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LEGISLAÇÃO ACERCA DA MORTE

Sumário: 20.1. Introdução. 20.2. Conceito atual de morte. 20.3. Disponibilidade do cadáver. 20.4. Cremação de cadáveres. 20.5. Necropsias clínicas. 20.6. Necropsia médico-legal. 20.7. Utilização de cadáveres no ensino e na pesquisa médica. 20.8. Quem deve fornecer o atestado de óbito? 20.9. O atestado de óbito e a ética nos desastres de massa. 20.10. Partes anatômicas. 20.11. O médico e a morte. 20.12. Cesárea post mortem. 20.13. Gravidez, morte encefálica e transplantes de órgãos. 20.14. A participação médica na pena de morte. 20.15. Cuidados paliativos. 20.16. Referências bibliográficas.

Código Civil

Art. 6.º A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva.

Art. 7.º Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:

I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;

II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra.

Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento.

Art. 8.º Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.

Art. 9.º Serão inscritos em registro público:

I – Os nascimentos, casamentos e óbitos. (...).

Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:

I – Pela morte de um dos cônjuges. (...).

Código Penal

Art. 107. Extingue-se a punibilidade:

I – Pela morte do agente. (...).

Art. 121. Matar alguém:

Pena – reclusão, de seis a vinte anos.

Art. 211. Destruir, subtrair ou ocultar cadáver ou parte dele:

Pena – reclusão, de um a três anos, e multa.

Art. 212. Vilipendiar cadáver ou suas cinzas:

Pena – reclusão, de um a três anos, ou multa, de quinhentos a três mil cruzeiros.

Código de Processo Penal

Art. 162. A autópsia será feita pelo menos seis horas depois do óbito, salvo se os peritos, pela evidência dos sinais de morte, julgarem que possa ser feita antes daquele prazo, o que declararão no auto.

Parágrafo único. Nos casos de morte violenta, bastará o simples exame externo do cadáver, quando não houver infração penal a apurar, ou quando as lesões externas permitirem precisar a causa da morte e não houver necessidade de exame interno para a verificação de alguma circunstância relevante.

Lei das Contravenções Penais

Art. 67. Inumar ou exumar cadáver, com infração das disposições legais:

Pena – prisão simples, de um mês a um ano, ou multa.

Lei n.º 8.501, de 30 de novembro de 1992

Art. 1.º Esta Lei visa disciplinar a destinação de cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, para fins de ensino e pesquisa.

Art. 2.º O cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, no prazo de trinta dias, poderá ser destinado às escolas de medicina, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.

Art. 3.º Será destinado para estudo, na forma do artigo anterior, o cadáver:

I – sem qualquer documentação;

II – identificado, sobre o qual inexistem informações relativas a endereços de parentes ou responsáveis legais.

§ 1.º Na hipótese do inciso II deste artigo, a autoridade competente fará publicar, nos principais jornais da cidade, a título de utilidade pública, pelo menos dez dias, a notícia do falecimento.

§ 2.º Se a morte resultar de causa não natural, o corpo será, obrigatoriamente, submetido à necropsia no órgão competente.

§ 3.º É defeso encaminhar o cadáver para fins de estudo quando houver indício de que a morte tenha resultado de ação criminosa.

§ 4.º Para fins de reconhecimento, a autoridade ou instituição responsável manterá, sobre o falecido:

a) os dados relativos às características gerais;

b) a identificação;

c) as fotos do corpo;

d) a ficha datiloscópica;

e) o resultado da necropsia, se efetuada; e

f) outros dados e documentos julgados pertinentes.

Art. 4.º Cumpridas as exigências estabelecidas nos artigos anteriores, o cadáver poderá ser liberado para fins de estudo.

Art. 5.º A qualquer tempo, os familiares ou representantes legais terão acesso aos elementos de que trata o § 4.º do art. 3.º desta Lei.

Art. 6.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 7.º Revogam-se as disposições em contrário.

Leis de Acidentes do Trabalho

Art. 86. Em todo caso em que, de um acidente do trabalho, resultar a morte do empregado, ou em que a um acidente do trabalho for ela atribuída, dever-se-á proceder à autópsia, que poderá ser ordenada pela autoridade judiciária ou policial, por sua própria iniciativa, a pedido de qualquer das partes, ou do médico assistente da vítima.

PORTARIA N.º 116, DE 11 DE FEVEREIRO DE 2009

Ministério da Saúde

Secretaria de Vigilância em Saúde Regulamenta a coleta de dados, fluxo e periodicidade de envio das informações sobre óbitos e nascidos vivos para os Sistemas de Informações em Saúde sob gestão da Secretaria de Vigilância em Saúde.

(...).

Seção IV

Das atribuições e responsabilidades dos médicos sobre a emissão da Declaração de Óbito

Art. 17. A emissão da DO é de competência do médico responsável pela assistência ao paciente, ou substitutos, excetuando-se apenas os casos confirmados ou suspeitos de morte por causas externas, quando a responsabilidade por este ato é atribuída ao médico do IML ou equivalente.

Art. 18. Os dados informados em todos os campos da DO são de responsabilidade do médico que atestou a morte, cabendo ao atestante preencher pessoalmente e revisar o documento antes de assiná-lo.

Art. 19. A competência para a emissão da DO será atribuída com base nos seguintes parâmetros:

I – Nos óbitos por causas naturais com assistência médica, a DO deverá ser fornecida, sempre que possível, pelo médico que vinha prestando assistência ao paciente, ou de acordo com as seguintes orientações:

a) A DO do paciente internado sob regime hospitalar deverá ser fornecida pelo médico assistente e, na sua ausência ou impedimento, pelo médico substituto, independente do tempo decorrido entre a admissão ou internação e o óbito;

b) A DO do paciente em tratamento sob regime ambulatorial deverá ser fornecida por médico designado pela instituição que prestava assistência, ou pelo SVO;

c) A DO do paciente em tratamento sob regime domiciliar na Estratégia Saúde da Família (ESF), internação domiciliar e outros deverá ser fornecida pelo médico pertencente ao programa ao qual o paciente estava cadastrado, podendo ainda ser emitida pelo SVO, caso o médico não disponha de elementos para correlacionar o óbito com o quadro clínico concernente ao acompanhamento registrado nos prontuários ou fichas médicas destas instituições; e

d) Nas localidades sem SVO ou referência de SVO definida pela CIB, cabe ao médico da ESF ou da Unidade de Saúde mais próxima verificar a realidade da morte, identificar o falecido e emitir a DO, nos casos de óbitos de paciente em tratamento sob regime domiciliar, podendo registrar “morte com causa indeterminada” quando os registros em prontuários ou fichas médicas não ofereçam elementos para correlacionar o óbito com o quadro clínico concernente ao acompanhamento que fazia. Se a causa da morte for desconhecida, poderá registrar “causa indeterminada” na Parte I do Atestado Médico da DO, devendo, entretanto, se tiver conhecimento, informar doenças preexistentes na Parte II deste documento.

II – Nos óbitos por causas naturais, sem assistência médica durante a doença que ocasionou a morte:

a) Nas localidades com SVO, a DO deverá ser emitida pelos médicos do SVO;

b) Nas localidades sem SVO, a Declaração de Óbito deverá ser fornecida pelos médicos do serviço público de saúde mais próximo do local onde ocorreu o evento e, na sua ausência, por qualquer médico da localidade. Se a causa da morte for desconhecida, poderá registrar “causa indeterminada” na Parte I do Atestado Médico da DO, devendo, entretanto, se tiver conhecimento, informar doenças preexistentes na Parte II deste documento.

III – Nos óbitos fetais, os médicos que prestaram assistência à mãe ficam obrigados a fornecer a DO quando a gestação tiver duração igual ou superior a 20 (vinte) semanas, ou o feto tiver peso corporal igual ou superior a 500 (quinhentos) gramas, e/ou estatura igual ou superior a 25 (vinte e cinco) centímetros.

IV – Nos óbitos não fetais, de crianças que morreram pouco tempo após o nascimento, os médicos que prestaram assistência à mãe ou à criança, ou seus substitutos, ficam obrigados a fornecer a DO independente da duração da gestação, peso corporal ou estatura do recém-nascido, devendo ser assegurada neste caso também a emissão da Declaração de Nascidos Vivos pelo médico presente ou pelos demais profissionais de saúde.

V – Nas mortes por causas externas:

a) Em localidade com IML de referência ou equivalente, a DO deverá, obrigatoriamente, ser emitida pelos médicos dos serviços médico-legais, qualquer que tenha sido o tempo decorrido entre o evento violento e a morte propriamente; e

b) Em localidade sem IML de referência ou equivalente, a DO deverá ser emitida por qualquer médico da localidade, ou outro profissional investido pela autoridade judicial ou policial na função de perito legista eventual (ad hoc), qualquer que tenha sido o tempo decorrido entre o evento violento e a morte propriamente.

§ 6.º Nos óbitos ocorridos em localidades onde exista apenas um médico, este é o responsável pela emissão da DO.

§ 7.º Nos óbitos naturais ocorridos em localidades sem médico, a emissão das 3 (três) vias da DO deverá ser solicitada ao Cartório do Registro Civil de referência, pelo responsável pelo falecido, acompanhado de 2 (duas) testemunhas, em conformidade com os fluxos acordados com as corregedorias de Justiça local.

§ 8.º As Secretarias Municipais de Saúde deverão indicar o médico que emitirá a DO, de acordo com o preconizado acima, caso restem dúvidas sobre a atribuição.

§ 9.º As Secretarias Municipais de Saúde deverão utilizar-se dos meios disponíveis na busca ativa de casos não notificados ao SIM.

Seção V

Do Fluxo da Declaração de Óbito

Art. 20. No caso de óbito natural ocorrido em estabelecimento de saúde, a DO emitida na Unidade Notificadora terá a seguinte destinação:

I – 1.ª via: Secretaria Municipal de Saúde;

II – 2.ª via: representante/responsável da família do falecido, para ser utilizada na obtenção da Certidão de Óbito junto ao Cartório do Registro Civil, o qual reterá o documento; e

III – 3.ª via: Unidade Notificadora, para arquivar no prontuário do falecido.

Art. 21. No caso de óbito natural ocorrido fora de estabelecimento de saúde e com assistência médica, a DO preenchida pelo médico responsável, conforme normatizado na Seção IV, terá a seguinte destinação:

I – 1.ª e 3.ª vias: Secretarias Municipais de Saúde; e

II – 2.ª via: representante/responsável da família do falecido para ser utilizada na obtenção da Certidão de Óbito junto ao Cartório do Registro Civil, o qual reterá o documento.

Parágrafo único. No caso de óbito natural, sem assistência médica em localidades sem SVO, as vias da DO emitidas pelo médico do Serviço de Saúde mais próximo, ou pelo médico designado pela Secretaria Municipal de Saúde, em conformidade com o § 8.º do art. 19 desta Portaria, deverão ter a mesma destinação disposta no caput deste artigo.

Art. 22. No caso de óbito natural, sem assistência médica em localidades com SVO, a DO emitida pelo médico daquele Serviço deverá ter a seguinte destinação:

I – 1.ª via: Secretaria Municipal de Saúde;

II – 2.ª via: representante/responsável da família do falecido, para ser utilizada na obtenção da Certidão de Óbito junto ao Cartório do Registro Civil, o qual reterá o documento; e

III – 3.ª via: Serviço de Verificação de Óbitos.

Art. 23. No caso de óbito natural ocorrido em localidade sem médico, a DO preenchida pelo Cartório do Registro Civil terá a seguinte destinação:

I – 1.ª e 3.ª vias: Cartório de Registro Civil, para posterior coleta pela Secretaria Municipal de Saúde responsável pelo processamento dos dados; e

II – 2.ª via: Cartório de Registro Civil, que emitirá a Certidão de Óbito a ser entregue ao representante/responsável pelo falecido.

§ 1.º As Secretarias Municipais de Saúde deverão utilizar-se dos meios disponíveis na busca ativa de casos não notificados, valendo-se de todos os meios disponíveis para esta finalidade.

§ 2.º No caso de óbito de indígena ocorrido em aldeia, nas condições do caput deste artigo, a 1.ª via será coletada pelo DSEI para processamento dos dados.

Art. 24. No caso de óbito natural ocorrido em aldeia indígena, com assistência médica, a DO emitida terá a seguinte destinação:

I – 1.ª via: Distrito Sanitário Especial Indígena;

II – 2.ª via: representante/responsável da família do falecido, para ser utilizada na obtenção da Certidão de Óbito junto ao Cartório do Registro Civil, o qual reterá o documento; e

III – 3.ª via: Unidade Notificadora, para arquivar no prontuário do falecido.

Art. 25. Nos casos de óbitos por causas acidentais e/ou violentas, as três vias da DO, emitidas pelo médico do IML de referência, ou equivalente, deverão ter a seguinte destinação:

I – 1.ª via: Secretaria Municipal de Saúde;

II – 2.ª via: representante/responsável da família do falecido, para ser utilizada na obtenção da Certidão de Óbito junto ao Cartório do Registro Civil, o qual reterá o documento; e

III – 3.ª via: Instituto Médico Legal.

Art. 26. Nos casos de óbitos por causas acidentais e/ou violentas, nas localidades onde não exista IML de referência, ou equivalente, as três vias da DO, emitidas pelo perito designado pela autoridade judicial ou policial para tal finalidade, deverão ter a seguinte destinação:

I – 1.ª e 3.ª vias: Secretarias Municipais de Saúde; e

II – 2.ª via: representante/responsável da família do falecido para ser utilizada na obtenção da Certidão de Óbito junto ao Cartório do Registro Civil, o qual reterá o documento.

Art. 46. Fica revogada a Portaria n.º 20/SVS, de 03.10.2003, publicada no Diário Oficial da União n.º 194, Seção 1, p. 50, de 07.10.2003, e republicada no Diário Oficial da União n.º 196, Seção 1, p. 71, de 09.10.2003.

GERSON OLIVEIRA PENNA

Resolução CFM n.º 1.480, de 8 de agosto de 1997

Art. 1.º A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias.

Art. 2.º Os dados clínicos e complementares observados quando da caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no “termo de declaração de morte encefálica” anexo a esta Resolução.

Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer acréscimos ao presente termo, que deverão ser aprovados pelos Conselhos Regionais de Medicina da sua jurisdição, sendo vedada a supressão de qualquer de seus itens.

Art. 3.º A morte encefálica deverá ser consequência de processo irreversível e de causa conhecida.

Art. 4.º Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supraespinal e apneia.

Art. 5.º Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme abaixo especificado:

a) de 7 dias a 2 meses incompletos: 48 horas

b) de 2 meses a 1 ano incompleto: 24 horas

c) de 1 ano a 2 anos incompletos: 12 horas

d) acima de 2 anos: 6 horas

Art. 6.º Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca:

a) ausência de atividade elétrica cerebral, ou

b) ausência de atividade metabólica cerebral, ou

c) ausência de perfusão sanguínea cerebral.

Art. 7.º Os exames complementares serão utilizados por faixa etária, conforme abaixo especificado:

a) acima de 2 anos: um dos exames citados no art. 6.º, alíneas a, b e c;

b) de 1 a 2 anos incompletos: um dos exames citados no art. 6.º, alíneas a, b e c. Quando se optar por eletroencefalograma, serão necessários 2 exames com intervalo de 12 horas entre um e outro;

c) de 2 meses a 1 ano incompleto: 2 eletroencefalogramas com intervalo de 24 horas entre um e outro;

d) de 7 dias a 2 meses incompletos: 2 eletroencefalogramas com intervalo de 48 horas entre um e outro.

Art. 8.º O Termo de Declaração de Morte Encefálica, devidamente preenchido e assinado, e os exames complementares utilizados para diagnóstico da morte encefálica deverão ser arquivados no próprio prontuário do paciente.

Art. 9.º Constatada e documentada a morte encefálica, deverá o Diretor-Clínico da instituição hospitalar, ou quem for delegado, comunicar tal fato aos responsáveis legais do paciente, se houver, e à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos a que estiver vinculada a unidade hospitalar onde o mesmo se encontrava internado.

Art. 10. Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação e revoga a Resolução CFM n.º 1.346/91.

Código de Ética Médica

É vedado ao médico:

Art. 29. Participar, direta ou indiretamente, da execução de pena de morte.

Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.

Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.

Art. 81. Atestar como forma de obter vantagens.

Art. 82. Usar formulários de instituições públicas para prescrever ou atestar fatos verificados na clínica privada.

Art. 83. Atestar óbito quando não o tenha verificado pessoalmente, ou quando não tenha prestado assistência ao paciente, salvo, no último caso, se o fizer como plantonista, médico substituto ou em caso de necropsia e verificação médico-legal.

Art. 84. Deixar de atestar óbito de paciente ao qual vinha prestando assistência, exceto quando houver indícios de morte violenta.

20.1. INTRODUÇÃO

A pessoa natural termina com a morte. Esta é a morte real.

Existe também a chamada morte presumida, que nossa lei civil admite ser declarada sem decretação de ausência: quando for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; quando alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Todavia, sua declaração nestes casos só poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento.

Entendendo-se que a existência da pessoa natural termina com a morte, tem-se de admitir que o morto não é pessoa, e sim coisa. Porém, tal fato não dispensa o nosso respeito, a nossa piedade e a nossa reverência, como também não há desclassificação por ser assim considerado.

Não constituem cadáver a mola, partes do corpo, o esqueleto e a múmia. O feto morto, no entanto, ainda permanece na esfera das controvérsias doutrinárias, se se trata ou não de cadáver.

Os autores, em geral, quando se referem à questão, simplesmente afirmam que o natimorto não é cadáver.

Ora, se o sujeito passivo do crime de violação ao respeito dos mortos é a coletividade ou o estado em si próprio, não vemos por que razão não estender esse conceito ao feto morto, e consequentemente o ilícito penal quando daquela infração. Não o considerando como cadáver, o vilipêndio, a subtração e a ocultação não estariam infringindo o sentimento ético da comunidade. O tributo que se rende aos mortos tem um significado religioso.

Assim, ao que nos parece, é o natimorto cadáver. Não vemos diferença, no tocante a este assunto, entre um feto nascido morto e um recém-nascido que viveu apenas alguns minutos. A docimásia não poderia jamais estabelecer limites entre fatos que dizem respeito unicamente à Moral. O corpo humano, em qualquer fase de seu desenvolvimento, é sempre coisa sagrada e inspira sentimentos iguais aos que outros mortos inspiram.

20.2. CONCEITO ATUAL DE MORTE

É difícil definir a morte, porque ela não é um fato instantâneo, mas uma sequência de fenômenos gradativamente processados nos vários órgãos e sistemas de manutenção da vida. O médico hoje, no entanto, com os novos meios semiológicos e instrumentais disponíveis, pode diagnosticá-la mais precocemente.

Assim, passados os instantes de espanto e expectativa, é necessária uma profunda reflexão sobre um novo conceito de morte, quando as cirurgias de transplante tornam-se uma realidade técnica e quando as condições atuais permitem prolongar por muito tempo uma vida através de meios artificiais. Por outro lado, não é justo que se tenham dois conceitos de morte: um, de caráter consumista e pragmático para satisfazer os interesses da transplantação, outro, de caráter protocolar, para as questões civis e sanitárias. É necessário que se tenha, para qualquer interesse, um só conceito de morte.

Seria indispensável também que essa nova definição de morte, baseada no coma irreversível e identificada pela ausência de reflexos, pela falta de estímulos e respostas intensas, pela cessação da respiração natural e por um registro eletroencefalográfico por mais de 24 horas, para não ser uma forma apressada de justificar a retirada sorrateira de órgãos para transplantes. Mas que representasse uma decisão consciente capaz de garantir que alguém esteja verdadeiramente morto.

Os fundamentos éticos de um conceito rigoroso de morte nos levam a respeitar um determinado espaço de tempo, dentro de uma criteriosa margem de segurança. Reconhecemos que os meios médico-legais mais tradicionais para um pronto diagnóstico de morte contribuem apenas limitadamente, devido à evolução dos fenômenos abióticos consecutivos, que trazem, inevitavelmente, lesões irreversíveis aos órgãos e tecidos. Todavia, não podemos esquecer as palavras de Vega Diaz: “Um segundo pode ser a unidade de tempo que faça de um sujeito vivo um cadáver, mas também pode fazer da morte um homicídio”.

Atualmente, a tendência é dar-se privilégio à avaliação da atividade cerebral e ao estado de descerebração ultrapassada, como indicativos de morte real. Será que basta apenas a observação do traçado isoelétrico do cérebro para se concluir pelo estado de morte? Acreditamos que não.

A morte, como elemento definidor do fim da pessoa, não pode ser explicada pela parada de um determinado órgão, por mais hierarquizado e indispensável que seja. É na extinção do complexo pessoal, representado por um conjunto, que não era constituído só de estruturas e funções, mas de uma representação global. O que morre é o conjunto que se associava para a integração de uma personalidade. Daí a necessidade de não se admitir em um só sistema o plano definidor da morte.

A Associação Médica Mundial, já em 1968, preocupada com o problema, estabeleceu na Declaração de Sidney: “A dificuldade é que a morte cerebral é um processo gradual de nível celular, já que a capacidade dos tecidos de suportar a falta de oxigênio é variável. Sem dúvida, o interesse clínico não reside no estado de conservação dos tecidos isolados, e, sim, no interesse da pessoa. Essa conclusão tem que se basear no juízo clínico, complementado por instrumentos auxiliares, entre os quais é o eletroencefalógrafo o mais útil. Em geral, nenhuma prova instrumental isolada é inteiramente satisfatória no estado atual da Medicina, nem nenhum método técnico pode substituir o juízo global do médico”.

Em 1967, disse Breecher (Med. Tribune, trad. do A., Nova York, 25.12.1967): “O desejo de aceitar o critério de lesão cerebral irreversível para formular uma nova definição de morte procede de certos interesses criados”. E entre esses interesses citava os familiares que desejam acabar com o sofrimento interminável, recusando as medidas de ressurreição; os dos cirurgiões que procuram órgãos frescos para transplantação; os da sociedade em geral, alarmada com os crescentes gastos com a assistência aos casos que se convencionou como irrecuperáveis.

O conceito de morte cerebral é fundamentado na atividade elétrica do cérebro, captada pelo eletroencefalógrafo. Porém, essa interpretação tem criado várias controvérsias. Assim, Wertheimer e Jouvet (Press. Med., trad. do A., 67/87, 1959) foram os primeiros que defenderam o critério do EEG, associado ao juízo clínico, para o diagnóstico de morte. A atividade elétrica silenciosa e persistente seria igual à morte.

No entanto, nas intoxicações barbitúricas, encontra-se um EEG aparentemente isoelétrico, durante horas ou dias, podendo, todavia, o paciente restabelecer-se (Haider e cols., British Medical Journal, trad. do A., p. 314, 3.08.1968 – Estatística de 5 casos).

Kimura e cols. (Archive of International Medicine, trad. do A., 121/511, jun. 1968) afirmavam que não é fácil determinar, num EEG isoelétrico, o tempo de conclusão real da vida. Em vinte e cinco casos de EEG plano, de pacientes com lesões cerebrais, mantidas controladamente a circulação e a respiração, observaram que a morte aparecera de um a quinze dias, sendo que dois deles se recuperaram mais tarde.

Um Comitê da Escola de Medicina de Harvard, designado para estudar um conceito exato de morte, publicou num trabalho intitulado Definição do coma irreversível (Journal of the American Medical Association, v. 205, p. 337, 05.08.1968) os resultados de suas deliberações. Baseando-se em que nos casos de coma nem sempre se dispõe de um EEG, esse Comitê definiu que aquele conceito deve fundamentar-se em sinais clínicos, na ausência da circulação (determinada através dos vasos retinianos), ou na falta da atividade cardíaca. E enfatizou os seguintes sinais: 1. inconsciência total e falta de resposta aos estímulos externos; 2. ausência da respiração (comprovada por uma hora de observação, ou pela parada dos movimentos respiratórios espontâneos quando se para o respirador durante 3 minutos); 3. ausência de reflexos; 4. EEG plano. Mesmo assim, aconselha um especial cuidado ao conceito de EEG plano. Nessas condições, o Comitê de Harvard atribuía o caráter de “irreversibilidade”, e, por consequência, a morte.

Gerin e Frache apresentam como prova irrefutável e irreversível da morte o eletrocardiograma associado à injeção intercardíaca de adrenalina. A permanência de um traçado nulo, sem a mais leve oscilação, permite um diagnóstico de morte real (Villanova y Morales, Injertos y transplantes del cadáver, Madrid: Editora Paz Montalvo, 1959).

Alexandre, de Bruxelas (Medico-Legal Journal, 32, Part. 1, 1967, 19), propõe os seguintes sinais: 1. midríase bilateral completa; 2. ausência total dos reflexos; 3. falta da respiração espontânea durante cinco minutos depois de se haver interrompido a respiração artificial; 4. queda da tensão arterial; 5. EEG plano.

Na Holanda, a Associação de EEG e Neurofisiologia Clínica, depois de estudar o problema da morte cerebral, chegou às seguintes conclusões: a) um EEG isoelétrico de 1 minuto, ou menos, de duração pode normalizar-se rápida e completamente; b) um EEG isoelétrico que dure mais de 5 minutos pode ainda normalizar-se; c) um EEG isoelétrico que dure mais de uma hora indica, quando menos, uma lesão grave e quase sempre irreversível da função cortical; d) um EEG isoelétrico que dure mais de 24 horas indica uma perda irreversível da função cortical.

No entanto, Contreras e Sepúlveda (Tribuna Médica, 341/356, 1968), em “Diagnóstico Eletroencefalográfico da Morte do Sistema Nervoso Central”, citam casos de EEG isoelétricos prolongados, seguidos de recuperação.

Simpson, professor de Medicina Legal da Universidade de Londres, afirmou recentemente que jamais aprovaria a retirada de um órgão num enfermo mantido com respiração artificial e com batimentos cardíacos, qualquer que fosse o traçado do EEG.

Do Massachusetts General Hospital vem o seguinte conceito para a determinação da morte:

1. nenhuma respiração espontânea por um mínimo de 60 segundos;

2. nenhuma respiração reflexa (superficial, profunda, orgânica etc.) e nenhuma alteração do ritmo cardíaco por pressão ocular ou dos seios carotideanos;

3. EEG de linha flat sem ritmo em todas as derivações, pelo menos 60 minutos de registro contínuo;

4. dados básicos de laboratório, incluindo estudo eletrolítico;

5. divisão da responsabilidade do pronunciamento de morte com outros colegas.

Quatro critérios, elaborados pelas Universidades de Minnesota e Pittsburgh, e pela Conferência do Royal College e da Faculdade de Medicina do Reino Unido, não diferem muito dos autores mais modernos que defendem o conceito de morte encefálica como o de morte real, sempre baseados nos mesmos princípios: coma profundo indiferente aos estímulos externos; ausência dos reflexos fotomotor, corneanos, óculo-cefálico e vestíbulo-ocular; hipotonia muscular; rigidez de descerebração; ausência de respiração espontânea; e silêncio elétrico persistente da atividade cerebral. Pode-se ainda usar como meios opcionais a angiografia e a cintilografia cerebral.

Mais recentemente, o Cornell Center Medical, para um diagnóstico de morte encefálica, estabeleceu os seguintes padrões:

1. Natureza e duração do coma

a) doenças estruturais ou causa metabólica irreversível conhecidas;

b) nenhuma chance de intoxicação por drogas ou hipotermia;

c) seis horas de observação de ausência da função cerebral são suficientes em casos de causa estrutural conhecida em que não há álcool ou droga alguma envolvida na causa ou no tratamento. De outra forma são necessárias 12 a 24 horas, mais uma investigação negativa quanto a drogas.

2. Ausência de função do cérebro e tronco cerebral

a) Ausência de respostas reflexa ou comportamental a estímulos nocivos acima do nível do foramen magnum;

b) pupilas fixas;

c) ausência de resposta óculo-vestibular a calorias de 50 ml de água gelada;

d) apneia durante a oxigenação de 10 minutos;

e) circulação do sistema nervoso pode estar intacta.

3) Critérios suplementares (opcionais)

a) EEG isoelétrico por 30 minutos ao ganho máximo;

b) ausência de circulação cerebral ao exame angiográfico.

Hoje, pelo visto, a tendência é aceitar-se a “morte encefálica”, traduzida como aquela que compromete seriamente a vida de relação e a coordenação da vida vegetativa, diferente, pois, da “morte cerebral” ou “morte cortical”, que compromete apenas a vida de relação.

Mesmo admitindo certas dificuldades para estabelecer normas de definição simples, inequívocas e objetivas para a prova de morte, propomos, para qualquer finalidade, um único padrão baseado nos seguintes critérios:

1. Ausência total de resposta cerebral, com perda absoluta da consciência. Nos casos de coma irreversível, presença de um eletroencefalograma plano (tendo cada registro a duração mínima de 30 minutos), separados por um intervalo nunca inferior a 24 horas. Esse dado não deve prevalecer para recém-nascidos ou em situações de hipotermia induzida artificialmente, de administração de drogas depressivas do sistema nervoso central, de encefalites e de distúrbios metabólicos ou endócrinos.

2. Abolição dos reflexos cefálicos, como hipotonia muscular e pupilas fixas e indiferentes ao estímulo luminoso.

3. Ausência da respiração espontânea por 5 minutos, após hiperventilação com oxigênio 100%, seguida da introdução de um cateter na traqueia, com fluxo de 6 litros de O2 por minuto.

4. Causa do coma conhecida.

5. Estruturas vitais do encéfalo lesadas irreversivelmente.

O Conselho Federal de Medicina aprovou a Resolução CFM n.º 1.480, de 8 de agosto de 1997, dispondo sobre novos critérios de constatação de morte encefálica. Com a edição desta Resolução, ficam atualizadas as normas anteriormente editadas, baixando seu limite de idade, criando um termo de declaração de morte encefálica para ser preenchido no hospital e estabelecendo novos critérios para a avaliação da morte, mesmo em centros desprovidos de recursos técnicos mais sofisticados.

Os parâmetros clínicos para a avaliação da morte encefálica estão indicados na valorização do coma aperceptivo com ausência de atividade motora supraespinhal e da apneia. Os exames complementares indicados para essa confirmação devem estar representados pela ausência da atividade elétrica cerebral ou pela ausência da atividade metabólica cerebral ou pela ausência de perfusão sanguínea cerebral.

Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas e eletroencefalográficas necessárias para a caracterização da morte encefálica são definidas por faixa etária, como: de 7 dias a dois meses incompletos – 48 horas; de dois meses a um ano incompleto – 24 horas; de 1 ano a 2 anos incompletos – 12 horas; acima de 2 anos – 6 horas. Nosso ponto de vista é que o prazo mínimo deveria ser de 24 horas para os maiores de dois anos e 48 horas para os de idade entre 7 dias e dois anos.

O termo de declaração de morte encefálica, a ser arquivado no próprio prontuário do paciente, consta da identificação, da causa do coma, do exame neurológico, das assinaturas dos profissionais que procederam ao exame clínico, dos exames complementares e das observações que indicam as recomendações para a prática dos diversos exames e testes.

A citada Resolução finaliza determinando que o Diretor Clínico da Instituição Hospitalar, ou quem for delegado, comunique a morte encefálica aos responsáveis legais do paciente, se houver, e à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos a que estiver vinculada a Unidade Hospitalar onde o mesmo se encontra internado.

Pelo exposto até agora, a tendência é aceitar-se cada vez mais a “morte encefálica”, traduzida como aquela que compromete de forma irreversível a vida de relação e a coordenação da vida vegetativa, diferente, pois, da “morte cortical”, que apenas compromete a vida de relação, mas o tronco cerebral continua a regular os outros processos vitais, como a respiração e a circulação sem a ajuda de meios artificiais.

Recomendamos a escolha da expressão “morte encefálica”, e não “morte cerebral”, porque, entre outros, assim referem-se a Lei n.º 9.434/1997, que trata dos transplantes de órgãos e tecidos, e a Resolução CFM n.º 1.480/1997, já citada e que se reporta aos parâmetros clínicos e subsidiários para a comprovação da morte.

Daquela forma, só há morte quando existe lesão irreversível de todo encéfalo. Isto, além de ser tecnicamente mais fácil e seguro de se afirmar, não nos levaria a intervir contra um comatoso que mantém suas funções vitais sem a assistência de um respirador ou de outras medidas de reanimação circulatória.

Mollaret e Goulon cunharam a expressão “coma dépassé” como sendo aquele em indivíduos com respiração assistida, arreflexia, perda irreversível da consciência associada a um “silêncio” eletroencefalográfico. Com tais critérios, pode-se propor tranquilamente um conceito ético de morte. E mais: isto nada tem a ver com o conceito tradicional de morte, baseado nos parâmetros cardiorrespiratórios.

É perigoso dizer-se que a vida só deve ser preservada quando constituir um veículo para a consciência e que apenas a consciência tem valor. Pode-se até admitir que alguém se expresse e se aperfeiçoe mediante uma atividade, porém não se identifica com ela. Aquele pensamento pode levar a políticas eugênicas e propostas seletivas, onde certamente os grupos mais discriminados seriam vítimas. Uma nobre intenção de hoje pode transformar-se num pesadelo amanhã.

A oposição aos critérios exclusivamente cerebrais é fundamentada no princípio de que, sendo a vida a harmonia da unidade biopsíquica em seu aspecto funcional e orgânico, a morte será sempre o comprometimento das funções vitais, por um tempo razoável que não deixe dúvidas quanto à permanência de vida. O traçado isoelétrico do cérebro não deve constituir, por si só, elemento decisivo para o diagnóstico de morte, pois, em diversas ocasiões como foram observadas, pode ser transitório. Por isso, o conceito de morte deve ser inserido dentro de um contexto clínico-instrumental que não deixe nenhuma dúvida.

O respeito ao aspecto cronométrico, no que se refere ao silêncio eletrográfico da atividade do cérebro e da ausência de respiração espontânea, seria, por certo, de benéfica repercussão, pois, além de conquistar a confiança da sociedade com rigorosos critérios de comprovação da morte, teria também a vantagem de disciplinar um ou outro impulso mais ousado nas estratégias de transplantação de certos órgãos ou na suspensão dos meios artificiais da vida.

Do mesmo modo, os meios propedêuticos de alto risco, pelos seus possíveis malefícios, apresentam consideráveis objeções éticas, visto que essas intervenções não constituem benefícios para o paciente, senão um interesse alheio, já que se trata de um meio de antecipar a comprovação da morte, muitas vezes com o propósito de obtenção de órgãos para serem transplantados noutra pessoa. A justificativa dessa intervenção perigosa e lesiva só teria sentido se amparado pela necessidade de um benefício em favor do próprio paciente e nunca como forma de utilizar seu corpo na concretização de um fim alheio.

Toda intervenção invasiva no corpo do paciente é, em tese, uma agressão, e, por isso, necessita de uma justificativa. Nestes casos, a suposição de um estado de necessidade justificativo está fora de cogitação, pois não se pode usar um corpo humano como meio para obtenção de vantagens de outrem.

Acreditamos ter-se chegado ao momento de se elaborar um razoável conceito ético de morte, desde que os critérios médicos para sua avaliação sejam simples, objetivos, transparentes, universais e acessíveis. E que se entenda que o momento da morte não pode ser objeto de diagnóstico porque ele não é evidente nem avaliado. Mas pode-se determinar a morte desde que se possa confirmar a ausência de sinais de vida organizada. Esta determinação também não pode estar na morte de um órgão, mesmo sendo ele indispensável, senão na evidência de sinais claros que indiquem a privação da atividade vital como um todo e, se possível, registrados em instrumentos confiáveis.

Resumindo: o fato de um indivíduo, com privação irreversível da consciência, manter espontaneamente a integração das funções vitais (respiração e circulação) demonstra que é uma pessoa viva. Tal afirmativa, no entanto, não é o mesmo que manter tecnologicamente um simulacro de vida, prolongar artificialmente um sofrimento ou insistir no medicalismo obstinado da medicina fútil.

20.3. DISPONIBILIDADE DO CADÁVER

O cadáver começa a ter, no mundo dos vivos, uma importância cada vez maior. Esse material anatômico passa a despertar um evidente interesse, constituindo-se, pouco a pouco, em fator de grande valia no mundo atual. Seu uso não se restringe apenas aos fins didáticos, clínicos e científicos, mas, agora, à finalidade terapêutica.

Em sentido afetivo, o cadáver pertence à família, cabendo, de início, aos parentes, responsáveis ou terceiros, a iniciativa das honras fúnebres e do sepultamento, dentro do que preceituam as normas sanitárias e legais. Todavia, em qualquer tempo, tem o estado direitos sobre essa posse. Em suma: o cadáver pertence ao estado.

Não é prática lícita o indivíduo vender seu próprio corpo, embora o seja a cessão. O corpo humano é de natureza extrapatrimonial. É res extra commercium, inacessível aos negócios habituais. O cadáver não pode ser utilizado para fins lucrativos.

O Direito Civil reconhece o direito patrimonial de uma pessoa jurídica e não do interesse extrapatrimonial da pessoa humana.

O homem que cede seu cadáver a uma instituição científica é amparado pela moral e consagrado pelos costumes. Se a vontade do de cujus é vinculante no que se refere ao seu testamento, nada mais justo que o seja também no que se refere à disposição de seu cadáver.

No entanto, a família jamais poderá ceder o cadáver a uma instituição se essa não era a vontade do morto. Essa regra é absoluta.

Qualquer que seja a sua importância, a necropsia clínica ou científica nos casos de morte natural só poderá ser realizada com o consentimento da família. O mesmo não se passa com a morte violenta, pois há um interesse de ordem legal que se sobrepõe à vontade dos particulares.

Mesmo assim, a tendência atual é o Poder Público autorizar as instituições hospitalares a praticar a necropsia, mesmo sem o consentimento da família, pelo seu indiscutível interesse científico, na contribuição do bem-estar coletivo.

Finalmente, é necessário que se entenda ser o cadáver não apenas matéria inanimada. Tem ele um estatuto que lhe é próprio. E, antes de mais nada, o que foi um ser humano, na plena acepção do termo.

20.4. CREMAÇÃO DE CADÁVERES

Muitos são os países que adotam o sistema de cremação de cadáveres. Entre eles a Índia, Suíça, Alemanha, a ex-Tcheco-Eslováquia, Canadá, EUA e, principalmente, a Inglaterra, que conta com 177 crematórios, e que somente no ano de 1963 realizou 261.346 cremações (Dionysio de Klobusitzky, Ainda sobre a Cremação de Cadávere”, Folha de S. Paulo, edição de 17.04.1966).

Alguns estados brasileiros têm em sua Constituição dispositivos que permitem tal prática.

Nesse processo, o cadáver é transformado em cinzas, em fornos elétricos especiais que suportam uma temperatura de 800 a 1.000 ºC, constituídos de uma grelha rotatória e de um coletor de cinzas, operação essa que varia de uma a duas horas no máximo.

Os crematórios, em geral, têm um salão de cerimônias, munido de um visor que permite a visibilidade a uma antecâmara, onde o corpo é levado através de um carretel que roda sobre trilhos, conduzindo o caixão para o interior daquela dependência. Depois, as cinzas são depositadas numa caixa de metal, cuja tampa é selada e colocada em urnas de bronze artisticamente decoradas.

Esse é, na verdade, o processo mais higiênico, mais econômico, mais prático e mais humano. Entretanto, surgem algumas objeções de ordem médico-legal, afetiva e religiosa.

Sob o ponto de vista médico-legal, a cremação apresenta o inconveniente de não poder ser realizada numa morte violenta, o que acarretaria especulações e dúvidas sobre a morte e suas circunstâncias.

O sentimentalismo tem feito com que as pessoas, em sua maioria, resistam à ideia da cremação, devido, principalmente, à violência desse processo.

Finalmente, o sentimento religioso ainda representa o maior obstáculo à adoção dessa medida, em face da crença na ressurreição dos corpos no dia do juízo.

Todavia, essas objeções podem ser totalmente conciliadas. O problema médico-legal seria resolvido autorizando-se a cremação, nas mortes naturais, somente após o diagnóstico de causa mortis, fornecido pelos serviços oficiais de verificação de óbito, por meio de necropsias e exames anatomopatológicos. A questão sentimental seria aos poucos amenizada, pois nos parece muito mais humano o processo de cremação, que não modifica o estado final do homem – voltar ao pó, e evita a marcha putrefata dos corpos e sua consequente destruição pela fauna cadavérica. Quanto ao sentimento religioso, hoje em dia encontra-se em parte sanado, após a Instrução do Santo Ofício e o placet papal de 5 de julho de 1964, restituindo os sacramentos aos cremados.

Nas grandes cidades, o problema das necrópoles já começa a inquietar os administradores públicos, devido à grande falta de espaço.

Assim, não há dúvida de que a cremação, ressalvados os casos especiais, constitui o processo ideal, haja vista ser um método prático, higiênico e econômico. Admite-se, também, que esse processo deva ter sempre o caráter facultativo, com a instalação de crematórios nas metrópoles mais desenvolvidas e de maior população.

Atualmente, a Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973, em seu art. 77, § 2.º, permite a cremação apenas daqueles que tenham manifestado em vida a vontade de serem incinerados ou no interesse da Saúde Pública, e quando o atestado de óbito for firmado por dois médicos ou por um legista, no caso de morte violenta, depois que a autoridade policial ou judiciária permitir.

20.5. NECROPSIAS CLÍNICAS

A obrigatoriedade e a necessidade da necropsia nos casos de mortes violentas estão disciplinadas em nosso direito processual penal. Todavia, para as mortes naturais, não há nenhuma regulamentação que possa dar ao médico um amparo, ou uma ordenação no que diz respeito a essa prática. Comumente, os hospitais exigem dos familiares ou responsáveis um termo de permissão, para que, nos casos de morte dos pacientes, possam realizar a necropsia clínica.

Assim, somente com a permissão dos representantes legais, pode o médico realizar uma necropsia num paciente que faleceu de morte natural.

Esse termo de responsabilidade deve ser ratificado pelos familiares após a morte do paciente. Caso estes não permitam, jamais se deve proceder à necropsia. Tal documento, exigido pelos hospitais aos parentes do enfermo, como condição de internamento, não deixa de ser, até que se prove o contrário, uma forma disfarçável de coação.

Nos casos em que o médico venha a proceder a tal exame sem permissão, mesmo assim não encontramos fundamentos legais para imputar-lhe crime contra o respeito aos mortos, pois não há violação de sepultura, destruição, subtração ou ocultação de cadáver, muito menos vilipêndio ao morto.

Quanto à responsabilidade civil do médico, pode ela ser arguida em determinadas situações, desde que a necropsia tenha sido feita sem o consentimento dos familiares, causando, entre outras coisas, a mutilação do cadáver, partindo-se do princípio de que este constitui uma coisa.

Em dezembro de 1946, o Tribunal Correcional de Dromfront, na França, recebeu a denúncia de que um indivíduo sem família havia sido necropsiado em determinado hospital pelo cirurgião-chefe, que fez no cadáver uma incisão abdominal para conhecer a causa da morte, aproveitando essa incisão para praticar uma gastrectomia. Um funcionário do hospital, por espírito de vingança, levou esse fato ao conhecimento do Conselho de Magistrados, sendo o cirurgião condenado e enquadrado no art. 360 do Código Penal francês, texto, aliás, inexpressivo, pois que visa apenas à punição por violação de sepultura, sem apresentar uma precisa definição (J. Malherbe, Médecine et Droit Moderne, Paris: Masson & Cie. Editeurs, 1969).

Cada dia que passa, maiores são os imperativos da ciência, e grandes são suas exigências, no tocante a um aprimoramento técnico e experimental, para que possa ela ser colocada a serviço do homem, em seu momento mais grave. Evidencia-se, pois, a necessidade, entre outras, do “direito de necropsiar”.

Há situações em que o médico tem dúvidas quanto ao diagnóstico de morte, e, para que ele fique completamente consciente dessa situação, necessita da necropsia clínica.

Atualmente, sente-se que o direito jurisprudencial tende a autorizar às instituições hospitalares a necropsia, mesmo na falta do consentimento da família, tendo em vista o interesse indiscutível da ciência em contribuir para o bem-estar coletivo. O ideal, porém, será uma maneira de ajustar o interesse do morto, dos familiares e da sociedade às novas normas estabelecidas e aos costumes consagrados.

É claro que essa prática deve ser realizada dentro de um equilíbrio que não sacrifique os princípios fundamentais da dignidade humana, nem as necessidades da ciência médica. Compreende-se perfeitamente que a tendência é aceitar-se a necropsia como uma rotina, principalmente nos casos de morte sem diagnóstico confirmado, ou nos óbitos verificados nos hospitais universitários, onde o internado não é apenas um doente, mas também a motivação do ensino prático aos futuros profissionais da Medicina, que, só assim, através da observação e da experiência, terão no futuro novas chances de curar outros pacientes.

Finalmente, mesmo sendo o corpo humano, em princípio, inviolável e inalienável, não pode esse conceito ser absoluto, visto que uma necessidade maior exige certas aberturas, pois nenhuma vantagem adviria de uma total restrição. E, por outro lado, o altruísmo que permite a necropsia num ente querido representa, realmente, um valor inestimável para toda a coletividade. E, em suma, não é na terra que se repousa, mas no coração do outro homem.

20.6. NECROPSIA MÉDICO-LEGAL

A necropsia médico-legal é um conjunto de operações que busca fundamentalmente elucidar a causa mortis, mas ainda se presta a esclarecer determinadas situações, como a causa jurídica da morte, a aproximação do tempo de morte, a identificação do morto e outras informações que o referido exame possa oferecer.

É a maior de todas as perícias médico-legais.

Uma putrefação avançada, um acidente de trânsito assistido por várias pessoas, um suicida que se precipita à vista da multidão, um homicídio presenciado por muitos não são motivos bastantes para assegurar ao perito a ciência e a razão que o façam deixar de proceder a uma necropsia em toda a sua plenitude. É obrigatória e justificada, portanto, em todos os casos de morte violenta ou suspeita.

A legislação processual penal autoriza apenas à pessoa do perito médico-legal a dispensa desse exame, deixando, assim, ao seu inteiro critério e à sua consciência técnica especializada o direito de decidir, sob sua única e inteira responsabilidade, o óbito, a causa jurídica da morte e mais a descrição minuciosa de todas as lesões externas e internas do cadáver, a fim de não somente certificar, mas também arrazoar. Cabe exclusivamente ao perito o ônus da necropsia perante a lei.

Poderá o perito dispensar a necropsia quando a causa da morte estiver devidamente evidenciada, o que será justificado em seu relatório.

Para a Medicina Legal, são considerados casos de mortes evidenciados aqueles cujas lesões, por sua multiplicidade, natureza ou extrema gravidade dão mostra de que alguém, naquele estado, impossivelmente, poderia estar vivo. Por exemplo, uma decapitação, um despostejamento de um corpo de vítima de acidente ferroviário, uma carbonização total, um esmagamento craniofacial com esvaziamento do conteúdo encefálico dão ao perito a certeza da morte; mas para nós tais fatos ainda não proporcionam a plena convicção da causa mortis, nem da causa jurídica, pois todas aquelas lesões poderiam ter sido provocadas por simulação post mortem.

Uma necropsia é sempre uma tarefa de equipe e um trabalho de paciência. Não vai um exagero afirmar-se que qualquer cadáver numa sala de necropsia de um Serviço Médico-Legal, não raro, tem alguma coisa a esclarecer.

Às vezes, até mesmo o estado mental do agressor é concebível pela visualização da violência, quanto à diversidade incontida dos ferimentos.

Uma perícia que se louva em informações de testemunhas é uma perícia temerária, ou mais que isso: é uma perícia desonesta. Uma perícia que se preocupa apenas em esmiuçar detalhes no corpo dos humildes e libera graciosamente o dos afortunados ou socialmente privilegiados é uma perícia preconceituosa e imoral. Uma perícia superficial, forjada na pressa e no comodismo, não apenas compromete o prestígio e a honorabilidade do profissional que a realiza, mas pode ir mais além: confundir o raciocínio do julgador e ferir o interesse da comunidade.

Uma Polícia Judiciária que fica à mercê de laudos superficiais e incompletos torna-se um mecanismo fraco e impotente, sujeito a toda sorte de enganos e injustiças.

Sabemos que constantemente vêm os Institutos de Medicina Legal sofrendo pressões, e, por incrível que pareça, de pessoas que deveriam salientar a importância pericial e manter a respeitabilidade dessas instituições. Essas pessoas mandam que os corpos sejam liberados sem os indispensáveis exames, quase sempre para satisfazer interesses político-demagógicos, nem sempre recomendáveis a quem dirige a coisa pública.

Outro fato que traz certos transtornos à administração dos Institutos Médico-Legais é o da interferência da autoridade no sentido de que as necropsias, até nos casos de crimes de autoria incerta ou cercados de mistério, sejam realizadas à noite, na deficiência dos meios de que se dispõe, trabalhando no recôndito das cavidades, onde as lesões significativas podem ser empanadas pelas sombras que a luz artificial não consegue evitar, apenas para atender ao imediatismo de pessoas que não alcançam a repercussão que alguns casos chegam a tomar. E vez por outra surgem os pedidos de exumação: a mais terrível, a mais ingrata e a mais repugnante de todas as perícias, somente porque a ignorância de uns e o servilismo de outros levaram a tanto.

As necropsias deverão ser executadas em instalações adequadas, sem injunções de quem quer que seja e, na medida do possível, à luz do dia, posto que a luz artificial pode desvirtuar a boa observação do perito.

Não podemos omitir o fato de as autoridades sofrerem pressões dos familiares que procuram retirar dos IMLs o cadáver de um ente querido com a máxima rapidez. No entanto, deve a autoridade estar alerta para o relevante valor social e técnico das necropsias médico-legais e para as consequências posteriores pelas quais o perito sempre paga, uma vez que ele irá responder a todas as indagações que se possam imaginar, sobretudo quando certos acontecimentos descambam para a especulação e para o sensacionalismo.

Não nos preocupam a obscuridade e o anonimato em que realizamos nosso trabalho. Não nos aborrecem as condições precárias e sub-humanas onde alguns de nós levamos a cabo nossas perícias. Não mais nos abala o ambiente constrangedor e angustiante dos anfiteatros e necrotérios – palco de nossa atividade pericial. O que nos preocupa, aborrece e constrange é a incompreensão de alguns que, embora sendo conscientes, voltam-se para os interesses inconfessáveis.

20.7. UTILIZAÇÃO DE CADÁVERES NO ENSINO E NA PESQUISA MÉDICA

Não existia, entre nós, até pouco tempo, nenhuma legislação que disciplinasse o uso de cadáveres ou de partes destes para fins didáticos e de pesquisa médica ou científica. Existiam apenas vagas referências, em regulamentos paralelos. Do que se dispunha, na realidade, era de uma tradição oral que permaneceu como se fora a lei. Assim, na prática corrente, quando o cadáver de um desconhecido e não reclamado surgia, entregava-se-o às escolas da área de saúde para o estudo e o ensino da anatomia humana.

A recente Lei n.º 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, dispondo sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do cadáver, disciplina essa utilização para fins terapêuticos, mas não legisla em torno da disponibilidade desse corpo para interesses pedagógicos e de especulação no campo da investigação científica.

A justificativa da cessão desses corpos às escolas da área de saúde é a de não se compreender a instrução de profissionais daquela área sem o necessário estudo da anatomia humana. Por outro lado, não se pode esquecer que simultaneamente a esse interesse deve existir sempre a consciência do respeito à dignidade humana.

Assim, o deputado Américo Brasil já havia apresentado à Câmara de Deputados um anteprojeto de lei dispondo do cadáver para esses objetivos. Previa-se o uso por autorização através de instrumento público ou particular, manifestado em vida pelo próprio disponente, ou daqueles falecidos cujos corpos não fossem identificados e reclamados. Recomendava-se não usar os cadáveres nos casos de crimes ou de suspeita de crime, ou em que houvesse manifestação expressa do poder judicial. Os diretores das escolas da área de saúde estariam obrigados a fornecer, sempre em determinados prazos, a relação dos cadáveres sob sua guarda às Secretarias de Segurança Pública e de Saúde dos respectivos estados. Os Institutos Médico-Legais procederiam à documentação fotográfica, antropológica e dactiloscópica, afixando em suas dependências as características físicas desse corpo, para possível identificação. Esse anteprojeto de lei teve a contribuição do Dr. Sávio Pereira Lima, ex-diretor do Instituto Médico-Legal do Distrito Federal, e do professor Hermes Rodrigues de Alcântara, da Universidade Nacional de Brasília e da Universidade do Distrito Federal.

O Ministério da Educação e Cultura, através da Portaria n.º 86, de 17 de janeiro de 1980, criou uma Comissão Especial, no sentido de estabelecer normas disciplinares sobre o “Uso de Cadáveres para Estudo da Anatomia Humana nas Escolas da Área da Saúde”. As conclusões motivaram a publicação de um número na Série de Cadernos de Ciências de Saúde, editada pela Secretaria de Ensino Superior do MEC.

A Comissão, após demorado e enfadonho relatório, onde exuma toda a história do uso do cadáver, desde a De Res Sacra, dos antigos romanos, até a participação da Previdência Social com o pagamento do auxílio-funeral, apresentou um projeto de lei que dispõe sobre a cessão do cadáver para fins didáticos e científicos.

Vários dispositivos do citado anteprojeto mostravam situações inadmissíveis, para não dizer absurdas. Por exemplo: o art. 1.º “legalizava” a dissecação cadavérica, dando a entender que até agora essa prática vinha sendo realizada fora da lei.

Mais adiante, outro artigo dizia que, se o reclamante do corpo não for parente próximo, o pedido só seria concedido depois da utilização do cadáver. Tudo isso baseado, segundo consta do “relatório final” da Comissão, no fato de o Manicômio de Barbacena, em Minas Gerais, ter passado a entregar os cadáveres às instituições humanitárias para inumação. Um outro dispositivo permite o sorteio entre as demais instituições existentes numa mesma área, a fim de “evitar disputas entre elas”.

Há um outro artigo que estipulava sanções aos responsáveis por instituições que deixassem de encaminhar os cadáveres, pelos danos causados pela omissão, além do ressarcimento dos prejuízos e de penas administrativas e penais cabíveis, até mesmo aos diretores de Institutos Médico-Legais. Há outro que nomeava os anatomistas para averiguação da causa mortis, inclusive para fins criminais, o que não deixa de ser descabido e dificultoso para um professor de Anatomia, dada a sua formação totalmente diversa das investigações clínicas e forenses.

Existia outro dispositivo que dava ao diretor da Escola o direito a uma série de práticas, para “não sofrer proibições arbitrárias”. E finalmente aquele que criava a gratificação de um auxílio-funeral no seu valor máximo ao familiar que concordar com a cessão do cadáver, inclusive dispensando-o da comprovação das despesas do enterro, as quais seriam supridas pelo simples recibo de entrega do cadáver, o que não deixa de ser um “estímulo” à família, mesmo que isso conflite com o que estipula um outro artigo: “Fica vedada a percepção de quaisquer vantagens financeiras na entrega e utilização de cadáveres”.

Agora, mais recentemente, o Poder Executivo decretou e sancionou a Lei n.º 8.501, de 30 de novembro de 1992, que “dispõe sobre a utilização do cadáver não reclamado, para fins de estudos e pesquisas científicas”. Disciplina, desse modo, que o cadáver não procurado no prazo de trinta dias poderá ser destinado às escolas da área de saúde, para aqueles fins.

Considera ainda esse dispositivo que nos casos de cadáveres sem qualquer documentação, ou mesmo quando identificados não haja informações relativas a endereços de parentes ou de representantes legais, a autoridade responsável pela instituição de ensino fará publicar nos principais jornais da cidade, a título de utilidade pública, a notícia do falecimento, pelo menos durante 10 dias.

Determina também que, nos casos de morte violenta, o corpo será obrigatoriamente submetido à necropsia médico-legal, proibindo o uso do cadáver quando houver indícios de ação criminosa e exigindo do responsável pela instituição de ensino manter, para fins de reconhecimento, dados relativos às características gerais do falecido: sua identificação, fotografias, ficha dactiloscópica, resultado da necropsia (quando necessária) e outros dados e documentos julgados pertinentes. Só assim o corpo será liberado para o estudo e para a pesquisa, ficando, a qualquer tempo, os familiares ou representantes legais com acesso aos elementos referentes ao reconhecimento do morto.

Sempre nos manifestamos contrários a qualquer legislação sobre tal matéria. Acreditamos ser perigoso desafiar o sentimento humano e as instituições imemoriais. Mais importante que esse desafio à lei é sensibilizar a opinião pública mostrando a necessidade incontornável da utilização do cadáver no ensino e na pesquisa científica. Mas que se faça isso sem a mácula da coerção e da discriminação arbitrária. Assistimos, durante todos esses anos, a que, na prática, as situações se vão acomodando pelo uso e pelo nível de consciência da população, a qual entendeu não ser possível um médico, por exemplo, ser privado, na sua formação, dos indispensáveis estudos da anatomia humana.

20.8. QUEM DEVE FORNECER O ATESTADO DE ÓBITO?

O atestado de óbito tem como finalidade não só confirmar a morte, mas, ainda, a definição da causa mortis e dos interesses de ordem legal e médico-sanitária. Daí a importância deste documento tantas vezes relegada por alguns profissionais.

Nos locais onde não existe médico, o óbito pode ser declarado por duas testemunhas idôneas que tiverem presenciado alguém morto.

Como o atestado de óbito é um documento que sempre enseja certas implicações de natureza jurídica, há algumas regras que não podem ser esquecidas: não assinar atestados em branco; verificar se todos os itens da identificação da declaração estão devidamente preenchidos; não assinar atestado de óbito em casos de morte violenta, a não ser quando legalmente autorizado; a declaração de óbito fetal é da competência exclusiva do médico; partes de cadáver, como cabeça, ossos ou membros encontrados aleatoriamente são da competência dos Institutos Médico-Legais; às partes amputadas por ocasião de atos cirúrgicos recomenda-se a inumação em cemitérios públicos acompanhadas de um relatório médico contendo especificações das partes e identificação do paciente, ou a incineração dentro das recomendações do Decreto Federal n.º 61.817, de 1.º de dezembro de 1967, e do Parecer-Consulta CFM n.º 04/1996; usar como causa básica sempre as especificadas na Classificação Internacional de Doenças, adotada pela 20.ª Assembleia da Associação Médica Mundial: evitar como causa básica certas expressões como parada cardíaca, insuficiência cardiorrespiratória ou hematêmese.

O Conselho Federal de Medicina, através da Resolução n.º 1.779/2005, estabelece os seguintes critérios: O preenchimento dos dados constantes na Declaração de Óbito é da responsabilidade do médico que atestou a morte e quando do preenchimento da Declaração de Óbito, obedecerão as seguintes normas:

1) Morte natural: I. Morte sem assistência médica: a) Nas localidades com Serviço de Verificação de Óbitos (SVO): A Declaração de Óbito deverá ser fornecida pelos médicos do SVO; b) Nas localidades sem SVO: A Declaração de Óbito deverá ser fornecida pelos médicos do serviço público de saúde mais próximo do local onde ocorreu o evento; na sua ausência, por qualquer médico da localidade. II. Morte com assistência médica: a) A Declaração de Óbito deverá ser fornecida, sempre que possível, pelo médico que vinha prestando assistência ao paciente. b) A Declaração de Óbito do paciente internado sob regime hospitalar deverá ser fornecida pelo médico assistente e, na sua falta, por médico substituto pertencente à instituição. c) A declaração de óbito do paciente em tratamento sob regime ambulatorial deverá ser fornecida por médico designado pela instituição que prestava assistência, ou pelo SVO; d) A Declaração de Óbito do paciente em tratamento sob regime domiciliar (Programa Saúde da Família, internação domiciliar e outros) deverá ser fornecida pelo médico pertencente ao programa ao qual o paciente estava cadastrado, ou pelo SVO, caso o médico não consiga correlacionar o óbito com o quadro clínico concernente ao acompanhamento do paciente.

2) Morte fetal: Em caso de morte fetal, os médicos que prestaram assistência à mãe ficam obrigados a fornecer a Declaração de Óbito quando a gestação tiver duração igual ou superior a 20 semanas ou o feto tiver peso corporal igual ou superior a 500 (quinhentos) gramas e/ou estatura igual ou superior a 25 cm.

3) Mortes violentas ou não naturais: A Declaração de Óbito deverá, obrigatoriamente, ser fornecida pelos serviços médico-legais. Parágrafo único. Nas localidades onde existir apenas 1 (um) médico, este é o responsável pelo fornecimento da Declaração de Óbito”.

É também de responsabilidade do médico o preenchimento completo dos dados de identidade do falecido, no que diz respeito ao nome completo, cor, idade, sexo e filiação, além do local, hora, data e causa da morte (Parecer-Consulta CFM n.º 16/1995).

E qual seria o prazo, após a última consulta, para fornecimento do atestado de óbito? O Conselho Regional de Medicina do Estado do Paraná, sobre o assunto, define em seu Parecer CRMPR n.º 210/1991: “Não se pode relacionar em termo de prazo e, sim, que apenas pode atestar o óbito quem vinha assistindo o doente, e, como já foi explanado, exista relação fisiopatológica da doença diagnosticada por ocasião da consulta eventual, e a causa do óbito”.

No que diz respeito ao atestado de óbito no período perinatal, o CID-10 definiu este estágio a partir da 22.ª semana de gravidez, quando o feto alcança cerca de 500 g. Como a Lei dos Registros Públicos obriga o registro de natimortos, sem definir o que seja, a partir daquela data deve-se lavrar o competente atestado, por tratar-se de uma perda fetal. O ideal seria o registro de todas as perdas fetais.

20.9. O ATESTADO DE ÓBITO E A ÉTICA NOS DESASTRES DE MASSA

Estando o cadáver ou parte dele identificado num desastre de massa, não há por que negar o devido atestado de óbito, com a causa mortis determinada e sua efetiva identidade, facilitando assim o sepultamento mais rápido e de forma individualizada. No entanto, as repartições médico-legais não podem nem devem fornecer atestados de pessoas não identificadas, simplesmente baseadas em meras informações ou conjeturas.

Isso, no entanto, não impede que qualquer pessoa interessada, por laços de negócios ou de parentesco, comprovando interesses legítimos, possa pedir a justificação de morte presumida, cuja competência exclusiva é dos juízes togados. A solicitação deve ser feita ao juiz da Comarca onde se verificou o sinistro – diante das dificuldades de obter o atestado de óbito, de justificação judicial de uma ou de várias pessoas desaparecidas ou de impossível reconhecimento, fundamentada nos seguintes documentos: 1. prova da ocorrência policial do acidente; 2. relação das pessoas desaparecidas e tidas como presentes no desastre; 3. declaração do Instituto Médico-Legal de que foram encontrados corpos ou partes de corpos não identificados.

Depois de homologada a justificação, caberá à autoridade policial ou aos familiares solicitarem do Cartório de Registro Civil a anotação desse documento e o assentamento da morte, ficando depois o Cartório na disposição de fornecer a Certidão de óbito para cada família, com a ressalva das circunstâncias que motivaram tal certidão. Isso está disciplinado no artigo 88 da Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que assim se expressa: “Poderão os juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágios, incêndio, terremoto ou outra qualquer catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar o cadáver para exame”.

Por outro lado, com a intervenção cada vez maior do homem sobre a natureza, muitos são os riscos criados para a saúde e para a vida dos indivíduos e da coletividade. E assim vão ocorrendo situações que exigem atitudes e responsabilidades por parte de cada um e do conjunto da sociedade, a partir do momento em que o poder sobre a natureza torna-se mais evidente.

Mesmo que o risco natural não seja da inventiva humana e não dependa daquela intervenção ou daquele confronto, ele pode ser previsto e minimizado, desde que os conhecimentos científicos e a organização da sociedade voltem-se mais para a perspectiva de administrar melhor os danos causados e evitar as implicações mais graves sobre a vida e a saúde do homem e sobre o seu meio ambiente.

O humanismo é a lógica mais simples e o fim da ética social é servir ao humanismo pleno. A pessoa tem um valor antológico e não pode ser considerada apenas como uma parte da sociedade, tendo-se em conta que esta se concebe a partir de cada um de nós.

Desse modo, todas as manifestações que orientam a intervenção humana na previsão, prevenção e tratamento do desastre de massa passam necessariamente pelo conceito do bem comum. Todo indivíduo tem direito à proteção de sua saúde, como valor consequente à sua própria existência. E, por isso, não é justo que se ponha essa vida em perigo, nem tampouco que sejam tratadas com descaso as pessoas indefesas ou vítimas de determinadas ocorrências. Só se admite colocar em perigo a integridade física de uma pessoa quando for necessário salvar seu bem superior, que é a sua própria vida. Este é o princípio da totalidade.

Mesmo sabendo-se que as disponibilidades do atendimento podem ser precárias e desordenadas nas primeiras horas após o desastre – seja pela amplitude do sinistro, seja pela falta de organização ou estruturação dos planos de emergências –, é fundamento ético inalienável que todos sejam atendidos sem discriminação, no mais breve espaço de tempo e na proporção dos meios disponíveis. Se, nas primeiras horas, apenas estão disponíveis alguns meios para os cuidados mais imediatos, deve-se dar prioridade àqueles que estão em perigo de vida. Não é lícito outro tipo de critério, como o da idade ou do sexo, mas, tão só, o das circunstâncias que levam à iminência da morte. Mesmo que alguns defendam a ideia de que devam ser atendidos primeiro aqueles que apresentam possibilidades de salvar-se (princípio da prioridade terapêutica) ou aqueles que primeiro são encontrados (princípio da prioridade temporal), muitos defendem que sejam atendidos em primeiro lugar os que apresentarem maior risco de vida ou maior grau de sofrimento (princípio da prioridade do risco).

Outra questão muito delicada é o que fazer com os corpos ou partes dos corpos não identificados, depois de esgotados todos os recursos disponíveis. Primeiro recomenda-se que os corpos relativamente preservados sejam submetidos a uma revisão completa, para que fique patente nada ter sido esquecido, considerando-se todos os elementos importantes, inclusive fotografia, radiografias e fichas dactiloscópicas e odontológicas. Há casos em que está indicada a retirada dos maxilares superiores e inferior para uma possível comprovação posterior. A inumação deve ser feita em local conhecido e em sacos plásticos numerados, para facilitar uma exumação específica, diante do surgimento de informações adicionais, respeitadas as imposições da legislação sanitária.

Depois, as partes menores que ainda permanecerem não identificadas serão também documentadas e, se a quantidade de tecidos é pequena, se não existe conteúdo identificável ou se todas as vítimas estão identificadas, devem ser enterradas ou incineradas.

Além disso, não se deve esquecer o respeito que se impõe ao morto e os cuidados nos procedimentos que se exigem depois da morte, na dimensão que merece a dignidade humana. Mesmo se entendendo que a existência da pessoa natural termina com a morte, tem-se de admitir que não estão dispensados o respeito, a piedade e a reverência, pois tudo isso tem um significado muito transcendente. Nem mesmo o tumulto de uma catástrofe, ou o anonimato do cadáver, recomenda a ninguém um tratamento diferente.

Fica evidente que, com a existência cada vez mais efetiva de uma “medicina de risco”, em alguns momentos até considerada como “medicina de catástrofe”, já chegou a hora de se trabalhar no sentido de estruturar essas ações como numa verdadeira especialidade médica, com características e modos de atuação bem distintos de outras formas de atividades médico-profissionais. Por isso, necessita, também aqui, de certas posturas éticas que se exigem na prevenção, condução e atenção das vítimas nos desastres naturais.

Parte desse raciocínio é explicada pelo fato de serem os acidentes catastróficos e coletivos seguidos de grande comoção pública e cercados de muitas dificuldades na maneira de atender de imediato todos os reclamos das pessoas em geral e, em particular, dos familiares das vítimas.

Finalmente, é necessário que a própria sociedade esteja consciente e antecipadamente preparada para as eventualidades desses sinistros. Quanto melhor for esse entendimento, maiores serão as oportunidades de evitar os danos e prejuízos causados à vida e à saúde do homem e ao próprio meio ambiente. Tudo isso valorizado pelos princípios da solidariedade e da ética social – e com respeito aos direitos humanos (ver a Recomendação de Estocolmo, adotada pela 46.ª Assembleia-Geral da AMM).

20.10. PARTES ANATÔMICAS

As partes ou peças anatômicas retiradas durante atos cirúrgicos, como, por exemplo, um membro amputado, mesmo quando devidamente inumado, não necessita de um Atestado ou Declaração de Óbito. Apenas recomenda-se que o hospital elabore um laudo mais ou menos circunstanciado para ser entregue na administração do cemitério. O ideal nesse particular seria a incineração, conforme Parecer CFM n.º 04/1996, que diz ser do município a competência de legislar sobre a incineração de cadáver ou de tecidos humanos (órgãos, membros e tecidos humanos), a exemplo da Lei Municipal n.º 3.120, de 21 de dezembro de 1967, da cidade de Porto Alegre.

Por outro lado, quando se tratar de partes de cadáver que permitam uma identidade e desde que façam parte de uma conexão com o conjunto do corpo, o atestado de óbito deve ser fornecido e o laudo pericial redigido pelo médico indicado pela autoridade competente. No entanto, é muito importante que essa parte do cadáver seja identificada como parte que restou do conjunto de um indivíduo falecido, diferente, pois, da parte amputada, cirurgicamente relacionada apenas como um segmento de uma pessoa que continua viva.

20.11. O MÉDICO E A MORTE

Os médicos temem mais a morte que os pacientes. Muitos até escolhem essa profissão por suas dificuldades em torno dela.

O conteúdo programático das mais diversas disciplinas do Curso Médico, tradicionalmente oferecido nas escolas, traz raras informações sobre o estudo da morte, e daí o impacto emocional ante o primeiro caso clínico fatal no qual o médico se vê direta ou indiretamente envolvido.

Mesmo sendo seu primeiro contato com o morto, nos anfiteatros, o corpo humano inanimado constitui simplesmente uma máquina cujas peças ele deve conhecer para obter aprovação em seus exames de Anatomia. Sua intimidade com o cadáver volta-se para o mundo das estruturas, às vezes esquecendo que aquele corpo teve vida, foi homem, viveu, amou e sofreu, morrendo triste e abandonado, sem um pranto de ternura ou de desespero, sem a luz tremulante de uma vela que o iluminasse em sua última viagem. Sabe apenas que a história daquele homem desconhecido se confunde com a de todos os miseráveis: uma história coletiva. Tem apenas um nome – cadáver desconhecido, assim chamado porque a Vida o envolveu no véu do anonimato.

A sensibilidade da vida é contrária à sensibilidade da morte. Todo morto é humilde, e mais humilde é o cadáver desconhecido: sem história, sem nome e sem dono. Essa despersonalização se prolonga até as necropsias de Patologia, onde se começa a associar ao recém-falecido alguns dados de interesse clínico.

Nas disciplinas de Clínica Médica, o contato com o ser vivo é mais estreito, através da história e de um diálogo diário com o paciente. Aí já se começa a conhecer um nome, seus problemas, suas angústias e seus sofrimentos. Medita-se o coração, vigia-se o sofrer e enxuga-se o pranto. Assim, começa o estudante a descobrir o segredo da esperança, pois só o pobre o conhece.

Nesta fase, participa da agonia que pode preceder a morte. Aquela experiência fria e impessoal dos primeiros anos passa a ser substituída por um relacionamento mais estreito e mais pessoal. Mas a lembrança do anfiteatro marca decisivamente no estudante uma atitude de insensibilidade e indiferença, principalmente diante dos pacientes considerados terminais ou em seus derradeiros instantes de vida. Isso nos leva a crer na necessidade de trazer, desde o início da carreira do futuro médico, um contato com os seres humanos vivos, e não apenas com a matéria inerte não identificada com o processo vital.

Sabe-se que o grande êxito médico consiste no diagnóstico brilhante e na terapêutica eficaz. Sua maior gratificação reside na reabilitação integral do paciente. Quando a situação do doente se agrava e a morte se mostra iminente, experimenta o médico uma sensação de fracasso ante si próprio e os circunstantes. Sua vontade é afastar-se cada vez mais do espetáculo da morte. Nenhum clínico assiste à morte do paciente. O maior desespero do cirurgião é a mors in tabula – a morte na mesa.

O médico, diante da morte, comporta-se diferentemente, de acordo com sua própria idade e experiência, e ainda consoante as diversas situações.

O médico jovem, quando enfrenta uma enfermidade fatal, o faz com grande agressividade, procurando combatê-la através de todos os recursos possíveis e impossíveis, numa tentativa heroica e desesperada de salvar uma vida.

O de meia-idade aceita racionalmente as implicações da morte, afastando-se de seu significado, e, quando diante de um caso perdido, torna sua presença cada vez mais rara e mais fortuita.

Finalmente, o médico de idade avançada, por um longo e penoso processo de conscientização, convence-se de que a morte é um fenômeno inevitável. Para uns, parece ser ele um insensível ante o desenlace que se mostra irreversível e imediato. Para outros, apenas a consciência de que uma alma repousará em paz – na Paz Universal.

20.12. CESÁREA POST MORTEM

Nada mais espetacular e emocionante que resgatar um feto vivo do cadáver de uma mãe. A cesárea depois da morte, embora seja uma prática antiga, ainda encontra alguns resíduos de intolerância por parte de uma pequena fração da comunidade. Isso, devido à forma imediata de intervenção. No entanto, diante de uma situação indiscutível de morte e da possibilidade, mesmo remota, de retirar-se um feto vivo do útero, não há como negar a validade de tal gesto. Para tanto, é necessário que o médico esteja certo da inexistência de vida da gestante, tenha usado de todos os recursos disponíveis para um diagnóstico real de morte e, se possível, que disponha do assentimento de um colega e da permissão da família, no sentido de evitar especulações maldosas no futuro.

Considera-se que a obrigação do médico de praticar a cesárea nessas circunstâncias se torna imperiosa pelo direito indiscutível de viver do novo ser, mesmo que não exista nenhuma tipificação penal expressa em nossa legislação sobre o assunto. Noutras legislações, caracteriza-se a não intervenção como omissão de socorro. Por outro lado, existindo a possibilidade de sobrevivência do feto, o médico omisso poderá responder por dano civil, conforme está estatuído no art. 951 do Código Civil brasileiro: “O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”.

Não obstante, para alguns, é preciso que se evite a intervenção em gestantes agonizantes, pois esse procedimento, além de conflitar com os princípios mais elementares da tradição médica, resultaria inevitavelmente numa forma de infração contra a vida, de vez que, para a lei, o fim da pessoa só ocorre depois do último alento. O fato de dizer que se está intervindo para salvar a vida do nascituro, uma vez que é impossível salvar a vida da gestante, não justificaria tal atitude. Só seria lícita a intervenção depois de confirmada a morte da mãe. Assim, a cesárea in extremis nem estaria no arbítrio do médico nem mesmo no consentimento dos familiares.

Para outros, não seria ilícito intervir numa moribunda com indicação permanente e indiscutível de cesariana, mesmo se sabendo que essa intervenção levaria mais cedo à morte. A cesárea estaria configurada como uma propedêutica de alto risco, principalmente se existir o manifesto desejo da gestante, quando as condições do concepto se tornarem críticas e quando a família endossa a intervenção. Fernando Magalhães dizia: “Quando a permanência de uma vida acarreta fatalmente o desaparecimento de ambas, sacrifica-se a que não pode ser poupada”.

20.13. GRAVIDEZ, MORTE ENCEFÁLICA E TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS

O cenário da morte quando envolve uma paciente grávida sempre merece considerações em virtude dos conflitos existentes, levando em conta os princípios da preservação de uma vida incipiente e dos cuidados que exigem o fim da existência humana.

Neste complexo quadro há quatro situações que podem ensejar alguns dilemas éticos: a das pacientes em estado vegetativo continuado ou persistente, em estado vegetativo permanente, das pacientes terminais e das pacientes em morte encefálica.

A manutenção da gestação de uma grávida paciente terminal (quando sua doença não responde mais a nenhuma medida terapêutica conhecida e aplicada, sem condições portanto de cura ou de prolongamento da sobrevivência) ou mesmo enquanto paciente em estado vegetativo continuado ou persistente (quando apresenta lesões recentes do sistema nervoso central, com ou sem diagnóstico definido, mas que deve ter seus cuidados conduzidos nos moldes dos pacientes salváveis, merecendo assim todo suporte vital necessário e disponível) ou na qualidade de paciente em estado vegetativo permanente (quando não tem nenhuma evidência de consciência, não se expressa e não entende os fatos em torno de si, não responde a estímulos visuais, auditivos, táteis e doloroso, mas que tem preservadas as funções do hipotálamo e do tronco cerebral e por isso sobrevive com respiração autônoma, por muitos meses ou anos) não é a mesma coisa de uma gestação que ocorre em um mulher com o diagnóstico de morte encefálica (quando diante de um processo irreversível, clinicamente justificado por coma aperceptivo, ausência da atividade motora supraespinhal e apneia, e complementarmente por exames que comprovem a ausência da atividade elétrica cerebral, ou ausência das atividades metabólica cerebral, ou ausência de perfusão sanguínea cerebral).

Quando esta gravidez incide sobre uma paciente terminal ou em estado vegetativo permanente, mesmo que a doença não possa ser debelada ou curada, é imperioso que se mantenha a assistência e os cuidados para uma sobrevivência confortável e sem sofrimento físico ou psíquico, ainda que paliativos. Ao lado disso não há como negar, estando ela grávida, tenha toda assistência de um pré-natal que, mesmo tão complexo e difícil, deve ser conduzido da melhor forma possível.

Com mais razão se esta gravidez incide sobre uma paciente em estado vegetativo continuado ou persistente (com lesões recentes do sistema nervoso central), pois como tal ela está no rol dos pacientes salváveis, devendo merecer todo suporte vital necessário e disponível, além dos cuidados que se deve ter com uma gestante e com o filho que vai nascer, protegendo-o dos eventuais danos que possam ocorrer com os meios e medicamentos usados. Até porque não se pode descartar a recuperação da gestante.

Por outro lado, mais complexa fica a situação em que a grávida se encontra em morte encefálica.

Se não fora a gravidez, a suspensão dos meios artificiais de um paciente com diagnóstico baseado nos critérios rigorosos do protocolo de morte encefálica não traria nenhum problema nem se poderia falar em eutanásia, pois este indivíduo já estaria morto pelo conceito atual que se tem de óbito. A morte teria ocorrido “no seu tempo”, sem antecipação ou prolongamento desmedidos.

Desta forma, permitir que alguém continue vivendo uma vida apenas biológica, mantida por aparelhos, sem levar em consideração o sofrimento do paciente e a inutilidade do tratamento é agir contra a dignidade humana. Se alguém defende tal permanência, apenas por considerar a “santidade da vida”, certamente tem nessa obstinação uma forma indisfarçável de atentado à dignidade dessa pessoa. Todavia, é diferente se neste contexto existe uma gravidez cujo feto de desenvolve normalmente. Daí a pergunta: o que fazer?

Para aqueles que são contrários à manutenção deste estado de morte encefálica, embora seja possível sob o ponto de vista médico, há aspectos econômicos, bioéticos e emocionais que invalidam o uso desproporcionado de tal conduta e a inadequação de sua aplicação. Os defensores do princípio bioético da justiça ou da equidade indicam o alto custo operacional desta conduta de preservar a paciente e o feto pelo alto custo do tratamento num centro de terapia intensiva. E mais: pelo fato de se privar este leito na recuperação de pacientes salváveis.

Outros se baseiam na própria lei penal brasileira que não se refere a casos de interrupção de gravidez em mulheres em morte encefálica, não punindo apenas nas situações em que aborto é feito em casos de estupro ou de perigo real da mãe.

E finalmente aqueles que não aceitam a continuidade deste estado de morte encefálica em face do desgaste emocional da família e do respeito que se deve à vida humana na dimensão que exige a dignidade de cada homem e de cada mulher.

Se perguntassem minha opinião, mesmo diante da possibilidade da utilização de órgãos para transplantes em diversas pessoas, enxergaria a situação por outro ângulo.

A vida humana, independente da sua qualidade, tem finalidades e objetivos que ultrapassam seu aspecto meramente imediatista. Esta qualidade de vida não significa tão somente a habilidade de alguém realizar certos atos e habilidades. Há compromissos sociais e humanitários que transcendem a estas aptidões. Se não seu conceito seria pobre e mesquinho.

A qualidade e a sacralidade da vida são valores que podem estar aliados. É inaceitável essa desvinculação absoluta que se faz entre sacralidade e qualidade da vida. Estes princípios não se excluem. A qualidade da vida deve ter uma compreensão mais delicada, como se fora uma extensão do próprio respeito a sua sacralidade.

A vida humana tem algo muito forte de ideológico e, portanto, não pode ter seus limites em simples fases de estruturas celulares. Se o embrião humano é ou não pessoa de direito, parece-nos mais uma discussão de ordem jurídico-civil, que não adota os fundamentos da biologia, embora seja difícil entender como podem existir, entre indivíduos da mesma espécie, uns como seres humanos pessoas e outros como seres humanos não pessoas.

Os pacientes que aguardam órgãos para transplante com certeza terão outras oportunidades. Mas o feto tem apenas esta oportunidade para realizar seu destino de criatura. Assim, estaremos ajudando a salvar o mundo. Apesar de todos os seus horrores, este é o mundo dos homens. Esta é também a forma de ele reencontrar o caminho de volta a si mesmo, em espírito e em liberdade.

Se nada restar, ficará o exemplo que não morre e é maior em cada novo gesto.

20.14. A PARTICIPAÇÃO MÉDICA NA PENA DE MORTE

A consciência atual, despertada pela insensibilidade e pela indiferença do mundo tecnicista, começa a se reencontrar com a mais indeclinável de suas normas: o respeito pela vida humana. Até mesmo nos momentos mais graves, quando tudo parece perdido, dadas as condições mais excepcionais e precárias – como nos conflitos internacionais, na hora em que o direito da força se instala negando o próprio Direito, e quando tudo é anormal e inconcebível, ainda assim, o bem da vida é de tal grandeza que a intuição humana tenta protegê-la contra a insânia coletiva, criando-se regras que impeçam a prática das crueldades inúteis.

Quando a paz passa a ser apenas um momento entre dois tumultos, o homem – o Cristo da sociedade de hoje – tenta encontrar nos céus do amanhã uma aurora de redenção. A ciência, de forma desesperada, convoca os cientistas do mundo inteiro a se debruçarem sobre as mesas de seus laboratórios, na procura dos meios salvadores da vida e da saúde do homem. Na mesa das conversações internacionais, mesmo entre intrigas e astúcias, os líderes de todos os países procuram a fórmula mágica da paz, evitando assim o cataclismo universal.

Um pensamento dessa ordem, portanto, é inconciliável com o instituto da pena de morte. Ninguém pode admiti-la, na hora presente, como recurso do estado na proteção social. Basta ver a incidência galopante da criminalidade nos climas onde se adotou aquela medida. Os países escandinavos, que aboliram há muito tempo a pena capital, têm uma incidência criminal de a metade da Inglaterra e de um terço dos Estados Unidos.

A Justiça, em que pese todo o seu esforço, tem dificuldade para decidir sobre uma ação de despejo, quanto mais para uma decisão irrevogável e irreparável. A pena de morte – a mais primitiva das punições – é uma terapêutica desesperada, extrema, odiosa, uma ideia defendida por mentes apressadas e ansiosas, uma forma aparentemente simplista de resolver um problema de tamanha gravidade. O alvo da pena é ressocializar, tratar corrigindo e disciplinar elevando. A pena de morte compromete a ordem social, tem um caráter eminentemente antiestético e subverte toda filosofia penal. Até o poder de intimidação é ilusório.

Mesmo assim, recentemente, os jornais do mundo inteiro noticiaram a condenação à morte de um homicida nos EUA, através do novo método de execução: injeção intravenosa de tiopental de sódio. Além do aspecto discutível da pena de morte, agora surgia no palco dessa tragédia um novo personagem: o médico. E desse modo, da maneira mais insólita e descabida, sem acanhamento ou disfarce, pratica-se o homicídio médico deliberado e a sangue-frio, e, cinicamente, defende-se tal direito. Como se já não bastassem as deploráveis participações médicas nos campos de concentração nazistas, de 1938 a 1945, quando cientistas de mentes frias, e em nome da “ciência”, utilizaram indefesos prisioneiros como cobaias nas mais torpes e indecentes experiências.

E não se diga que a participação do médico na pena capital, por injeção venosa de veneno, encerra aspectos discutíveis, simplesmente pelo fato de atuar na escolha e preparação da substância, ou só em observar a introdução lenta de uma droga, cuja aplicação é feita por não médicos. Aceitar-se, diante de tais razões, a não responsabilidade médica não é só um sofisma. É também uma forma cínica de empanar um gesto antiético. E se o médico pertence a uma dessas estruturas judiciárias, como proceder? Deve a Medicina inclinar-se ante o Direito? A incompatibilidade das concepções práticas e concretas da Medicina e do Direito resulta cada vez mais evidente, com o desenrolar dos acontecimentos e das necessidades. Há momentos em que se tem de aceitar a prevalência da arte hipocrática, embora se admita que o legislador nem sempre possa abrir mão das prerrogativas que consagram e protegem a ordem pública. Aqui impõe-se de forma imperativa a consciência médica: o facultativo não pode nem deve participar ativamente numa sessão de pena de morte, não só pela razão do seu próprio ofício, mas também pelo seu mais eloquente e histórico compromisso. Ainda mais: a participação direta ou indireta do médico em práticas dessa natureza é a simples subversão da ordem e do pensamento médico, e não se pode, de forma alguma, excluir desse profissional a responsabilidade moral e a infração aos mais elementares princípios da deontologia.

Assim, mesmo não existindo a pena de morte em nosso país, o Código de Ética Médica, prevenindo-se, frontalmente colocou-se contrário. Embora os médicos individualmente possam ter posições doutrinárias divergentes quanto à pena capital, não podem eles participar das execuções (ver a Resolução de Lisboa, adotada pela 34.ª Assembleia-Geral da AMM).

20.15. CUIDADOS PALIATIVOS

Hoje, na medida em que aumentam as possibilidades de salvar e prolongar a vida, criam-se, inevitavelmente, numerosos e complexos dilemas éticos, os quais permitem maiores dificuldades para um conceito mais ajustado do fim da existência humana. Assim, a crescente eficácia e a segurança das novas propostas terapêuticas não deixam de motivar questionamentos quanto aos aspectos econômicos, éticos e legais resultantes do emprego desproporcionado de tais medidas e das possíveis indicações inadequadas de sua aplicação. O cenário da morte e a situação do paciente que vai morrer são as condições que ensejam maiores conflitos neste contexto, levando em conta os princípios, às vezes antagônicos, da preservação da vida e do alívio do sofrimento.

A medicina, mesmo a mais capacitada tecnologicamente, não tem apenas o compromisso de curar sempre, mas o de minorar o sofrimento, aliviar o desconforto e oferecer condições dignas de uma sobrevivência respeitosa. Por isso, não se pode privar o paciente terminal ou em estado vegetativo permanente naquilo que pelo menos é primordial na sua assistência.

Por outro lado, não é justo que se use o que se chama de “obstinação terapêutica” ou “terapêutica fútil”, que não é outra coisa senão um comportamento médico desmedido que abusa de meios ou recursos às vezes inconfessáveis, cujos resultados são nocivos e inúteis em face da impossibilidade de cura e de sobrevivência. Não se deve confundir “futilidade terapêutica” com cuidados paliativos, pois estes representam o apoio permanente e necessário para preservar uma qualidade de vida do paciente no fim da vida, dentro de um quadro inevitável de morte, desde que ela seja justa e no tempo certo.

É necessário entender também que as limitações das possibilidades de cura não devem interromper a relação médico-paciente. Apenas obriga a repensar um novo modelo, em que o médico “segue os passos do paciente”, e que a ética mais obstinada e o legalismo menos consequente não apontem caminhos desumanos ou cruéis. Aqui o médico deve acompanhar o “paciente doente” e não a “doença do paciente”.

Fato importante nesta discussão é conceituar de forma clara e convincente o que se considera de meio ordinário ou extraordinário. Às vezes se colocam de forma muito subjetiva e simplista tais condições. O risco é se adotar medidas ditas desproporcionais baseadas simplesmente em critérios econômicos e financeiros, pois isso pode ser por demais restritivo em certos momentos em que se venha decidir por questões ilícitas e amorais. Este é o maior risco: o de as empresas de planos e seguros de saúde, por exemplo, apontarem o que é “proporcional” ou “desproporcional”.

O certo é que nem sempre será fácil estabelecer com precisão um limite entre o que é ordinário e o que é extraordinário quando nos referimos aos meios de preservação da vida em situações como as dos pacientes insalváveis. Parece-nos muito mais importante nesta análise as impossibilidades morais do que as condições físicas ou econômicas. Neste contexto deve prevalecer o princípio de a proporcionalidade dos cuidados não ser tão simples, pois ele não termina na avaliação da qualidade da vida. Devem influenciar o raciocínio médico, as razões da família e o que admite o paciente sobre a insistência das medidas terapêuticas. O fundamento ético impositivo de uma necessária assistência a um paciente terminal é a predisposição de melhores condições para que este doente conviva com sua doença e, eventualmente, com sua morte. Um dos erros dos defensores mais intransigentes da ética da qualidade da vida, como já dissemos, é admitir que ao paciente se deem todos os cuidados ou não se dê nenhum, agindo, assim, de maneira tão caprichosa e simplista sobre questões quase sempre complexas e difíceis.

A regra de ouro é esta: para os pacientes terminais e os pacientes em estado vegetativo permanente, mesmo que a doença não possa ser debelada ou curada, é imperioso que se mantenha a assistência e os cuidados para uma sobrevivência confortável e sem sofrimento físico ou psíquico, ainda que paliativos.

Além desses cuidados paliativos estritamente “profissionais”, deve seguir no mesmo passo um modelo de resgate de uma convivência mais humana entre o doente e a equipe multiprofissional, no sentido de oferecer uma assistência digna do respeito que se deve à condição humana. Neste projeto não se pode esquecer da contribuição dos familiares.

O Conselho Federal de Medicina, por meio de sua Resolução n.º 1.805/2006, legislando urbi et rrbi, mesmo assegurando que “o doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar” e que lhe “é assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica”, irrompe o curso de sua Resolução, no artigo 1.º, dizendo que “é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”.

Não acredito que os médicos seguiram tal orientação, atropelando e descumprindo princípios constitucionais. Se não, ainda bem.

20.16. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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