25
MUNDO SUFICIENTE E TEMPO
Bach’uuk conduziu-os para o túnel situado do outro lado do coração de cristal. Dava para um conjunto de estreitas escadas de caracol que desciam para os níveis inferiores da pirâmide. Seguiram em fila indiana. Jake percebeu que tinham de estar por baixo da pirâmide, a não ser que a pirâmide fosse maior do que parecia vista de cima. Talvez o que estivesse à superfície fosse apenas a ponta de uma estrutura muito maior.
Às voltas e às voltas, continuaram a descer.
Por fim, as escadas desembocaram numa outra sala, de teto plano mas de forma circular. Estalactites gigantescas de cristal estavam suspensas do teto alto como as presas de um colossal animal fossilizado. Brilhavam e iluminavam todo o espaço.
Jake seguiu Bach’uuk, que se dirigiu para outro túnel na ponta mais distante da sala. Parecia que havia mais escadas — que também continuavam para baixo.
Quanto mais para baixo vai este lugar?, pensou Jake. Porém, toda a sua atenção se concentrou na sala. Os seus pés abrandaram. Marika e Pindor mantinham-se perto dele.
No chão, encontrava-se um gigantesco dispositivo. Era uma roda circular feita de ouro puro. Estava pousada no chão na horizontal e estendia-se por cerca de nove metros. A sua borda interior era dentada como uma engrenagem. Uma segunda roda encaixava-se na primeira.
Sob o olhar de Jake, a engrenagem maior rodou alguns graus com um forte estalido, fazendo girar a engrenagem menor no seu interior. Depois parou, como que a marcar o tempo. E talvez estivesse. Jake andou à volta da sua circunferência exterior. Embora não houvesse marcas nela, Jake reconheceu a sua forma.
Seguindo atrás de Jake, Marika também a reconheceu.
— É como a roda do calendário da nossa tribo.
Jake anuiu. Os maias tinham desenvolvido um calendário muito completo usando rodas que se encaixavam umas nas outras como engrenagens. De novo, perguntou-se o que tinha acontecido primeiro. Teriam os maias construído isto? Ou teria algum antepassado dos maias estado onde eles estavam agora e regressado a casa com o conhecimento? Jake continuou a andar à volta. De acordo com Marika, a pirâmide estava ali muito antes de qualquer das tribos ter chegado, mesmo antes de os neandertais terem feito daquele vale a sua casa. Jake começava a suspeitar que estava a olhar para a possível origem de todo o antigo conhecimento, conhecimento encontrado aqui e levado para as terras natais.
Bach’uuk, que já tinha visto tudo aquilo antes, esperava à entrada do túnel mais afastado.
Jake começou a dirigir-se a ele quando reparou nas paredes curvas da sala. Linha após linha de escrita antiga cobria as paredes do chão ao teto, tão nitidamente gravadas que podiam ter sido cortadas a laser. Jake examinou cuidadosamente a escrita antiga.
Que língua seria aquela? Quem tinha escrito aquilo? Jake passou os dedos sobre as letras. Tinham de ser os construtores da pirâmide. Possivelmente, os mesmos que haviam atraído as Tribos Perdidas da Terra para estas paragens remotas.
Continuou a andar junto à parede e dirigiu-se a Bach’uuk, cujas sobrancelhas se franziam cada vez mais de impaciência. Tinham de se apressar. Porém, ao avançar pela sala, Jake viu um desenho à sua frente. Tinha sido gravado num espaço em branco na parede. Mostrava três círculos com formas salientes, criando um baixo-relevo.
Jake afastou-se para ver o desenho no seu conjunto, mas parou de súbito de boca aberta à frente do primeiro círculo, incapaz de falar. Voltou a aproximar-se. Embora os pormenores não fossem grande coisa, as formas pareciam as de um mapa grosseiro da Terra. Jake percorreu com um dedo as formas esculpidas dentro do primeiro círculo, murmurando os nomes dos continentes.
— África, América, Austrália…
O círculo seguinte mostrava esses mesmos continentes muito mais próximos, encaixando-se uns nos outros como num puzzle. A protuberância na América do Sul encaixava na curva de África. E assim por diante.
O último círculo mostrava todos os continentes fundidos num só.
Jake arquejou e voltou a afastar-se para abarcar a vista de conjunto. Começou a compreender o que estava a ver. No passado, na era dos dinossauros, o mundo era um único e grande continente. Porém, um grande cataclismo e as forças do magma a fluir dividiram finalmente a enorme massa de terra e formaram os atuais sete continentes mais pequenos.
Jake engoliu em seco e sussurrou o nome científico do supercontinente desenhado no último círculo.
— Pangaea.
Pindor estava ao seu lado. Lançou a Jake um olhar intrigado.
— Não sabia que falavas grego.
Jake franziu a testa.
— O quê?
— Pangaea. É grego. Estudei-o na escola.
Jake sentiu um formigueiro ao compreender. Pindor tinha razão A palavra Pangaea era efetivamente formada por duas palavras gregas. Visualizou-as na sua cabeça.
Pan = toda
Gaea (Gaia) = Terra.
Logo, a tradução de Pangaea é toda a Terra.
Jake franziu o sobrolho. Toda-a-terra era também o nome para a língua universal usada por toda a gente ali. Não podia ser uma coincidência, pois não? Olhou para Pindor e para o mapa. Então virou-se lentamente quando uma ideia o gelou. Os seus amigos não falavam toda-a-terra, falavam pangeiano.
Um arrepio percorreu Jake quando ele se virou para o mapa novamente. A Pangeia era um mundo pré-histórico cheio de dinossauros e plantas primitivas. Como aqui. Levantou o braço e colocou a palma da mão sobre o supercontinente.
Pode isto ser onde estou agora?
Se estivesse certo, neste momento olhava para a forma deste mundo. Tinha estado a fazer a pergunta errada desde que ele e Kady haviam aterrado aqui. A pergunta não era onde é que estavam, mas quando. Jake ainda estava na Terra — mas duzentos milhões de anos no passado.
— Isto é a Pangeia — exclamou ele em voz alta.
Marika parecia perplexa com a reação de Jake ao desenho.
— Jake, qual é o problema?
Ele abanou a cabeça. Não tinha tempo para explicar e de qualquer maneira duvidava que eles acreditassem nele. Pelo menos, para já.
Pindor apontou a sua espada para Bach’uuk.
— Devíamos ir andando.
Jake deixou-se conduzir. Sentia as pernas bambas do choque. Um forte estalido atraiu o seu olhar para o mecanismo no chão. Tinha passado mais um entalhe. A roda interior mais pequena rodava. Jake olhou para o mapa na parede atrás deles, o mapa da Pangeia.
Tem tudo que ver com o tempo.
Jake sabia que isso era fulcral para aquele mistério. Quando começou a afastar-se, um pedaço de ouro a rodar no chão chamou-lhe a atenção. O anel interior tinha colidido com alguma coisa dentro dele. Parecia uma moeda grossa de ouro. Rolou até parar dentro do anel, tornando-o mais lento.
Jake deu um passo na direção das duas engrenagens.
Isto é…?
— Temos de ir — insistiu Pindor. Passou a espada de uma mão para a outra, claramente preocupado com o seu povo e a sua cidade.
Porém, Jake inclinou-se sobre o anel exterior e esquadrinhou o que se encontrava dentro do anel mais pequeno. Não era uma moeda. Jake reconheceu a forma. Passou por cima do anel exterior, tendo cuidado com as engrenagens dentadas, e avançou lentamente para o anel interior. Inclinou-se e apanhou-o.
Tinha razão. Era um relógio de bolso antigo. Jake examinou-o, virando-o entre os dedos. O seu pai tinha um igual…
Jake descobriu uma inscrição na parte de trás. O seu olhar ensombrou-se ao ler o que estava escrito ali.
Para o meu amado Richard,
Um pedaço de ouro para assinalar a nossa décima revolução
em volta do Sol juntos.
Com todo o amor sob as estrelas,
Penelope
De repente, Jake sentiu a sala inclinar-se como se, de súbito, uma vida que ele julgava morta há muito voltasse momentaneamente. Cambaleou para o lado, tropeçou no rebordo do anel e caiu com força, mas nem sequer o sentiu. O seu mundo resumia-se ao relógio… e às palavras escritas nele.
— Jake? — Marika correu para ele. Estendeu-lhe a mão para o ajudar a levantar-se.
Ele ignorou-a e continuou a olhar para o relógio na palma da sua mão. Os seus dedos fecharam-se sobre a caixa de ouro. Estava fria e era sólida — e muito real. Ele sussurrou o milagre, receoso de levantar a voz e fazer com que tudo desaparecesse.
— Este relógio é do meu pai.
Jake não tinha qualquer recordação de como acabara num túnel estreito e comprido, escavado grosseiramente na rocha vulcânica. Lembrava-se de ter sido levantado e conduzido com gestos cuidadosos e palavras de aviso. Lembrava-se de mais escadas e de uma laje de pedra que Bach’uuk e Pindor tiveram de afastar. A passagem ficava para lá daquela pedra, um túnel secreto. Bach’uuk indicava o caminho com um pedaço de cristal branco e luminoso erguido na sua mão.
Continuaram em silêncio. Os seus amigos sentiram que Jake se tornara uma poça coberta por um frágil lençol de gelo. Caminhavam com cuidado. Marika mantinha-se ao seu lado, esperando que ele fosse o primeiro a falar.
Jake carregava o relógio de bolso com as duas mãos. Era um peso que ele não conseguia levar apenas com uma mão. Era preciso todo o seu corpo para o carregar.
— O que é que isto quer dizer? — murmurou ele, finalmente, mais para si próprio do que para Marika.
A pergunta era um pequeno grão de areia que, posto em movimento, se tornaria uma avalanche. Porque estava o relógio ali? Como teria ido ali parar? E quando? Teriam o seu pai e a sua mãe estado naquela terra? Ou teria o relógio sido sugado para ali, como Jake e Kady, unicamente por acidente ou acaso? Se os seus pais tinham ali estado, porque é que ninguém lho tinha dito, os tinha mencionado?
As perguntas rodopiavam entre mistérios e o desconhecido.
Jake estremeceu e finalmente deixou uma última questão levantar-se. Debateu-se com ela pois havia demasiada dor e medo à sua volta.
Poderiam os seus pais ainda estar vivos?
Era um assunto perigoso. Se Jake se permitisse acreditar nisso e estivesse errado, seria como perder a mãe e o pai de novo. Jake não sabia se poderia sobreviver a isso.
No entanto…
Olhou para baixo, para o relógio de bolso. Sentiu o seu peso, esfregou o polegar sobre ele. Isto não era a fantasia de uma criança, uma esperança sem substância. Este era o relógio do seu pai… na sua mão.
Jake apertou-o e chegou a uma conclusão. Por agora, aquilo bastava. Não podia saber mais nada. O pai tinha-o avisado para não deixar a sua imaginação tomar as rédeas. Costumava dizer que um verdadeiro cientista pesava as hipóteses contra a realidade testada.
Jake respirou fundo. Podia fazer isso depois.
Tinha encontrado o relógio do seu pai.
Era real.
O que isso queria dizer permanecia desconhecido.
Por agora.
Mais calmo, permitiu que as palavras na parte de trás do relógio o aquecessem como o sorriso terno da sua mãe. Um pedaço de ouro para assinalar a nossa décima revolução em volta do Sol juntos.
A atenção de Jake alargou-se. Começou a notar a água a escorrer pelas paredes. Sentiu o ligeiro cheiro a ovos podres no ar. Enxofre das fendas vulcânicas. A passagem tornou-se mais quente, mesmo fumegante.
Ouviu Pindor dizer a Bach’uuk:
— Devemos estar uma légua dentro da floresta.
Bach’uuk abanou a cabeça.
— Não falta muito agora.
— Estás sempre a dizer isso — queixou-se Pindor.
Jake engoliu em seco e olhou para o relógio de bolso. Usou a unha para o abrir. Sentia-se suficientemente forte agora para o fazer. A caixa do relógio estava abaulada, as dobradiças presas, mas Jake conseguiu abri-lo. O vidro do mostrador não estava em melhores condições que a caixa de ouro. Uma racha irregular atravessava a sua superfície. Os estragos fizeram crescer o medo no seu coração. Como é que o relógio tinha ficado tão danificado?
Porém, o medo depressa diminuiu ao ver o fino ponteiro dos segundos mover-se no mostrador do relógio. Não devia estar a mover-se. O relógio era dos antigos, daqueles a que se tinha de dar corda. Porém, não foi isso o que realmente intrigou Jake e o forçou a voltar à realidade.
O ponteiro dos segundos movia-se lenta e firmemente.
Mas na direção errada.
No sentido oposto.
O ponteiro estava a andar ao contrário!
Antes que ele pudesse refletir no que aquilo significava, Pindor gritou:
— A saída!
Jake tornou-se consciente de um rugido. Bach’uuk levantou mais o cristal e viram uma cascata de água à frente da boca do túnel. Não admirava que o trilho se tivesse mantido secreto. O seu final estava escondido atrás de uma queda-d’água.
Correram juntos para a frente.
Marika olhou para Jake.
Ele fechou o relógio, guardou-o no bolso e abotoou-o cuidadosamente. Manteve a mão sobre o relógio, não querendo separar-se dele. Mas encontrou o olhar de Marika e anuiu. Compreendia o que estava em jogo. Enquanto a guerra estivesse a ser travada em cima, o mistério do relógio teria de esperar.
Ainda assim, lembrou-se do ponteiro dos segundos a rodar e rodar ao contrário. Na sua cabeça, ouviu o clique do mecanismo do calendário de ouro a rodar. Visualizou o baixo-relevo que mostrava a separação da Pangeia.
A chave para todos estes mistérios era uma palavra.
Tempo.
E Jake tinha a certeza de uma coisa.
Estavam a ficar sem ele.