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FOGO E SOMBRAS
Qualquer pessoa no seu juízo perfeito fugiria quando confrontada com uma torre de sombras. Mas Jake não se mexeu. O Rei Caveira deu outro passo para a entrada. Mais sombras recuaram do seu braço, revelando escamas e uma crista de espinhos.
Jake receava o que mais seria revelado, o que mais as sombras escondiam. Mas não podia voltar as costas, preso entre o horror e o fascínio. Porém, havia limites para o que a curiosidade podia aguentar. Finalmente, Jake desviou os olhos das sombras.
O que veio a revelar-se um erro.
O seu olhar caiu sobre a couraça da armadura de bronze que tinha abandonado na entrada. Ao mesmo tempo, o pé esquerdo de Kalverum esbarrou nela. A armadura ribombou com um som vibrante, atraindo a atenção do monstro para o chão.
O Kalverum parou. Olhou para baixo, depois para Jake e de novo para baixo. A sua atitude era de cautela e desconfiança. Jake reteve a respiração. Depois o Rei Caveira fez o que Jake temia. Virou-se para o lado e olhou sobre o ombro para leste, onde o Sol começava a surgir no horizonte. Os primeiros raios do novo dia cintilaram e apontaram para a pirâmide.
Todo o corpo do Rei Caveira se retesou.
— Miúdo esperto…
O demónio baixou-se e agarrou na couraça.
— Não! — gritou Jake e tentou agarrá-la também.
Mas o Kalverum moveu-se com a velocidade nascida das sombras, um tremular da escuridão contra o novo dia. Chegou primeiro à couraça e agarrou-a.
Jake viu toda a esperança ser-lhe arrebatada. O seu coração afundou-se com o falhanço — mas ele esqueceu uma coisa, uma coisa vital e importante.
Ele não estava sozinho.
Ao longo do vale, uma explosão de sons saudou o nascer do sol. Soaram alto e claramente, ecoando pelo vale. As cornetas romanas retiniram e os cornos de Ur retumbaram. A cacofonia soava como uma legião de milhares.
Pindor!
O seu amigo tinha vindo com o que restava da Guarda Montada e o exército dos Ur — e, como prometido, Pindor fê-lo saber.
A toda a volta da pirâmide, os grakyls levantaram voo como um bando de corvos espantados de um milheiral. Até o Rei Caveira se virou para norte a fim de avaliar aquela nova ameaça.
Era toda a distração de que Jake precisava.
Saltou para a frente e agarrou a peça de bronze da armadura do punho de sombras do Rei Caveira. Caindo sobre um joelho, Jake virou a superfície polida da couraça, brilhante como um espelho, na direção dos primeiros raios de sol. Captou a luz, virou-se de lado e dirigiu o reflexo para a boca do túnel atrás dele.
— Agora! — gritou Jake.
Muito abaixo na passagem inclinada, a luz do Sol refletida iluminou Bach’uuk. Este levantou o escudo da armadura para a luz. O escudo faiscou tão intensamente como um pedaço de sol, o que de facto era. Ele inclinou-o, refletindo o brilho para mais longe no túnel — para Marika.
Resultaria?
Marika tinha dado a Jake a ideia, a maneira de livrar a pedra esmeralda das sombras venenosas e possivelmente reativar as barreiras protetoras do vale. O plano tivera origem na sua afirmação: deve haver uma maneira de expulsar as sombras da pedra. A solução era óbvia. Qual era a melhor maneira de expulsar uma sombra?
Projetando luz sobre ela.
Também nessa altura, Jake andava a pensar numa maneira de usar a eletricidade para recuperar a pedra, uma maneira de fundir a ciência moderna com a alquimia da Pangeia. Com as baterias da lanterna gastas, ele precisava de uma nova fonte de energia. E qual era a maior fonte de energia do mundo? A resposta levantava-se no céu todos os dias, aquecendo a Terra.
O Sol.
Até o pai de Marika realçara a conexão entre os cristais e a luz do Sol. No Astromicon, ao observar a dança dos cristais através das fendas na cúpula iluminadas pelo Sol. As suas palavras ficaram com Jake.
Toda a alquimia começa com o Sol.
Por isso, Jake depositava a sua esperança no novo dia, no nascer do sol. Ele queria descobrir uma maneira de refletir o seu brilho no coração do templo, para expulsar as sombras da pedra e usar a energia solar para reativar o cristal. O problema era levar essa energia para ali.
As argolas de bronze nos bordões dos anciãos fizeram Jake pensar.
Os espelhos refletem a luz.
Tudo o que ele tinha de fazer era transferir a luz da manhã de um espelho para o próximo, de Jake para Bach’uuk para Marika. Ela poderia então refletir a luz do Sol para o coração da pirâmide e banhar o cristal escurecido no brilho do Sol.
Mas funcionaria?
Todos estes pensamentos passaram pela mente de Jake quando soou o primeiro corno. Ele agarrou firmemente a couraça quando a horda dos grakyls se levantou perante o desafio do exército de Pindor. No túnel, Bach’uuk estava banhado pela luz do Sol e refletia o seu brilho para o coração da pirâmide.
Mas também, pelo canto do olho, Jake viu o Rei Caveira. Kalverum lançou-se contra ele.
Então, o tempo parou. Jake viu o pai sentado debaixo de uma árvore a falar-lhe de Isaac Newton, a explicar-lhe como o cientista descobriu a gravidade na queda de uma maçã. Nessa época, o pai dissera a Jake que a maior dádiva da mente humana era a capacidade para fazer uma pergunta, uma palavra. Toda a história humana podia ser resumida a essa única pergunta.
Porquê?
As palavras do pai ecoavam em Jake agora.
A descoberta da verdade é o que todos nós procuramos. E é o homem bom que fica firme por trás da verdade e a defende com a sua vida.
Assim, quando o Rei Caveira atacou, Jake não vacilou. Banhado pela luz do Sol, agarrou na couraça firmemente. Ele devia acreditar que estava certo. Mesmo que isso lhe custasse a vida.
Garras procuraram a sua garganta. Unhas tocaram o seu pescoço e queimaram a sua pele, fazendo bolhas ao tocá-la.
Então, o formigueiro no seu corpo explodiu de súbito numa explosão esmeralda com uma força ofuscante. A explosão projetou Jake para trás, para o túnel, como se o tivessem empurrado. Kalverum foi lançado para o outro lado, pelos degraus da pirâmide abaixo.
Jake aterrou com força de costas. A couraça foi arrancada das suas mãos e rolou com estrépito pela passagem inclinada. Jake arquejou por ar e lutou para se pôr em pé e voltar para a entrada.
Sentiu a pressão do escudo ao aproximar-se dela. Mesmo a um metro de distância, os pelos nos braços de Jake levantaram-se com a sua energia. Ele empurrou-se o suficiente para ver os degraus de baixo da pirâmide. O Rei Caveira olhava para cima, para Jake, com os punhos fechados. O ódio pulsava da sua forma demoníaca.
Jake sentiu uma tempestade crescer dentro daquela concha de escuridão, disposta a magoar-se contra o escudo reativado. Mas um trovão rugiu sobre a sua cabeça. Tanto Jake como Kalverum viraram-se para o céu.
Quando o estrondo do trovão se repetiu, surgiu um arco de energia, um fogo esmeralda sobre o vale. A energia parecia incendiar as cristas vulcânicas. Espalhou-se pelo céu como uma aurora boreal.
O escudo! O escudo estava a formar-se de novo sobre o vale!
Contra este pano de fundo ardente, a horda de grakyls fugia em formações irregulares.
Então a tempestade de relâmpagos começou verdadeiramente, crepitando com explosões ainda mais fortes. Um raio bifurcado caiu do céu e gelou um dos grakyls no meio do ar. Então um relâmpago verde disparou para o céu, levando o grakyl com ele. A besta foi arrancada do vale e arremessada pelo ar.
Outros raios caíram, atingindo alguns dos grakyls com tanta força que eles caíram mortos no chão. Mas a maioria foi agarrada e lançada para fora do vale com tanta violência que rapidamente desapareceram.
Nos degraus em baixo, o Rei Caveira reconheceu que a maré tinha mudado. Voltou a olhar para Jake. Pela primeira vez, Jake viu os seus olhos. Eram feitos de chama negra. Jake imaginou o fogo a subir de um núcleo de pedra-de-sangue pura.
Era como olhar para os olhos de alguma coisa antiga e maligna, alguma coisa muito mais velha que qualquer mestre corrompido de Calypsos. Atrás daquele olhar negro, escondia-se a besta sem nome que desde sempre atormentava pesadelos e sombras errantes e lugares escuros, alguma coisa que estava à espreita nas franjas da humanidade desde o início do tempo.
Jake sentiu um grito preso na garganta.
Depois, aquele olhar terrível afastou-se. O Rei Caveira desceu os degraus para a sua sombria montada e saltou para a sela alta. Asas elevaram-se como grandes lençóis de noite. A besta estendeu o seu corpo maciço e subiu para o céu.
Jake ficou a olhar enquanto a montada voava em círculos no céu com o poderoso batimento das suas asas. Os relâmpagos crepitavam à volta do cavaleiro e da montada, apunhalando as sombras. Ao contrário dos grakyls, o Rei Caveira possuía alguma alquimia que impedia que fosse imediatamente expulso do vale. Mas pela rapidez da subida, Jake supôs que essa proteção não duraria muito. A forma escura da besta lutou por céus mais claros e subiu mais.
Com um último impulso, o Rei Caveira ultrapassou o escudo com uma explosão de fogo verde e desapareceu.
Tinha acabado.
Porém, Jake pouco alívio sentiu. Continuava frio e trémulo — e sabia porquê.
Mesmo antes de o Rei Caveira se ir embora, Jake sentira uma promessa feita sem palavras: aquilo não tinha acabado entre eles. Nesta cúspide de um novo dia, em que a luz e a escuridão se equilibram, Jake escolhera ficar na luz. E deste momento em diante, a escuridão estaria a observá-lo, esperando que ele escorregasse.
Jake podia ter vacilado e perdido toda a coragem, mesmo com a vitória tão próxima. Porém, ele lembrara-se de uma coisa vital e importante.
Ele não estava sozinho.
Bach’uuk veio a correr do coração da pirâmide. Marika vinha com ele. Ela agarrou na mão de Jake, calorosa e radiante. Jake pôs um braço à volta de Bach’uuk. Ele precisava da solidez deles para se lembrar de que o mundo era muito mais que sombras.
Juntos, ouviram as aclamações de alegria vindas da cidade.
— Conseguiste — exclamou Marika.
— Nós conseguimos — acrescentou Jake, mas os seus lábios recusaram-se a acrescentar o que ele bem sabia ser verdade.
Por agora.
Não demorou muito para que os céus ficassem livres do inimigo. Numa questão de minutos, restavam apenas reflexos do fogo verde. Depois, mesmo esses desapareceram e ficou apenas um amplo céu azul.
— Devíamos voltar para a cidade — disse Marika finalmente. Levantou um braço e testou o escudo à frente deles. Sussurros de energia esmeralda dançaram na ponta dos seus dedos.
— Podemos sair por aqui? — perguntou Jake.
— Penso que sim. Devemos poder passar para fora.
Marika deu um passo em frente e arrastou Jake com ela. Jake sentiu o formigueiro percorrer o seu corpo — depois passaram e saíram da sombra para a plenitude da manhã.
Bach’uuk seguiu-os.
Curioso, Jake recuou para a entrada. O escudo empurrou-o, crepitando com um fogo feroz. Tinha-os deixado sair, mas não ia deixá-los regressar.
Felizes por o coração da pirâmide estar em segurança, o trio apressou-se pelos degraus de pedra e alcançou o trilho que atravessava o Bosque Sagrado. Não tinham dado mais que uma dúzia de passos pelo trilho, quando foram cercados.
Ele reconheceu a mistura de equipamento nórdico e vestuário romano — estavam maltratados, ensanguentados e esfarrapados.
— Jake!
Virou-se e viu Kady correr para a frente. Claro, ela não tinha ido para longe. Ela devia ter pensado que Jake estava preso dentro da pirâmide todo aquele tempo.
Jake largou a mão de Marika e correu para a irmã. Ela fez o mesmo. Chocaram um com o outro. Kady abraçou-o com força. Ficaram em silêncio pelo tempo de uma respiração, permitindo a si próprios serem apenas irmão e irmã, deixando que o calor da família fizesse desaparecer o resto dos seus medos.
— Pensei… não sabia… — disse Kady, apertando-o com tanta força que ele não conseguia respirar.
— Eu sei — arquejou ele. — Eu também.
Ela afastou-se e olhou para ele com ar severo.
— Nunca mais faças isso!
— Faço o quê?
Ela pareceu perdida, sem saber o que responder. O seu medo era inominável. Conseguiu articular um exasperado «Pregar-me um susto desses».
Mas Jake sabia que as palavras não conseguiam exprimir o que ela sentia. Ele sentia-se da mesma maneira, num turbilhão de emoções que não podiam ser contidas em palavras. Era alívio e terror, caos e segurança, felicidade e lágrimas. Era tanto a coisa mais penosa quanto a mais maravilhosa.
Era simplesmente família.
Com um último abraço, separaram-se. Toda a gente estava a ver. Porém, Jake manteve-se junto dela. Meteu a mão no bolso e tirou o relógio de ouro.
— Encontrei isto — disse ele, voltando a falar na sua língua, embora fosse precisa concentração.
O rosto de Kady franziu-se, ligeiramente curioso — depois descontraiu e refletiu uma série de emoções, usando cada músculo da face. Choque, descrença, assombro.
— Isso é…? — Ela interrompeu-se, sufocando, incapaz de dar voz aos seus pensamentos.
— Sim. — Ele virou o relógio e mostrou-lhe a inscrição.
Ela inclinou-se para mais perto e leu cada palavra. Quando levantou o rosto, tinha lágrimas nos olhos.
— Quando… onde encontraste isto?
Jake não pensava que fosse a altura ideal para lhe falar do mapa da Pangeia e de tudo o que tinha descoberto e aprendido no interior do grande templo, mas apontou para a pirâmide.
— Ali.
Ela virou o olhar para os degraus que levavam à abertura redonda. As suas sobrancelhas arquearam-se.
— Mas como? O que é que isso quer dizer?
— Não sei.
Pelo menos para já, acrescentou ele em silêncio.
Kady fitou o vazio, tentando perceber as implicações da descoberta do relógio naquele lugar. Jake calculou que a sua própria expressão não fosse muito diferente.
Jake manteve-se em silêncio. Não tinha palavras que pudessem aliviar o seu coração. Era preciso tempo para absorver o choque.
Talvez sentindo a angústia de Kady, Heronidus afastou-se da fileira dos romanos. Coxeava da perna direita e o lado esquerdo do rosto tinha um terrível golpe que quase atingira o olho. Porém, antes que Heronidus pudesse falar, um novo som de cornos e cornetas soou do outro lado da cidade. Era um som triunfante.
— Quem é? — perguntou Heronidus, inclinando a cabeça a ouvir.
— Pindor — respondeu Marika com um sorriso de orgulho. — A comandar as forças de Ur.
Heronidus olhou para ela, incrédulo.
— Se não sabes, diz que não sabes.
Afastou-se, pondo gentilmente um braço por cima dos ombros de Kady e levando-a consigo. Ela encostou a face ao seu ombro, precisando do consolo que Jake não lhe podia dar. Parou um momento para olhar para trás, para o irmão, e dirigiu-lhe um sorriso triste e raro.
Pela primeira vez em muito tempo, Jake reconheceu quão bonita a irmã era. Viu algo para lá do lip gloss, da sombra dos olhos e do cabelo perfeito (que neste momento estava em ruínas e com bocados de folhas presos nele). Por um breve momento, ele viu quem ela podia tornar-se. E uma calorosa sensação de orgulho percorreu-o. Com um vestígio de mágoa. Nessa mesma e breve expressão de afeto, ele reconheceu mais uma coisa: um fantasma do sorriso da sua mãe, brilhando de geração em geração.
Juntos, voltaram para a entrada de Calypsos. Já se desenrolavam tímidas celebrações. Embora ninguém soubesse quem os tinha salvado no último minuto, os céus vazios e os relâmpagos brilhantes deram-lhes a conhecer a coisa mais importante: estavam em segurança.
Os habitantes da cidade saíram das caves e dos sótãos bafientos, onde se tinham escondido durante o ataque. Sinos tocaram, indicando que o perigo tinha passado. Ao andar pelas ruas, Jake ouviu chamamentos e gritos. Mas também lágrimas e soluços. Jake só tinha passado por um corpo — e era o de um grakyl, que jazia destroçado na rua. Mas havia certamente outras baixas mais perto de casa e do coração. Quantos tinham morrido? Podiam demorar dias a descobrir essa resposta.
Também iluminou o seu coração ver os cavaleiros da Guarda Montada percorrerem a cidade, levando mensagens, espalhando a boa nova, reagrupando as suas forças dispersas. O céu também era atravessado por Raz alados. O Povo do Vento estava de novo no ar, vigilante para qualquer sinal de um ataque secundário.
Mas Jake sabia que este não viria. Pelo menos não tão cedo.
À sua frente, apareceu o castelo de Kalakryss. O pátio estava mergulhado no caos. Pessoas e animais enchiam o lugar. Já estavam a ser levantadas tendas para alojar e cuidar dos feridos.
Jake quase foi derrubado por um enorme dinossauro cheio de cicatrizes que atravessou a rua e os portões atrás dele. Foi preciso um segundo olhar para reconhecer o olho cego da montada — e o espantalho que a montava.
Era Pindor em cima do dinossauro de aspeto feroz chamado Scar-Eye.
— Jake! Mari! Bach’uuk! — Pindor fez parar a sua montada abruptamente e escorregou da sela com quem desce de uma cadeira de repouso. Todo e qualquer medo que ele pudesse ter sentido antes dissipara-se com o entusiasmo do momento. Pindor correu para eles e abraçou-os, deu palmadinhas nas costas e apertou mãos — por vezes, tudo ao mesmo tempo.
— Tu expulsaste-os! — exclamou Pindor. — Conseguiste reativar o escudo!
O seu grito atraiu muitos olhares para eles.
Heronidus coxeou para a frente.
— Pin, és tu?
Ele olhou para o irmão de cima a baixo. Sorriu, tentando arvorar uma expressão de orgulho, que lhe saiu um pouco estranha. Era raro para Pindor ofuscar o seu irmão mais velho.
Mas as palavras gritadas atraíram duas outras atenções.
O centurião Gaius abriu caminho pela crescente multidão à volta deles. Jake sentiu uma onda de alívio. O centurião tinha sobrevivido ao ataque dos grakyls ao parque. Embora ensanguentado e com um braço ao peito, abriu caminho para o homem que se encontrava atrás dele.
O ancião Tiberius apoiava-se num bordão. A sua perna estava enfaixada do tornozelo até meio da coxa. Claramente, cada passo que dava fazia-o sofrer. Mas a sua voz era tão dura e firme como sempre.
— O que é que se passa com o escudo? — perguntou ele.
Pindor fez um movimento para correr e abraçar o pai, mas conteve-se. Já não era um rapazinho. Bateu com o punho no peito na saudação romana.
— Pai, senhor, foi Jake Ransom que conseguiu reativar o escudo em volta do vale.
Tiberius virou o seu olhar severo para Jake.
— Isso é verdade?
Jake anuiu, mas acrescentou:
— Não o fiz sozinho. — Fez um gesto em volta para incluir Pindor, Marika e Bach’uuk. — Fomos todos nós.
Tiberius olhou para eles, avaliando-os. Em seguida, virou-se e dirigiu-se para o castelo. Sem uma palavra ou gesto, ficou claro que o deviam seguir.
— Quero saber mais do que se passou em privado — disse ele. — Os mestres também quererão saber o que foi feito.
Marika pôs-se ao lado de Jake.
— Abram caminho! — gritou Gaius.
Na confusão, Marika deu por si junto do pai de Pindor e puxou-lhe a manga.
— Ancião Tiberius, o que quer dizer com mestres? — O medo fazia a sua voz tremer. — Foi o mestre Oswin quem nos traiu.
Jake aproximou-se com uma preocupação crescente. Depois de tudo o que acontecera, teria o traidor sobrevivido?
Tiberius acenou.
— Todos nós estamos bem cientes disso. O teu pai e o mestre Zahur já informaram o conselho da sua traição.
— O meu pai… — Marika agarrou-se ao braço de Jake para não cair. — Ele está vivo?
Reparando na sua aflição, Tiberius abrandou o passo e sossegou-a.
— Claro que está vivo. Oswin lançou um feitiço de sombras sobre os outros dois mestres, fez cair o seu espírito na insensatez e fechou-os numa das caves lá em baixo. Uma vez acordados, eles conseguiram escapar.
Por esta altura, tinham chegado às portas de madeira do salão principal. Lá dentro, Marika teve a prova da história do ancião.
— Mari! Graças a todas as estrelas…
Balam tinha-se mantido de lado com Zahur. Virando-se para a confusão que se instalou à entrada, tinha avistado de imediato a sua filha e correra para ela. O alívio que se ouvia na sua voz era igual ao da filha um momento antes. Ele também mudara. O seu habitual autodomínio fora-se. Círculos escuros rodeavam os seus olhos. Porém, o seu rosto iluminou-se e abriu-se como um sol entre nuvens negras. Ele abraçou Marika com força.
— Pensei que tinhas morrido — murmurou ela junto ao seu peito.
Jake via o seu encontro com emoções contraditórias. Em grande parte, alegrava-se, mas não podia ignorar uma ponta amarga de inveja. Ele faria qualquer coisa para ter o seu próprio pai de volta da morte.
— Não penso que Oswin nos fosse matar — consolou-a Balam. — Quando o pôde fazer, não o fez. Penso que talvez uma parte dele ainda fosse leal à sua própria maneira retorcida.
Zahur juntou-se a eles. O egípcio tinha uma opinião diferente sobre o assunto.
— Ou talvez nos tivesse mantido vivos para poder regozijar-se.
Balam franziu o sobrolho a esta afirmação, claramente preferindo a sua explicação. Porém, era fácil ver que o pai de Marika fora profundamente ferido e abalado pela traição de um amigo chegado.
Jake afastou-se para permitir que pai e filha tivessem um momento a sós. Mesmo o taciturno Tiberius levantou um braço acolhedor e abraçou o seu filho mais novo.
Jake virou-se. Embora estivesse feliz pelos seus amigos, era muito doloroso de ver. Meteu a mão no bolso e apertou o relógio de ouro.
Por agora, isto tinha de bastar como recompensa.
Mas só por agora.