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O DESFILADEIRO DA SERPENTE

A lua cheia recortava o portão oriental. Ao contrário do Portão Quebrado no lado ocidental do vale, este não caíra. Uma escultura de pedra encimava a passagem, negra e agourenta. Formava as curvas sinuosas de uma serpente com duas cabeças, uma a apontar para sul, a outra para norte. Jake tinha visto a mesma forma desenhada no mapa da biblioteca de Balam e também esculpida em ouro no Museu Britânico.

Jake apressou-se pelo trilho, seguindo a jovem batedora romana e um enorme guerreiro Ur chamado Kopat. Marika seguia Jake, assim como Pindor e Bach’uuk. Atrás deles, estendia-se uma longa fila de homens da tribo de Ur, todos armados: arpões, machados de pedra, bolas feitas de pedras revestidas com tiras de couro.

Jake contornou uma rocha que bloqueava o trilho. Numa ravina à frente, uma dúzia de animais de sela aguardava, claramente inquietos. Os cavaleiros acotovelavam-se junto aos animais. A Guarda Montada era constituída por rapazes e raparigas pouco mais velhos que Jake. E o medo fazia-os parecer ainda mais novos.

Kopat desviou-se para o lado e agrupou os homens da tribo de Ur. A jovem batedora romana conduziu Jake e os outros para o seu grupo de cavaleiros.

— Onde está o centurião Portius? — perguntou um dos cavaleiros.

A jovem respondeu concisamente.

— Tem a perna partida. Não está capaz de montar. Os Ur vão tomar conta dele.

— Então quem é que nos vai chefiar? — perguntou outro. Parecia não ter muita esperança nas forças de Kopat com as suas armas grosseiras. Como muitos dos habitantes de Calypsos, não devia ter muita confiança nas capacidades dos Ur, para lá das tarefas domésticas.

A rapariga romana virou-se para Pindor.

— Sem o centurião Portius, temos uma sela vazia.

Ouviram-se murmúrios entre os cavaleiros.

— É o filho de Tiberius…

— Não, Heron não… o outro…

Estamos amaldiçoados…

Pindor fingiu não os ouvir.

A rapariga dirigiu-se a uma montada de aspeto assustador, com uma cicatriz irregular que lhe cegava um olho. Estava afastada das outras e escoiceou um torrão de lama e pedra.

Jake recuou. Se esta era a montada do centurião, não admirava que tivesse partido a perna. A expressão nauseada de Pindor era fácil de ler, mesmo às escuras.

Antes que se pudesse mexer — ou na direção da montada abandonada ou para longe dela — soou um corno atrás deles. O gemido baixo do seu chamamento pôs Jake à beira de um ataque de nervos.

Virando-se, Jake viu que todos os Ur se tinham reunido no trilho mais em baixo. Eram cerca de cinquenta homens. Era um grande número, mas apenas uma fração da aldeia Ur.

Onde estavam os outros?

Kopat estava de pé sobre um grande bloco de pedra com as pernas abertas e algum tipo de concha em caracol junto aos lábios. Soprou outra vez, e a nota longa e sustentada ergueu-se para a lua como um grito queixoso.

E foi ouvido.

Na selva, ouviu-se outro corno. Da sombria copa, uma grande cabeça serpenteante ergueu-se das árvores em direção ao luar. Subiu pelo menos a uma altura de dez andares. Jake reconheceu aquele longo pescoço e a cabeça achatada. Era um brontossauro, um dos gigantes numa terra de gigantes, que começou a deslocar-se pesadamente na sua direção.

Atrás dele, na floresta, outra cabeça ergueu-se… e outra… e ainda outra. Como um relvado cheio de dentes-de-leão, uma manada de brontossauros apareceu diante dos seus olhos. Sete. E todos eles começaram a deslocar-se para diante. O primeiro e mais próximo saiu da floresta e começou a andar pelo trilho acima em direção ao desfiladeiro.

Guerreiros Ur iam montados no seu longo corpo e pendurados nos seus flancos com arneses de corda. Como pulgas num cão. Um bravo guerreiro sentava-se numa sela alta atrás da cabeça do animal, balançando ao ritmo dos passos do brontossauro. Os outros brontossauros seguiam-no, igualmente cobertos de guerreiros.

A rapariga romana gritou para os cavaleiros:

— Montem!

Alguns reagiram à intensidade da sua voz, mas outros pareciam inseguros — receosos de se aventurarem de novo no vale.

Marika puxou Pindor e Jake para o lado.

— Acreditam no que estamos a ver? — balbuciou Pindor, ainda pasmado a olhar para os imensos brontossauros.

Marika puxou-os mais um passo.

— A surpresa do ataque abalará certamente a horda dos grakyls, mas por quanto tempo? O Rei Caveira tem mais demónios assustadores à sua disposição. Piores que os grakyls.

— Mas que mais podemos fazer? — perguntou Pindor.

Marika fitou Jake.

— A nossa única hipótese para uma verdadeira vitória é restaurar o escudo do templo. Sem isso, estamos condenados.

Jake visualizou a pedra esmeralda escurecida, envenenada pelas sombras no seu núcleo.

— Mas como?

— A tua ci-enzia pode ajudar-nos a curar a pedra? Expulsar as sombras do seu coração? Não podes invocar o poder da tua eletra-cidade?

Jake abanou a cabeça.

— Já não tenho baterias. Não tenho como gerar eletricidade. E, mesmo que tivesse, não sei se isso curaria a esmeralda.

Porém, Jake recusava-se a desistir. Passou em revista todas as maneiras possíveis de produzir eletricidade: vento, vapor, carvão, energia geotérmica, solar. Todas estavam para lá das suas possibilidades e certamente para lá do nível de tecnologia existente ali.

Tinha de haver uma resposta. A sua mão deslizou para o bolso e tocou no relógio. Se o seu pai estivesse ali, saberia o que fazer. Mas não estava.

Os dedos de Jake fecharam-se com força à volta do relógio. Poderiam os seus pais ainda estar vivos? Jake não tinha como saber, mas estava consciente de que teria de sobreviver para poder encontrar uma resposta.

— Deve haver uma maneira de expulsar as sombras da pedra — repetiu Marika.

Jake mal a ouviu. Porém, um recanto da sua mente reteve as suas palavras. Elas ficaram alinhavadas à superfície do seu cérebro — expulsar as sombras — ao mesmo tempo que continuava a refletir em todas as maneiras de gerar eletricidade.

Carvão, vento, vapor, nuclear…

De súbito, soube. Ficou tenso — de tal modo que Marika reparou.

— Jake, que se passa?

Ele tinha medo de falar e perder o fio ao seu raciocínio. Reviu-o mentalmente uma segunda vez. Visualizou as aargolas de bronze nos bordões dos anciãos de Ur e os reflexos dançantes nas paredes pintadas. Tinha de fechar os olhos.

— Jake? — insistiu Marika.

Ele calculou o que seria preciso… a inclinação, o ângulo, a distância.

— Seríamos necessários os três — comentou Jake em voz alta.

— Para quê? — perguntou Pindor.

Jake virou-se para os amigos.

— Temos de voltar à pirâmide.

Entretanto, Bach’uuk juntou-se a eles. Tinha estado a ver o seu povo aproximar-se com um brilho de orgulho no olhar.

— Bach’uuk, podes levar-nos de volta ao templo?

Ele anuiu.

— Se quiserem.

— Antes de irmos — acrescentou Jake —, precisamos de algum tipo de armadura.

Marika agarrou-lhe o braço.

— Jake, o que estás a planear? Tens alguma ideia para curar o cristal esmeralda?

— Talvez.

Era uma hipótese remota, mas, se Jake estivesse certo, também explicava a razão por que o Kalverum Rex tinha esperado pela noite para orquestrar o seu ataque. O Rei Caveira não corria riscos desnecessários.

— Como é que o vais curar? — perguntou Pindor. — Com o quê?

— Com a bateria mais antiga e maior da Terra — respondeu Jake.

À medida que ele explicava o seu plano, os olhos de Pindor ensombraram-se.

— Pensas que vai resultar? — perguntou Marika.

Jake não viu nenhuma razão para mentir.

— Não sei.

— E se falhar? E se estiveres errado?

— Então, estaremos condenados. — Jake encolheu os ombros. — Mas, como tu mesma disseste, Mari, de qualquer modo estamos condenados.

— Podem os dois parar de dizer condenados tantas vezes? — resmungou Pindor. Não parecia estar a sentir-se bem.

Jake perguntou:

— Alguém tem um plano melhor?

Ninguém falou.

Jake começou a entrar em detalhes, mas Pindor interrompeu-o.

— O que estás a planear fazer… requer um timing perfeito.

Jake anuiu.

— … e uma manobra de diversão poderia ajudar — acrescentou Pindor.

Antes que Jake pudesse concordar, ele observou os cavaleiros que subiam relutantes para as selas. Tinham expressões que iam da esperança face à aproximação da tribo de Ur ao desespero face ao que tinham pela frente em Calypsos.

Pindor falou com a cabeça ainda virada.

— Jake, disseste que precisavas de três de nós. Será que Bach’uuk pode tomar o meu lugar?

Marika tocou no cotovelo de Pindor.

— Pin, nós precisamos de ti.

Ele afastou-se um passo.

— Vocês precisam de três pessoas. Não de mim. Não é verdade, Jake?

Jake percebeu o tom tenso na voz do amigo. Sabia que não tinha origem no medo, mas na determinação. Pindor não estava a tentar evitar aquela perigosa missão. Ele tinha a intenção de se lançar para um perigo maior.

— Três devem chegar — respondeu Jake.

Pindor acenou com a cabeça. Agarrou no assobio que Jake lhe dera como se fosse um amuleto para dar sorte e dirigiu-se à Guarda Montada.

— Pin! — chamou Marika.

Jake pôs uma mão no cotovelo de Marika.

— Ele sabe o que está a fazer.

Jake lembrou-se do talento de Pindor para a estratégia. Pindor tinha detetado o ponto fraco do plano de Jake e pensara numa maneira de o colmatar. Para que fossem bem-sucedidos, era necessário um timing preciso. E uma manobra de diversão na altura certa podia ser a diferença entre o sucesso e o falhanço.

— Prestem atenção ao som dos cornos! — recomendou Pindor.

A rapariga romana ainda tentou controlar o gigantesco dinossauro cheio de cicatrizes ao mesmo tempo que os outros cavaleiros se agrupavam. Quando Pindor se aproximou do obstinado animal, ouviu alguns murmúrios trocistas atrás de si.

O dinossauro fincou uma pata e esteve perto de esmagar o pé de Pindor. Mas este nem pestanejou. Levantou a palma da mão e pousou-a no pescoço semelhante a couro da montada. A sua outra mão tirou o apito do bolso.

— Fazes isso mais uma vez, Scar-Eye — disse Pindor —, e eu faço o meu próximo par de sandálias com o teu couro escamoso.

O dinossauro balançou a sua cabeça achatada e cravou o olho bom em Pindor. Os dois olharam-se de cima a baixo. O sáurio foi o primeiro a pestanejar.

Pindor deslocou-se rapidamente, pôs um pé nos estribos e içou-se para a sela. Moveu-se como se já tivesse feito aquilo milhares de vezes — e Jake pensou que o amigo fizera precisamente isso, mais que não fosse na sua cabeça.

Virando-se na sela, Pindor dirigiu-se aos seus companheiros da Guarda Montada.

— De que é que estão à espera? Temos de salvar Calypsos.

A batedora romana olhou para ele mais uns segundos, depois correu para a sua própria montada e saltou para a sela.

Com um aceno e gritos de encorajamento, os cavaleiros começaram a subir o trilho, ao mesmo tempo que as forças de Ur nos seus brontossauros. O cortejo subiu devagar em direção ao gigantesco arco esculpido na forma de uma serpente com duas cabeças.

Jake virou-se para Marika e Bach’uuk. Agora, eram só os três. As suas dúvidas agudizaram-se. Como podiam esperar derrotar o Rei Caveira sozinhos?

Contudo, os olhos de Marika brilhavam de esperança e Bach’uuk refletia o seu olhar com uma determinação estoica. Jake foi buscar força aos seus amigos. Levantou um braço e apontou para o trilho ao longo da ravina.

— É melhor despacharmo-nos.