PRÓLOGO
SAQUEADORES DE TÚMULOS
O homem desceu a correr a íngreme encosta da montanha tropical. As suas botas deslizavam na amálgama de folhas molhadas e lama escorregadia. Ramos de árvores pegajosos e espinhos cortantes tentavam apanhá-lo, mas ele continuava a correr a toda a velocidade por entre eles.
Não posso parar…
Quando chegou a uma curva acentuada do trilho, esforçou-se por não cair pelo precipício que o bordejava. Estendeu um braço para recuperar o equilíbrio e escorregou na lama. A outra mão apertava contra o peito um pacote embrulhado em papel. Apesar de ter quase caído, o homem acelerou. Olhou por cima do ombro.
Vários fogos ainda grassavam no cume da montanha.
Os nativos chamavam àquele lugar Montaña de Huesos.
A Montanha dos Ossos.
Era um lugar amaldiçoado, evitado por todos. O cume elevava-se das selvas verde-esmeralda da península do Iucatão, onde o México fazia fronteira com o seu vizinho do sul, Belize. Pântanos e precipícios profundos desafiavam todos os que se atrevessem a aproximar-se, enquanto os mosquitos e os moscardos atormentavam qualquer coisa que se mexesse. Florestas densas e trepadeiras cobriam a montanha, formando uma massa impenetrável e escondendo o seu verdadeiro coração de olhos indiscretos. O cume sobrepunha-se ao lago, onde os crocodilos flutuavam como troncos partidos. Da canópia da floresta, macacos cinzentos com focinhos brancos olhavam para baixo, estranhamente silenciosos, como pequenos fantasmas de anciãos. Algures, jaguares furtivos vagueavam em busca da presa nas clareiras mais remotas. Quando chovia, o que era frequente, quedas-d’água e cataratas corriam pelas encostas da montanha abaixo como prata derretida.
Era uma paisagem a contemplar.
Porém, uma paisagem rara.
Poucos tinham contemplado a enorme montanha; ainda menos tinham percorrido as suas encostas. E apenas um homem conhecia o seu segredo.
Ele descobrira a verdade.
A Montanha dos Ossos… não era uma montanha.
Apertando o seu embrulho, o homem apressou-se pelo trilho sombrio da selva. Os macacos fantasmagóricos guinchavam suavemente à sua passagem cambaleante, como se o encorajassem a correr mais depressa. Um pedaço de flecha partida encontrava-se espetado na sua anca. Uma dor lancinante percorria-lhe a perna a cada passo que dava, mas tinha de continuar. Os caçadores apertavam cada vez mais o cerco à sua volta.
O seu nome era Henry Bethel.
Doutor Henry Bethel.
Professor de arqueologia na Universidade de Oxford.
Ele e os seus estimados colegas, Penelope e Richard Ransom, tinham passado os últimos três meses da estação chuvosa a fazer escavações no cume da Montanha dos Ossos. Haviam descoberto um esconderijo incrível de artefactos antigos: uma máscara de jaguar de prata, uma coroa de jade e opala, pequenos entalhes de ónix e malaquite, uma serpente sinuosa de ouro com duas cabeças, e muitos outros objetos de valor inestimável do período clássico da civilização maia.
Tinham encontrado os artefactos num túmulo de pedra no cimo da montanha. Mesmo agora, ao fugir, Henry lembrava-se de Penelope Ransom a descer por uma corda para o túmulo pela primeira vez. A luz da sua lanterna iluminara a cripta subterrânea e o sarcófago gigantesco que se encontrava no seu interior. Em cima da tampa de calcário do sarcófago, encontrava-se o artefacto mais magnífico de todos: uma pirâmide de ouro com sessenta centímetros, rematada por uma peça de jade esculpida na forma de uma serpente enrolada de asas abertas, como um dragão. A escultura representava uma criatura lendária.
Kukulkan.
O deus dragão emplumado dos maias.
O túmulo era a descoberta de uma vida.
E a notícia espalhou-se depressa.
Atraídos pelos rumores da existência de ouro e tesouros, os bandidos tinham atacado há duas horas, quando o Sol baixava no horizonte. Mergulhado no lusco-fusco, o acampamento arqueológico fora rapidamente subjugado por espingardas, machetes e ameaças gritadas. Quando o ataque começou, Henry correu para a tenda dos Ransom e encontrou-a vazia. Não sabia o que acontecera a Penelope e Richard.
E continuava sem saber.
Apenas sabia que devia manter o embrulho em segurança.
Os Ransom tinham deixado instruções específicas.
Arriscou-se a olhar novamente para cima. Já não conseguia ver as labaredas do acampamento em chamas. Os atacantes tinham ateado fogo a todo o local, fazendo explodir até o tanque de combustível que alimentava o gerador.
O estampido de um tiro de espingarda ecoou vindo do cume da montanha.
Aturdido, Henry encolheu-se, e o tacão da sua bota esquerda escorregou. As suas pernas cederam. Embateu violentamente com o rabo no chão e começou a deslizar pelo declive íngreme da montanha.
Fincou os tacões das botas, mas o chão enlameado revelou-se demasiado escorregadio devido à chuva que caíra naquele dia. A folhagem molhada das palmeiras esbofeteava-lhe o rosto e as pedras meio enterradas fustigavam-lhe a coluna. O ramo de um arbusto espinhoso fez-lhe um corte numa das faces.
Ainda assim, Henry apertava o embrulho contra o peito.
O declive da montanha terminou abruptamente e Henry saiu disparado. Voou pelo ar, soltando um ligeiro gemido de surpresa. Caiu de pé dentro de uma pequena poça escura no sopé da montanha. Era pouco profunda, a água dava-lhe pela cintura. As suas botas embateram no fundo arenoso, o que fez os seus dentes baterem ruidosamente. Ainda assim, continuava a segurar no embrulho. Elevou-o acima da cabeça para o manter seco.
Só mais um pouco…
O lago e o barco encontravam-se a pouco mais de oitocentos metros de distância.
Respirou fundo e tentou arrastar-se para fora da poça, mas as suas pernas recusavam-se a obedecer. As botas estavam presas no fundo lamacento, enterradas até aos calcanhares. Henry contorcia-se e puxava, mas o lodo pegajoso prendia-o não lhe dando qualquer possibilidade de escapar. Os seus esforços afundavam-no ainda mais. Sentiu a lama e a areia subirem da barriga das pernas até aos joelhos.
Não…
O nível da água chegou-lhe rapidamente ao peito. O frio da poça entranhou-se nos seus ossos. Ele sabia o perigo em que tinha caído.
Areias movediças.
Segurou o embrulho acima da cabeça. O que fazer? Lágrimas de frustração e medo turvavam-lhe a visão. Naquele momento, a parte racional do seu cérebro desligou, sendo substituída por puro terror.
Henry olhou fixamente para cima, para a montanha amaldiçoada.
Montaña de Huesos.
A Montanha dos Ossos.
E agora os seus ossos iam juntar-se a todos os outros.
Ele dececionara os Ransom.
Com Penelope e Richard desaparecidos, ninguém mais sabia a verdade. Observou a Lua a aparecer por cima dos picos escarpados da montanha. Estremeceu com esta visão e até mesmo esse ligeiro movimento fez com que se afundasse mais um pouco nas areias movediças. A lama subiu até à sua cintura, a água dava-lhe agora pelo pescoço.
O segredo morreria com ele.
Pressentindo o seu destino, esticou o pescoço para contemplar a montanha.
Uma montanha que não era uma montanha.
Da posição letal em que se encontrava, a verdade parecia agora tão óbvia. As linhas precisas, os declives íngremes, o cume rombo. Embora a montanha parecesse ser uma colina natural, ele sabia que o tempo soterrara o seu verdadeiro coração debaixo de séculos de lama, folhas, trepadeiras e raízes serpenteantes.
No seu pensamento, Henry separou e desmontou todas as camadas, chegando assim ao coração escondido. Imaginou os quatro lados, os nove degraus gigantescos e o cume plano que se estendia em direção ao sol nascente.
Uma pirâmide maia.
A estrutura ancestral encontrava-se escondida no interior da falsa montanha.
No entanto, não era esse o seu maior segredo.
Nem de longe.
Henry tocou com os dedos no fio que envolvia o embrulho. Enviou silenciosamente um pedido de desculpas e uma oração a Richard e Penelope Ransom.
Quando a água lhe subiu até aos lábios, Henry sentiu o sabor da água arenosa. Cuspiu e engasgou-se. A sua visão ficou turva. Luzes dançaram à frente dos seus olhos.
Não, luzes não…
A sua visão tornou-se mais apurada, apesar do pânico.
Tochas aproximavam-se pela selva pantanosa. Chamas cintilavam. As sombras negras deram lugar a uma dúzia de guerreiros. Estavam quase nus, usando apenas tangas. Cinza e tinta preta cobriam-lhes o rosto. Alguns aproximaram-se com os arcos tensos, as setas afiadas apontadas na sua direção. Outros tinham espingardas ao ombro.
Os caçadores tinham encontrado a sua presa.
Do meio deles, surgiu uma figura mais importante. O líder dos bandidos. Contudo, Henry sabia que os bandidos eram tão bandidos como a Montaña de Huesos era uma simples montanha.
Os atacantes também escondiam um segredo mais sombrio.
Henry ouviu um vump-vump familiar ecoar à distância. Helicópteros sobrevoavam o acampamento em chamas. Helicópteros militares. Henry conseguira enviar um pedido de socorro pelo rádio antes de fugir.
Se ao menos tivessem chegado mais cedo…
O líder alto dos bandidos aproximou-se e baixou-se sobre um joelho.
Henry lutou para ver o rosto do homem, mas a luz da tocha parecia evitar a sua forma. Com um casaco comprido e um chapéu de abas, era mais sombra do que homem.
Estendeu uma vara de madeira com um gancho de aço afiado na ponta. Henry sabia que o homem não se estava a oferecer para o puxar dali para fora. Queria o embrulho. Henry tentou empurrá-lo para debaixo de água, mas foi demasiado lento. O homem esticou a vara e arrancou o embrulho da ponta dos seus dedos.
Henry tentou recuperá-lo, mas este elevou-se para fora do seu alcance.
O líder dos bandidos levantou-se. Com um sacão hábil, o embrulho voou alto e aterrou na palma aberta da sua mão. Por um momento, Henry conseguiu ver de relance dedos esqueléticos com unhas afiadas.
Como garras.
Em seguida, o homem atirou a vara para o lado e começou a afastar-se.
— Obrigado, doutor Bethel — ouviu-se num sussurro rouco, com uma pronúncia estranha. — Revelou-se extremamente útil.
Henry esticou o pescoço para trás o máximo que conseguiu. Os seus lábios elevaram-se acima da superfície lamacenta. Cuspiu toda a água que tinha na boca.
— Nunca o terás! — As palavras sufocadas de Henry foram seguidas de uma gargalhada amarga de satisfação.
O líder virou-se outra vez para ele. De baixo do chapéu, surgiram os seus olhos, como sombras polidas, mais brilhantes que a escuridão obscura, sinistros, contranaturais.
Enquanto Henry se afundava, aqueles olhos estranhos focaram-se nele e semicerraram-se. As águas tornaram-se mais frias sob aquele olhar inquisitivo.
Quando a água cobriu a cabeça de Henry, ele respondeu silenciosamente à suspeita do líder. Chegaste demasiado tarde.
Ouviu o líder gritar. Henry imaginou o homem a rasgar o embrulho que ele protegera de forma tão corajosa. Ele sabia o que homem ia encontrar: apenas folhas de palmeira secas, dobradas e enroladas.
Através da água que o afogava, Henry ouviu o grito furioso do sombrio líder dos bandidos. O homem finalmente percebera que nada era o que parecia ser aqui, na sombra da Montanha dos Ossos.
Nem os bandidos, nem a montanha… nem mesmo o embrulho atado com um fio.
Era tudo um truque.
O objetivo da fuga de Henry era deixar um rasto falso, a fim de atrair os caçadores para longe do verdadeiro caminho. À medida que a escuridão caía e Henry se afundava no derradeiro e eterno abraço da floresta, um sorriso formou-se nos seus lábios.
O segredo estava a salvo, a caminho de onde pertencia.
Para ser escondido até ser necessário.
Ninguém reparou no rapaz maia que subia os dois degraus do posto dos correios na cidade de Belize. Trazia consigo um embrulho atado com fio. Atrás dele, o oceano brilhava de forma esplendorosa. O rapaz e o seu avô tinham demorado um mês a chegar à costa. Tiveram de ser cuidadosos, prudentes e vigilantes.
O seu avô conhecia todos os caminhos antigos, as passagens secretas dos seus antepassados. Ele ensinara muito ao rapaz durante a longa viagem: como acalmar uma dor de dentes mastigando a seiva de um sapotizeiro, como fazer fogo com uma pedra de sílex e mechas de fibras e como andar pela selva sem ser ouvido.
Contudo, a lição mais importante não fora transmitida por palavras.
Honrar as promessas.
O rapaz ergueu o embrulho para o meter na ranhura da caixa do correio. Queria muito espreitar para dentro do pacote, mas tinha feito uma promessa. Olhou fixamente para a morada escrita no embrulho de papel castanho. Fez o som das letras.
North Hampshire… Connecticut.
Imaginou a longa viagem que a encomenda faria. Desejava poder segui-la. Voar para um destino exótico.
O rapaz percorreu com o dedo a linha de cima:
Menino Jacob Bartholomew Ransom
Tantos nomes para uma pessoa. Enquanto abanava a cabeça, o rapaz enfiou a encomenda pela ranhura. Bateu no fundo, fazendo um ruído satisfatório.
Com a promessa cumprida, o rapaz afastou-se. «Menino Jacob Bartholomew Ransom», murmurou ele enquanto descia os degraus do posto dos correios.
Com tantos nomes, não havia dúvida de que devia ser alguém importante.
Talvez um príncipe distante ou um lorde.
Ainda assim, a pergunta incomodava-o… e iria incomodá-lo durante muitos anos.
Quem era, ao certo, o menino Jacob Bartholomew Ransom?