentou o monstro envolto em sombras.
— Solta-o! — gritou, voltando a atrair a atenção da criatura. Quando ela virou a cabeça, Jake avistou um ténue brilho enterrado nas sombras. Um pedaço de escuridão mais escuro que qualquer sombra. O fecho da pedra-de-sangue.
Jake pegou na vara de Balam e desferiu um golpe. O cristal carmesim rompeu as trevas e atingiu a pedra negra. A pedra-de-sangue pareceu saltar. Um débil grito fluiu dela ao mesmo tempo que uma luz rubra irrompia da ponta da vara. Jake piscou os olhos face ao brilho ofuscante e viu a pedra-de-sangue ficar totalmente branca, drenada do seu poder.
— Não! — gemeu a criatura, ecoando o grito da pedra.
As sombras colapsaram como uma enxurrada de neve derretida depois de um súbito degelo. Jake tropeçou, livre, à medida que a poça de sombras à sua volta passava de alcatrão a ar puro. Esbarrou em Marika, mas ficaram de pé. Pindor tossiu e arquejou, mas ainda estava vivo. Bach’uuk ajudou-o a pôr-se de pé. Pindor agarrou na sua espada e avançou meio atordoado. Pressionou a ponta da sua espada sobre o coração do assassino.
Com o fecho da pedra-de-sangue aberto, as sombras desapareceram para longe da figura. A escuridão fluiu para baixo e revelou uma face pálida e uma barriga excessivamente grande.
— Mestre Oswin — gaguejou Marika.
Ele não mostrou remorsos, apenas desdém e desagrado.
— Porquê? — perguntou ela.
— Porque não? — zombou ele, fazendo uma careta.
— Mas serviste sempre Calypsos.
Ele deu uma gargalhada dura.
— Não, eu servi sempre o Kalverum Rex, o meu verdadeiro senhor. Sirvo-o desde que sou aprendiz, reconheci o seu brilhantismo. Alguém que não tem medo de aprofundar a alquimia de que outros fogem. Ele encontrou um trilho sombrio para a divindade, e foi-me permitido seguir atrás dele.
— Então porque não partiste com o rei quando ele foi banido? — perguntou Marika, com o rosto pálido e enojado.
De novo, aquele sorriso sinistro.
— Enquanto ele permitiu que outros fossem com ele, a mim foi-me ordenado que ficasse. Para ser os seus olhos e os seus ouvidos. Para aguardar até ao momento em que ele pudesse voltar!
— Então, tu és um espião! — disse Pindor, puxando a sua espada o suficiente para fazer o prisioneiro estremecer.
— E um sabotador — acrescentou Jake com um aceno para a esfera verde-escura.
— Todos estes anos… — exclamou Marika.
— Que suínos crédulos. — Ele cuspiu no chão. — Vocês não sabem nada sobre esta terra! Não sabem nada sobre as forças que neste momento se fecham à vossa volta. Com apenas uma palavra… — De repente, ele encolheu-se e ofegou. Olhou fixamente para os seus pés.
As sombras tinham-se acumulado ali como uma capa caída. Mas não ficaram paradas. À volta dos pés do mestre, as sombras começaram a rodopiar como um remoinho.
— Não, mestre — gemeu ele.
As pernas de Oswin começaram a afundar-se no remoinho cerrado. Os seus olhos arregalaram-se em pânico. De súbito, o seu rosto contorceu-se de dor. Um grito irrompeu da sua garganta. Não de súplica desta vez, mas de pura agonia. Oswin tentou afastar-se da poça que girava, mas foi apanhado tão firmemente quanto Jake fora anteriormente. Ele estatelou-se no chão.
Todos se afastaram.
A maré negra puxou o seu corpo para mais fundo, sugando-o. Os seus dedos cravaram-se no chão liso de pedra, mas não conseguiu agarrar-se. O seu rosto contorceu-se numa máscara de dor e terror.
— Não! Assim não!
Marika deu um passo na sua direção. Jake segurou-a. O demónio podia arrastá-la com ele.
— O meu pai — rogou ela. — O que é que lhe aconteceu?
Oswin parecia não a ouvir, ou simplesmente não queria saber. Os seus dedos deixaram um rasto sangrento à medida que era sugado para aquela goela negra. Desapareceu com um último grito de terror.
Marika virou-se e encostou o seu rosto ao ombro de Jake. Ele pôs um braço à volta dela. O remoinho continuou a rodar, mas, como a água que se escoa pelo ralo da banheira, depressa desapareceu, deixando apenas o chão de pedra liso.
Todos demoraram um momento para se acalmarem. Pindor bateu com a sua espada no chão, como que a testar a sua solidez. Jake manteve o braço à volta de Marika. Caminharam trémulos em frente e passaram por baixo do coração de cristal do templo. Jake ajoelhou-se junto à esfera esmeralda. Já nem mesmo oscilava. Nas profundezas da pedra, onde as outras esferas brilhavam, o cristal estava escuro — não, não apenas escuro, estava preto.
Um pedaço sólido de sombra repousava no coração da pedra.
Jake pousou cuidadosamente a palma da sua mão na superfície. Estava fria, e nada mais. Colocou a outra palma sobre ela. Não conseguia descobrir nenhuma maneira de fazer desaparecer a escuridão venenosa de dentro dela. Não havia maneira de a alcançar com a vara de Balam, não através de cristal sólido. E a lanterna de Jake não tinha mais energia. Nem sequer podiam tentar dar-lhe um choque.
Jake olhou de relance para Marika. Esta abanou a cabeça. Eles precisavam de um mestre a sério, não de dois aprendizes.
Pindor olhou para trás, para onde Oswin fora sugado para o vazio.
— Ele traiu-nos a todos. Mas suponho que isso faça um certo sentido em termos estratégicos.
Marika explodiu:
— Sentido? Como é que tudo isto faz sentido?
Pindor fez um gesto com a mão apontando para a câmara.
— O Rei Caveira precisava de um mestre. Só um mestre podia passar através da barreira que protegia o templo e desativar o escudo que guardava o vale. Não é de admirar que o Rei Caveira tenha aceitado tão facilmente ser banido. Ele sabia que podia voltar ao vale quando estivesse preparado para o fazer.
Jake levantou-se.
— Mas isso não quer dizer que tenhamos de o deixar. — Fez um aceno para Bach’uuk. — Nós viemos para aqui com um plano… o teu plano, Pin… para encontrar um lugar onde nos pudéssemos reagrupar e encontrar mais aliados.
Marika juntou-se a eles.
— Não podemos deixá-lo vencer.
— Não deixaremos — prometeu Jake, desejando que fosse uma promessa que pudesse cumprir.
Ao saírem da sala, um grito explodiu fora do templo. Foi tão alto que fez os ouvidos de Jake doerem mesmo dentro do templo. Juraria que fez abanar o chão por baixo deles.
Jake recordou os gritos de triunfo que tinham entusiasmado a horda de grakyls há alguns momentos. Suspeitou que a causa desse entusiasmo tivesse acabado de chegar.
— É ele? — perguntou Marika, dando voz ao que Jake temia. Ela não precisava de um nome. Todos sabiam a quem ela se referia.
— Vamos — disse Jake.