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ÚLTIMA INVESTIDA

Protegidos com armaduras de bronze que Bach’uuk arranjara na loja do ferreiro na aldeia de Ur, iniciaram o caminho de regresso à pirâmide. Pareceu demorar três vezes mais do que anteriormente. A pressão do tempo tornou-se de tal forma aguda que Jake jurou que quase podia sentir o Sol a abrir caminho à volta da Terra e a subir para um novo dia.

Só o peso da couraça lembrava a Jake o fardo da sua responsabilidade. A sua preocupação aumentava a cada pesado passo que dava.

E se eu falhar?

E se eu estiver errado?

Por fim, Bach’uuk conduziu Marika e Jake de volta aos níveis mais baixos da pirâmide, e eles deram início a uma rápida ascensão para a câmara do coração de cristal. Ao passar pela sala com o calendário maia de ouro, os olhos de Jake passaram em revista a estranha língua nas paredes, o mapa da Pangeia e as duas rodas dentadas no chão. A sua mão tocou no relógio no seu bolso. Ele queria parar — os seus pés chegaram a abrandar —, mas o enigma teria de esperar. Forçou-se a subir os degraus de pedra para a sala em cima.

A câmara principal não tinha mudado. A estranha pressão continuava a pulsar a cada volta do coração de cristal com três camadas. Os estranhos glifos giravam e rodavam em milhares de combinações enquanto a esfera pairava no centro do espaço abobadado. Sob a esfera maciça, duas mais pequenas brilhavam — uma com um rico carmesim, a outra com um vibrante azul-prateado. A esfera esmeralda ficara tão escura que quase parecia preta.

Jake ajoelhou-se para a ver mais de perto, enquanto Marika espreitava sobre o seu ombro.

— Achas que chegámos demasiado tarde? — perguntou ela.

Jake estudou a pedra.

— Não sei.

Sombras escuras rodopiavam no núcleo da esfera esmeralda, num turbilhão pastoso que gritava corrupção e morte. Não tinham muito tempo.

Jake levantou-se e olhou para a entrada principal da pirâmide. O túnel inclinava-se para cima, negro como breu. A qualquer momento, esperava ver o demoníaco grakyl surgir por ele.

— Vamos — disse ele, dirigindo-se para a boca do túnel, virando-se depois para Marika. — Tu ficas aqui na câmara. Eu vou com Bach’uuk para o interior do túnel. Sabes o que tens de fazer?

Os olhos de Marika estavam arregalados de medo — algum dele por Jake.

— Tem cuidado.

Jake acenou com a cabeça, mas o seu plano estava longe de ser cuidadoso. Quando ele começou a afastar-se, Marika correu para ele e abraçou-o com força. Depois, deixou-o ir.

Jake corou. Abriu a boca, mas não encontrou as palavras.

— Vai! — disse ela, e empurrou-o. — De que é que estás à espera?

Jake pestanejou. Ainda estava sem palavras. Virou-se e apressou-se pelo túnel inclinado. O coração martelava no seu peito, mas de uma maneira boa.

Quando já ia a meio e quase fora da vista de Marika, parou de novo e disse a Bach’uuk:

— Tens de ficar a postos aqui. Tenho de continuar sozinho.

Bach’uuk aproximou-se dele e agarrou no antebraço dele num típico aperto de mão da tribo de Ur. Jake retribuiu o cumprimento. Todos eles estavam a correr um grande risco, um risco que lhes poderia custar a vida.

Jake percorreu o último troço do túnel sozinho. A passagem escura ia clareando à medida que se aproximava da abertura mais à frente. Um céu coberto de estrelas enchia a abertura redonda da pirâmide.

Abrandou o passo — e por uma boa razão.

Formas sombrias obscureciam as estrelas. Jake ouviu silvos e guinchos, além do bater de asas e raspar de garras na pedra. A horda de grakyls concentrava-se mesmo junto da abertura.

Jake continuou a avançar até um estranho formigueiro percorrer o seu corpo. Os pelos dos seus braços levantaram-se. Sentira o mesmo quando entrara no túnel pela primeira vez, da mesma maneira que o sentira quando passara pelo Portão Quebrado, no que agora lhe parecia uma eternidade atrás. Só que agora o formigueiro era apenas um murmúrio da sua força anterior. Era tudo o que restava do escudo, mas ainda parecia suficientemente forte para manter a horda de grakyls fora do templo. Pelo menos, Jake esperava que assim fosse.

Limitou-se a ficar à espera, mergulhado naquele formigueiro.

Jake olhou para o vale. Daquele ponto elevado, podia ver tudo até à muralha ocidental. O céu já começara a clarear. Não havia tempo a perder.

Jake pôs as mãos em concha à volta da boca.

— Olá! — gritou.

Em resposta, alguma coisa muito grande caiu de cima da entrada e aterrou no degrau abaixo da abertura. A forma escura balançou-se e brandiu uma longa lâmina negra que parecia um pedaço de obsidiana vítrea. Asas abriram-se e cortaram o céu.

Um senhor dos grakyls.

Jake deixou-se cair sobre os joelhos, assegurando-se que se mantinha dentro do formigueiro do escudo. Olhos negros e estreitos fitaram-no.

— Eu sou Jake Ransom — gritou ele, esperando que a monstruosidade com cara de morcego o compreendesse. — Um dos recém-chegados.

O senhor dos grakyls subiu o degrau para ficar no limiar da entrada. Jake estava suficientemente próximo para ver as unhas rachadas e amarelas das suas garras e o focinho achatado. O grakyl ergueu a espada e apontou-a ao peito de Jake.

Jake estremeceu na sua armadura, mas tinha de ganhar tempo. Então levou a mão ao seu flanco e desapertou a couraça de bronze. Deixou-a cair com estrondo sobre a pedra num claro sinal de rendição.

Esta última ideia fora de Marika. Ao olhar para o gume da espada do grakyl, Jake começou a duvidar da sabedoria da sua estratégia. Mas agora estava comprometido. Não havia como voltar atrás.

Jake levantou os braços.

— Rendo-me — gritou ele à figura monstruosa. — Mas só ao teu mestre! Só ao Kalverum Rex!

O grakyl aproximou-se dele. As suas narinas fendidas abriam-se e fechavam-se. Para lá das suas asas, o céu a oriente continuava a clarear à medida que o nascer do sol se aproximava. A madrugada era o prazo limite fixado pelo Rei Caveira para a rendição de Jake e Kady.

Não tinham mais tempo.

— Desisto! — gritou Jake. Tossiu para aclarar a garganta. O seu peito estava tomado de medo. Porém, repetiu o seu ultimato. — Mas só me rendo ao Rei Caveira!

O senhor dos grakyls estudou Jake mais um momento — depois deu meia-volta. Um grito ensurdecedor irrompeu da sua execrável boca e ecoou pelo vale.

O seu chamamento foi repetido pelos outros grakyls. Em breve, todo o vale ecoava com aqueles gritos horríveis. A mensagem estava a ser espalhada.

Mas seria respondida?

Sim ou não.

Ambas as respostas aterravam Jake.

A espera estendeu-se por um período agonizante. O coração de Jake subiu-lhe à garganta e ficou a bater ali. Para piorar tudo, sentiu o formigueiro esmorecer na sua pele ao ajoelhar-se na abertura da pirâmide. O escudo quase desaparecera.

O grakyl mantinha a distância nos degraus exteriores, mas por quanto tempo mais?

Quanto tempo me resta?

Jake estudou o céu. A leste, um clarão róseo filtrava-se para cima do horizonte. O nascer do sol aproximava-se rapidamente. O prazo limite dado pelo Rei Caveira estava quase a passar. O medo de Jake aumentou. A sua preocupação por Kady pesava como uma pedra fria na sua barriga.

Tudo o que podia fazer era esperar.

Dentro de momentos, os primeiros raios de sol brilhariam sobre a entrada da pirâmide. Apesar do coração a martelar, Jake lembrava-se do significado de tal orientação, uma coisa que tinha aprendido com o seu pai. Todos os templos maias estavam construídos para saudar a primeira luz do novo dia. E por isso as grandes catedrais de pedra da Europa também orientavam as suas portas da frente para leste.

Ao ajoelhar-se, Jake pensou se essa tradição teria a sua origem aqui, nesta precisa estrutura. Antes de poder refletir mais sobre esse mistério, os gritos da horda dos grakyls pararam. O silêncio súbito foi sentido como se um cobertor tivesse sido lançado sobre todo o vale.

Preocupado, Jake levantou-se. Lá fora, nos degraus, os grakyls curvaram-se e baixaram a cabeça. As suas asas estavam fechadas nas costas. Jake avistou alguma coisa que cruzava o céu. A amplitude das suas asas estendia-se incrivelmente longe — e aumentava a cada batimento do coração de Jake.

Como um avião jumbo sáurio.

Como podia uma coisa tão imensa manter-se no ar? Parecia impossível. E o que fazia a sua aproximação especialmente arrepiante era o silêncio absoluto. Planou em direção ao templo sem um som, como se fosse mais sombra que substância.

A criatura desceu cada vez mais baixo até se tornar uma silhueta escura deslizando sobre o cimo das árvores do Bosque Sagrado. Parecia o maior de todos os dinossauros alados, o Pteranodon. Ao voar para a pirâmide, a copa da floresta rumorejou na sua esteira como se as próprias árvores se arrepiassem.

Então, de súbito, virou-se e disparou para cima, tão alto e tão velozmente que Jake deixou de o ver. Os músculos das suas pernas crisparam-se. Esteve perto de sair da sombra da entrada para o continuar a ver. Em vez disso, retesou todo o corpo e manteve a sua posição.

E ainda bem que o fez…

Um momento depois, o pterossauro aterrou ao lado da pirâmide, cobrindo metade dos degraus. Os grakyls dispersaram para os lados. Um ficou esmagado debaixo de uma pesada pata. Contorcendo-se e gritando, morreu.

Jake forçou-se a ficar à entrada. Tudo dependia de ele se manter no seu lugar.

O pterossauro baixou o pescoço e esticou as asas como se estivesse a abraçar o templo. Embora a criatura fosse maciça, Jake teve dificuldade em vê-la claramente. As sombras agarravam-se à sua forma, fluindo sobre o seu corpo.

A sua cabeça estreita e comprida acabou pousada a apenas alguns metros à esquerda da entrada. Revestida de sombras que pareciam a juba de um leão, a cabeça acabava num focinho crocodiliano com dentes curvos e aguçados. Jake tinha visto fósseis de Pteranodon suficientes para saber que aquele não era um pterossauro vulgar. Para já, os pterossauros não tinham dentes.

Porém, foram os olhos que realmente levaram Jake a cerrar os maxilares. Duas orbes pretas olhavam para Jake, como diamantes negros polidos. Eram túneis vazios e sem fim para lugares onde gritos ecoavam para sempre e o sangue fluía como rios.

Mas mesmo isso não era o pior.

Da parte de trás do pescoço sáurio, um coágulo de sombras pingou sobre as escadas do templo. Os outros grakyls caíram, lutando uns com os outros para se afastarem do seu caminho. Nos degraus, a forma endireitou-se e tomou a figura de um homem.

Era enorme, tinha pelo menos dois metros de altura. Usava uma armadura negra que o cobria da cabeça aos pés. Na cabeça tinha um elmo com um par de chifres, mas, ao contrário dos elmos viquingues, estes chifres eram torcidos e retorcidos, como se tivessem brotado no crânio de uma besta que toda a sua vida tivesse sido torturada. A figura subiu os degraus, deslocando-se com uma determinação deliberada na direção de Jake.

Jake tentou distinguir-lhe as feições, mas sob o elmo só havia sombras. Todavia, Jake sabia quem era.

Kalverum Rex.

O Rei Caveira.

À medida que a forma negra se aproximava da entrada, Jake apercebeu-se de um erro. O Kalverum Rex não usava armadura. O que cobria o seu corpo eram sombras densas. Elas fluíam sobre a sua forma, brilhando como um óleo negro sobre a pele. Porém, em vez de ondearem e flutuarem, as sombras aderiam fortemente ao seu corpo, como se a escuridão tivesse medo do que estava oculto no seu coração e tentasse esconder o horror do mundo.

Para o Rei Caveira, as sombras eram a sua armadura.

Embora não tivesse olhos, Jake sabia que o demónio olhava diretamente para ele. A sua pele arrepiou-se com uma comichão insuportável que não tinha nada que ver com o escudo do templo. Queria correr — e continuar a correr. Porém, Jake não se mexeu. Mais do que a coragem, o terror manteve-o imóvel.

O Rei Caveira subiu para o degrau de cima e elevou-se no limiar da entrada. Jake inclinou-se quando um braço se esticou para ele. Ele sabia que morreria com um único toque.

A mão aproximou-se à sua procura, cautelosa, como se estivesse a testar águas desconhecidas. Ao atravessar o escudo enfraquecido, um fogo esmeralda dançou sobre as pontas dos dedos negras e removeu as sombras. Saindo da escuridão, surgiram dedos cobertos de escamas cinzento-esverdeadas com garras compridas e amarelas.

Nenhum homem tinha mãos como aquelas — pelo menos nada que ainda fosse humano.

Uma onda de satisfação percorreu as sombras que cobriam o Kalverum Rex. Ele sabia que o escudo já não tinha força para o parar. Tudo o que se encontrava entre o Rei Caveira e o coração do poder do templo era um rapaz de treze anos do North Hampshire, Connecticut.

Sabendo isso também, Jake deu um primeiro passo assustado para trás.

A satisfação de Kalverum deu lugar a um divertimento sinistro. Com o escudo em baixo, nada o podia parar. Jake não tinha para onde fugir.

Fluíram palavras que gelaram Jake até aos ossos.

— Vem a mim…