Sumário: 9.1. Introdução. 9.2. Aspectos legais. 9.3. A ordem administrativa e o exercício médico. 9.4. A consciência do perigo. 9.5. Plantão “a distância”. 9.6. Condutas na urgência e na emergência. 9.7. Referências bibliográficas.
Código Penal
Art. 135. Deixar de prestar assistência, quando é possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o auxílio da autoridade pública:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Art. 135-A. Exigir cheque caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.
Código de Ética Médica
I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.
IV – Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.
VI – O médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício. Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade.
XII – O médico empenhar-se-á pela melhor adequação do trabalho ao ser humano, pela eliminação e controle dos riscos à saúde inerentes às atividades laborais.
XXII – Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.
XXV – Na aplicação dos conhecimentos criados pelas novas tecnologias, considerando-se suas repercussões tanto nas gerações presentes quanto nas futuras, o médico zelará para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada à herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade.
RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL
É vedado ao médico:
Art. 1.º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.
Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.
Art. 2.º Delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da profissão médica.
Art. 3.º Deixar de assumir responsabilidade sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente.
Art. 4.º Deixar de assumir a responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado, ainda que solicitado ou consentido pelo paciente ou por seu representante legal. (...)
Art. 7.º Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, expondo a risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria.
Art. 8.º Afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem deixar outro médico encarregado do atendimento de seus pacientes internados ou em estado grave.
Art. 9.º Deixar de comparecer a plantão em horário preestabelecido ou abandonálo sem a presença de substituto, salvo por justo impedimento.
Parágrafo único. Na ausência de médico plantonista substituto, a direção técnica do estabelecimento de saúde deve providenciar a substituição. (...)
Art. 12. Deixar de esclarecer o trabalhador sobre as condições de trabalho que ponham em risco sua saúde, devendo comunicar o fato aos empregadores responsáveis.
Parágrafo único. Se o fato persistir, é dever do médico comunicar o ocorrido às autoridades competentes e ao Conselho Regional de Medicina.
Art. 13. Deixar de esclarecer o paciente sobre as determinantes sociais, ambientais ou profissionais de sua doença. (...)
Art. 20. Permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade.
Punir a omissão de socorro não é fato novo. Há referências a esse delito no Código de Manu e no direito hebraico. Existia entre os romanos a obrigação de proteger os escravos em favor dos senhores e seus parentes, e os soldados e oficiais, como uma verdadeira imposição legal de amparar o direito de terceiros. O direito egípcio considerava criminoso aquele que podendo salvar um ferido permanecesse impassível.
Todavia, foi com o direito moderno que se impôs como forma de obrigação a solidariedade humana, estimulando o altruísmo como um dever cívico. O Código Penal de 1890 considerava apenas os recém-nascidos expostos e os menores de sete anos, talvez por inspiração do Código sardo-italiano de 1859.
A lei penal brasileira vigente, ao tratar da omissão de socorro, afasta-se da repressão ao crime e passa a estimular a mútua colaboração que deve existir entre os homens, na expectativa de assegurar os valores individuais e coletivos. O bem jurídico protegido é o interesse do estado pela segurança física da pessoa humana, quando necessitada de socorro imediato.
Trata-se de uma forma de solidariedade civil e humana, por imposição da lei. Não é apenas um dever moral, mas, sobretudo, uma obrigação legal. De simples bem ético, passou a ser um dever jurídico.
É o incentivo à assistência recíproca que deve haver entre os homens numa sociedade organizada, tornando dever de cada um, dentro de suas reais possibilidades, a assistência a outrem em iminente perigo de vida. Constitui-se numa obrigação criada diante de determinados fatos, pela necessidade imperiosa de evitar um dano, cujo perigo é real, inadiável e grave, mesmo que a situação tenha sido criada pelo próprio periclitante. É um crime eminentemente doloso.
As legislações modernas, que tendem cada vez mais a socializar-se, fazem do sentimento de solidariedade humana e da assistência recíproca um dever geral de prestação de socorro, sob forma obrigatória e coercitiva. Em alguns códigos estrangeiros, a violação desse sentimento não chega a configurar-se num crime, mas apenas em contravenção.
Se alguém se sente incapaz de prestar socorro com eficiência, deverá recorrer a outrem, principalmente se aquele é o indicado para tal fim. No entanto, há circunstâncias em que, mesmo procurando-se socorro da autoridade, pela configuração do caso, pode-se considerar omissão de socorro quando a própria pessoa poderia prestar o atendimento. O dispositivo penal, ao referir-se à autoridade pública, o faz àquele que, pela própria natureza de seu ofício, está capacitado a intervir.
No caso de existirem várias pessoas na obrigação de prestar assistência, e uma delas apenas o faz, esse fato exime os restantes de tal responsabilidade, a não ser que a ajuda de mais alguém seja imprescindível. Porém, se nenhum dos presentes presta assistência, todos serão responsabilizados pela omissão de socorro.
Essa assistência imposta pelo nosso diploma legal deve ser prestada não apenas quando as circunstâncias exigirem, mas também quando for possível realizá-la sem risco pessoal e sem violar interesses maiores. Por outro lado, é necessário que a alegação da não prestação de socorro não se prenda a pretextos fúteis ou pequenos danos. É claro que a lei não poderia exigir que sempre diante de um periclitante um homem se transformasse em herói ou bom samaritano, a ponto de sacrificar-se pelo seu próximo. Entretanto, achamos que existem profissões que pelo seu próprio caráter acarretam a exigência de determinados riscos. Assim é o salva-vidas, o policial e o soldado do fogo. O médico, pelo seu sentimento ético e pela sua consciência profissional, deve, até certo ponto, correr o risco pessoal que certas circunstâncias impõem, pois o fundamento de sua profissão é socorrer seus semelhantes.
O risco moral ou patrimonial não exclui o delito. Todavia, o risco para uma terceira pessoa pode configurar a excludente do estado de necessidade.
O fato de não ter havido dano real não exclui nem atenua a situação do omitente. Se, ao contrário, da omissão de socorro resulta lesão corporal de natureza grave ou morte, configura-se o agravante.
Na omissão de socorro o bem tutelado é a vida e a saúde de outrem. O patrimônio ou a liberdade não são elementos que caracterizem o delito, pois tal espécie está incluída no capítulo dedicado à periclitação da vida e da saúde.
Enquanto que para o leigo não existe obrigação de prestar socorro se ele está ausente do local onde deveria dar a assistência, para o médico, cuja intervenção é necessária, pois de sua ausência poderia resultar risco ao periclitante, a situação é diferente. Para este o delito está configurado desde que, avisado de um perigo cuja gravidade seria ele a única pessoa capaz de avaliar, mesmo assim recusa seu atendimento sem assegurar-se se esse perigo era ou não de intervenção imediata.
O Tribunal de Saint Claude condenou um médico que se absteve de atender uma pequena enferma, após o desentendimento de um de seus colegas com a família da criança, a qual veio a falecer posteriormente. Em 1964, numa das cidades do Leste da França, um profissional teve decretada sua prisão preventiva por negar-se a atender um rapaz golpeado por uma facada mortal (Louis Kornprobst, Omissão de socorro, Boletim da Associação Médica Brasileira, n. 107-108, p. 14, nov.-dez. 1971).
A Câmara Criminal de Paris, em 1961, decidiu que, mesmo receitando remédio sem se deslocar – o que à primeira vista parece uma forma de socorro –, o médico, ainda assim, havia praticado a abstenção (Louis Kornprobst, op. cit., p. 15).
Mesmo quando a assistência médica é materialmente impossível, e o paciente vem a falecer em consequência dessa omissão de socorro médico, ainda assim existe o fato delituoso, embora a impossibilidade acima referida possa ser levada em conta como atenuante. Assim decidiu a Corte de Cassação de França, numa sentença proferida em 1.º de fevereiro de 1955.
Configuram-se como omissão de socorro: a alegação do médico de estar de folga quando não existe outro na localidade; a recusa de tratar o paciente em perigo de vida que não tem recursos para o depósito prévio; a alegação de não existir, entre o hospital e o periclitante, convênio com a sua instituição assistencial.
Ao enunciar o crime de omissão de socorro, o Código refere-se à criança abandonada ou extraviada, o que torna obrigatório o amparo e a prestação de assistência que merecem tais situações.
Logo depois, a pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo. Por invalidez considera-se a situação ou o estado, por causa qualquer, que torna incapaz o indivíduo de valer-se de si próprio, sem forças para dominar o perigo, e que necessita de auxílio por dano sério e imediato.
Não importa que a lesão seja de natureza leve, bastando apenas que a vítima esteja na situação de não poder cuidar de si mesma, carente de socorro e incapaz de se valer por seus próprios meios.
Por grave e iminente perigo deve se entender a situação de grande vulto e consideráveis proporções prestes a desencadear o dano, efeito ou consequência. O iminente perigo de vida não é uma situação de difícil avaliação, bastando a certeza de grande sofrimento ou a presunção de resultado danoso, exigindo-se a intervenção desde que se tenha conhecimento de sua possibilidade.
O elemento objetivo do crime é a vontade livre e consciente de não prestar a assistência devida.
Embora esses preceitos não se destinem apenas aos médicos, é claro que, pela natureza de sua profissão, são eles os mais indicados a prestar assistência nos casos de maior gravidade, em que a vida ou a saúde de alguém está em perigo iminente.
Agora, com a Lei n.º 12.653, de 28 de maio de 2012, foi incluída no Código Penal, com o título de Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial, a figura do artigo 135-A, com a seguinte redação: “Exigir cheque caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte”.
O estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar emergencial fica obrigado a afixar, em local visível, cartaz ou equivalente, com a seguinte informação: “Constitui crime a exigência de cheque caução, de nota promissória ou de qualquer garantia, bem como do preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial, nos termos do art. 135-A do Decreto-lei n.o 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal”.
Na verdade, tal procedimento já era vedado desde 2003, quando passou a vigorar a Resolução Normativa n.º 44 da Agência Nacional de Saúde (ANS). Se mais não fosse, veja o que diz a Constituição Federal: “Artigo 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”; “Artigo 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”.
Outro fato que tem causado inúmeras polêmicas é saber se o médico pode recusar sua intervenção, alegando o cumprimento de determinada ordem administrativa, quando as circunstâncias confirmam um caso de perigo de vida.
Em princípio, sabemos que a norma é uma regra de conduta que exprime um dever, prescrevendo uma obrigação para alcançar determinado fim. Surge por imposição das necessidades, dos abusos e dos desgastes existentes. O administrador ao baixar a determinação não tem em mente um caso concreto, pois a lei é geral e abstrata.
O que torna a lei justa é a sua aplicação a uma determinada situação, isto é, a aplicação do geral ao particular. Quem cria a norma não pode estar ciente de todas as eventualidades possíveis e imagináveis.
Sendo assim, o administrador não pode ser responsável quando o médico deixa de atender, em caso extremo, um paciente, mesmo que venha a alegar o cumprimento de determinada disposição administrativa.
O princípio técnico da liberdade de trabalho não afeta a condição de ser a medicina uma profissão que necessita de certa desenvoltura em seu exercício, pelo seu grande interesse social e pelas situações que surgem.
A vida de uma pessoa não pode ficar na dependência de uma determinação pessoal, nem sujeita à frieza e à impessoalidade de uma norma abstrata. Deve-se agir de acordo com a consciência profissional, sem que se seja responsabilizado por qualquer de suas consequências. Quando um médico atende um doente em iminente perigo de vida, está, juridicamente, muito mais próximo dele que da instituição para quem trabalha ou do que determina a lei.
Não se pode, simplesmente, citar o texto normativo quando uma pessoa necessita urgentemente dos serviços médicos, pois a tarefa do profissional da Medicina é aplicar todos os meios e recursos necessários de que dispõe para salvar essa vida, mesmo com sacrifício próprio. É certo que o médico, em tais circunstâncias, será sempre censurado. Porém, entre dois inconvenientes, melhor que isso aconteça por ter prestado socorro necessário. Dificilmente alguém poderá ser punido quando, diante de um estado de necessidade, vier a contrariar uma norma jurídica ou uma ordem de uma autoridade pública.
É preciso que se entenda não ser o médico, no exercício de sua profissão, um simples locador de serviços, sujeitando sempre a validade de seu trabalho a uma determinação administrativa. O que irá definir a liceidade da dimensão do seu exercício não será essa determinação, mas uma consciência fortalecida na necessidade e no dever.
Em certas ocasiões, nem sempre é fácil aceitar a intervenção de normas numa profissão que exige aspectos de conduta pessoais, morais, éticos e ocasionais, como a medicina. As relações médico-administrativas nem sempre se apresentam de fácil entendimento. A lei e a ética, a norma e a consciência, representadas nas figuras do administrador e do médico, estão em conflito, em várias situações da prática corrente da profissão médica.
Em determinados momentos, o médico passa a ser o único árbitro capaz de entender até que ponto uma conduta pode trazer benefício ao doente, auscultando sua arte e sua consciência, e desprezando, quando for o caso, uma norma burocrática estabelecida. Cria-se um direito que a lei não outorga: o direito de salvar.
Tendo a vida humana um valor absoluto e incondicionado, e sendo a missão principal do médico salvar vidas, quando a intervenção é absolutamente indispensável pode ele empregar todos os meios de que dispõe: sua arte, sua ciência e até recursos que contrariem o próprio direito.
Aceitar pura e simplesmente a frieza da imposição de uma norma administrativa é, sem sombra de dúvida, omissão de socorro, sujeitando-se o médico a responder pela não intervenção. Salvar um direito ou um bem, mesmo contrariando uma norma, é justificável sempre que se procure preservá-lo de um perigo real, iminente e inadiável.
O certo é que a presença de alguém em perigo constitui fato raro para o leigo, enquanto que para o médico essa situação é um acontecimento trivial e cotidiano, não fazendo a lei, entretanto, no que diz respeito à omissão de socorro, qualquer distinção entre eles.
Diante de uma pessoa em iminente perigo de vida, as obrigações do médico não diferem daquelas de qualquer cidadão, mesmo que tenha qualificação profissional específica para o tratamento da pessoa enferma, o que apenas poderia agravar um pouco mais a sua situação.
Quando o profissional da medicina é chamado a intervir, sendo o perigo de vida informado por um terceiro, na maioria das vezes torna-se impossível avaliar a gravidade do caso. É muito comum os parentes exagerarem a situação, por remorso ou como forma de levar mais rápido o médico até o paciente. Há fatos que são gravíssimos e passam despercebidos pelos familiares, e outros que, embora de aparente gravidade, não constituem perigo, sendo exagerados pelo psiquismo do enfermo ou dos circunstantes. A verdade é que nos chamados desesperados, apontados como de grande gravidade, a emergência nem sempre está justificada.
O interessante, no entanto, será observar o comportamento do médico no momento em que é chamado a intervir. Discute-se se é neste instante que ele deverá apreciar o perigo, sabendo-se de antemão que não serão as consequências posteriores que irão justificar se o perigo era real ou aparente, ou se a assistência seria ineficaz. Tomam-se em consideração simplesmente o exato momento do chamado e a necessidade de uma intervenção imediata. A lógica manda que o médico se desloque de imediato até o paciente, a fim de ter a consciência do perigo de vida, pois jamais poderiam os familiares oferecer uma descrição perfeita dos sinais clínicos, não apenas pela falta de conhecimentos, mas sobretudo pela tendência de pressionarem o médico através do exagero, no sentido de obterem, assim, o socorro imediato.
Não se pode negar que, pensando-se dessa forma, passarão os pacientes e seus familiares a exigir sempre a presença do médico, chegando muitas vezes ao abuso e à exploração, mas, indiscutivelmente, a única maneira de certificar o perigo de vida será sempre a presença do profissional junto ao doente.
Enquanto que para o leigo o crime de omissão de socorro se configura no momento em que a pessoa presencia a gravidade, para o médico esse conceito é muito mais elástico, devido principalmente à sua consciência, e porque, sendo ele um profissional da medicina, fatos dessa natureza se revestem de habitualidade.
Deve existir, para o médico, certa prevalência nos chamados de urgência quando da necessidade de atendimentos simultâneos. Sob o ponto de vista civil, está ele obrigado a atender, em primeiro lugar, um paciente conhecido, pois com o outro cliente ainda não se estabeleceu uma relação contratual jurídica. No entanto, o mais correto será o médico avaliar qual seja a situação mais grave, pois o dever humano manda que seja atendido, em primeiro lugar, o caso mais desesperador.
Há situações em que, na prática, o perigo de vida pode ser avaliado a distância, como, por exemplo, uma mulher em trabalho de parto com um grande sangramento. Quando as condições de perigo são desconhecidas, deve o médico estabelecer a seu critério a prioridade de atendimento, sem contudo deixar de fazer alguma coisa em favor do outro. Não lhe pode caber nenhuma censura por qualquer eventualidade surgida ao não atendido, pois ninguém pode exigir do profissional o dom da onipresença.
Qualquer que seja a dimensão de um estabelecimento de saúde que interna pacientes – agudos ou crônicos –, está ele obrigado a dispor permanentemente de médico plantonista. Essa é a regra. Se tal unidade hospitalar não pode oferecer esse mínimo requisito, não tem condições éticas e técnicas de funcionamento. Nem muito menos deve o setor público ou privado manter com ela convênios médico-assistenciais, em virtude da ausência de tão elementar necessidade.
Com muito mais razão, exija-se dos serviços nosocomiais que se credenciem e se prestem ao atendimento de urgências e emergências médicas. Aí, em face das vastas proporções no seu âmbito assistencial, reside um dos setores mais significativos da prática médica, cuja importância resulta na própria gravidade e na delicadeza de cada situação. Não é exagerado afirmar-se que a vida das pessoas de uma comunidade depende muito da qualidade e da presteza de suas decisões. Em suma, esses serviços devem estar sempre bem estruturados e, hoje, mais do que nunca, assistidos por um número de médicos capaz e suficiente para o adequado atendimento, naquilo que o caso requer. Para tanto, de-vese evitar toda e qualquer possibilidade de omissão e de negligência. Nesse particular, desempenha papel de grande importância o diretor-clínico, cuja função, entre outras, é organizar as ações de saúde e disciplinar as escalas de serviços.
Desse modo, não se pode conceber a existência de um serviço de tal magnitude, desfalcado do seu elemento mais importante, ou representado, de forma escamoteada, pelos denominados plantonistas “a distância” ou “de sobreaviso”. Todo serviço de urgência deve ter obrigatoriamente seus plantonistas ou suas equipes de plantão, não só pelas sucessivas ocorrências que chegam ao hospital, senão também pela observação, assistência e cuidados aos pacientes internados, sujeitos às mudanças de seus quadros clínicos. Fora dessa concepção, compromete-se o mais fundamental e o mais dogmático de todos os dispositivos do Código de Ética Médica: “O alvo de toda atenção do médico é a saúde do ser humano”.
Por esses e outros tantos fatos, impõe-se, imperativamente, que os serviços de urgência dos hospitais sejam muito bem estruturados e assistidos por médicos plantonistas nas 24 horas do dia, e que isso esteja determinado nos regimentos internos do Corpo Clínico de cada unidade hospitalar, como exigência dos Conselhos de Medicina. No momento do registro das empresas de prestação de serviços médico-hospitalares, deve ser exigido que conste não só a relação dos profissionais legalmente habilitados, como também uma cláusula onde fique patente o compromisso da presença de plantonista ou de uma equipe de plantão nos serviços de urgência.
Assim, a omissão do plantonista constitui infração ético-disciplinar, pois são vedados ao médico: “praticar atos profissionais danosos ao paciente, que possam ser caracterizados como imperícia, imprudência e negligência”, “delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivas da profissão médica” (quando se deixa o plantão com estudantes de medicina), “deixar de atender em setores de urgência ou emergência, quando for sua obrigação fazê-lo, colocando em risco a vida do paciente, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria”, “afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem deixar outro médico encarregado do atendimento de seus pacientes em estado grave” e “deixar de comparecer a plantão em horário preestabelecido ou abandoná-lo sem a presença do substituto, salvo por motivo de força maior”.
Coisa diferente é o elenco de especialistas credenciado para complementar o diagnóstico ou a terapêutica nas ocorrências fortuitas, pois seria impossível manter-se num mesmo plantão duas ou três dezenas de facultativos capazes de atender um ou outro caso isoladamente. Certas especialidades, como otorrinolaringologia, oftalmologia ou neurologia podem ser solicitadas a darem sua contribuição complementar. Todavia, esse não é o modelo, verbi gratia, para a anestesiologia.
Com esse enfoque, resta evidente que, se um hospital está credenciado para o atendimento de urgência e, por uma ou outra razão, não tem o paciente tal atendimento, é possível que a pessoa jurídica responda civilmente pelos danos verificados. Os médicos responsáveis pelo socorro e os seus superiores imediatos, coniventes ou corresponsáveis pela omissão, podem ser arguidos em suas responsabilidades ética e legal, mesmo estando eles escudados no que se chamou de plantonistas “de retaguarda” ou “de sobreaviso”. Na prática, um pronto-socorro geral não pode deixar de contar com anestesistas e cirurgiões, as maternidades com obstetras e anestesistas e as UTIs com os intensivistas, 24 horas do dia.
Em tese, a falta ao plantão reveste-se de características de infração ética, seja por deliberada intenção, seja pela ausência de comunicação ao setor competente do hospital, para que sejam tomadas as devidas providências. Por isso, deve a autoridade hierarquicamente superior ao plantonista estar ciente para promover a imediata substituição, evitando, dessa maneira, a descontinuidade do atendimento. Fica claro ainda que, pelo dano produzido na ausência de um plantonista, não é apenas ele o responsável, mas também seu chefe imediato, caso não tenha tomado as medidas cabíveis ou haja concordado com expedientes acomodatícios e conciliatórios.
Enfim, se um paciente necessita de assistência urgente e não a tem, pelo fato de o médico encontrar-se de plantão “de sobreaviso”, constitui omissão de socorro. O Chefe do Serviço e o Diretor Clínico coniventes com o sistema do atendimento “a distância” são coautores, porque cabe a eles, em última análise, a tarefa de organizar e planificar o atendimento de urgência naquele tipo de hospital. Sendo eles os encarregados da qualidade e da sistematização do atendimento, não há como negar-lhes a obrigação de responder pela falta do atendimento, pois permitiram a permanência “a distância” do médico plantonista e esta ausência resultou em prejuízo. A decisão de ficar “de sobreaviso” foi a responsável pelos danos verificados. Ainda mais se o ato médico não prestado era específico daquela especialidade do médico omitente.
A Emergência Médica, como se sabe, é especialidade de vastas proporções e de procedimentos muito complexos, pelo fato de não se ater ao âmbito exclusivo de um ramo único da medicina, mas de se constituir da soma de todas as especialidades e de se apresentar sempre diante de situações ameaçadoras e graves. Sua importância resulta da própria gravidade e da delicadeza das ocorrências que lhe são confiadas, não sendo exagerado dizer-se que a vida de todos nós, de certo modo, depende muito da qualidade e da presteza de suas decisões.
Desta forma, trata-se de uma atividade difícil, a exigir do médico que a exerce um lastro de conhecimentos que ultrapassa o dos demais especialistas, visto que se envereda pelos caminhos de outras tantas áreas da atividade médica.
Também é preciso reafirmar que o politraumatizado não é um simples resultado do destino por um infortúnio ou acidente, mas o portador de uma síndrome cuja incidência é cada vez maior e perfeitamente evitável, através de políticas e estratégias que considere o paciente de trauma como portador de outra doença como outra qualquer.
Tem-se procurado fazer distinção entre urgência e emergência médicas. Parece-nos bizantina essa diferença. Tem apenas o interesse da contabilização de certos interesses burocráticos e financeiros dos gestores oficiais da saúde. Conceituam urgência como “a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência imediata”. E emergência como “a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo, portanto, tratamento imediato”. Em suma, em qualquer das situações definidas, o paciente necessitará sempre de atendimento imediato.
Desde há muitos anos estamos defendendo a Emergência Médica como especialidade distinta e autônoma. Sempre procuramos mostrar a importância dessa atividade e tentar criar entre os jovens médicos um espírito e uma metodologia voltados às Lesões Graves. Entendemos que não basta ser simplesmente médico para que alguém se julgue apto para exercer essa atividade com a devida competência. Como não basta a um médico ser simplesmente médico para que faça intervenções cirúrgicas. São necessárias táticas mais acuradas, adestramento adequado e aquisição paulatina de um raciocínio e de uma disciplina muito peculiares.
O poliferido é uma entidade diferente, para o qual nem sempre se podem empregar as práticas convencionais de tratamento, pois ele é, acima e antes de tudo, um doente complexo. Cada dia que passa maior é a incidência de politraumatizados e as estatísticas mostram sua alarmante mortalidade, exigindo, assim, por parte da burocracia assistencial, medidas mais enérgicas e mais específicas na luta difícil pela sobrevivência desse tipo de paciente.
O Conselho Federal de Medicina, na Resolução CFM n.º 1.451/1995, que trata dos estabelecimentos de pronto-socorro públicos ou privados estabelece que a equipe médica do pronto-socorro deverá, em regime de plantão no local, ser constituída, no mínimo, por profissionais das seguintes áreas: anestesiologia, clínica médica, pediatria, cirurgia geral e ortopedia. E que devem ter recursos técnicos indispensáveis, também com funcionamento ininterrupto em radiologia, laboratório de análises, centro cirúrgico, unidade de terapia intensiva, farmácia básica para urgência e unidade de transporte equipada. Aqueles serviços de urgência e emergência de maior complexidade deverão ser definidos em cada estado pelos Conselhos Regionais de Medicina, de acordo com a realidade e as disponibilidades de cada região.
Com certeza, é na urgência e na emergência que se evidenciam as situações mais graves e ameaçadoras da vida humana e, por isso, exigem medidas imediatas e especiais na proteção do assistido.
Em face das condições mais complexas em cada atendimento, a relação médico-paciente é diferente de outras formas de assistência, desde o primeiro contato com o pessoal burocrático até as circunstâncias precárias e tumultuadas no acolhimento do paciente.
É claro que nem sempre o médico tem condição de informar corretamente ao paciente sobre seu estado e explicar a conduta terapêutica disponível, obtendo, assim, deste o consentimento. Mais sério ainda é quando a relação se dá com um paciente menor grave que se apresenta sem a companhia dos seus responsáveis. Ou quando o paciente ou seus representantes recusam o tratamento, mesmo diante de ocorrências que exigem uma imediata intervenção.
O Código de Ética Médica elegeu o princípio da beneficência como o primeiro dos princípios, estando assim o médico na obrigação ética e legal de utilizar o tratamento salvador.
Outra situação bem significativa na relação do urgentista com o seu paciente é o respeito à sua privacidade, ficando assim o profissional na obrigação de manter sigilosas as informações colhidas no atendimento.
Os médicos que trabalham em urgência são muito solicitados sobre questões ligadas à morte encefálica, tanto para a suspensão de meios artificiais da vida como nos casos de uso de órgãos e tecidos para transplantação. Os critérios adotados para a definição na suspensão dos meios artificiais de vida estão definidos na Resolução CFM n.º 1.480/1997, devendo comunicar tal ocorrência aos representantes legais do paciente, antes de adotar qualquer medida adicional.
Quanto à transferência dos pacientes graves para outros setores especializados, não deve o médico colocar obstáculos se essa medida é tomada em favor de uma melhor assistência. Por outro lado, também não deve, por razões várias, transferir o paciente de maneira açodada, como quem quer descartar-se de uma responsabilidade.
Por fim, deve o urgentista considerar que, embora seu Código admita o direito de greve, no setor de urgência e emergência isto não pode ser levado ao extremo, mesmo estando ele respaldado por decisão majoritária de sua categoria.
Já as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) são consideradas como locais existentes dentro do hospital onde se realiza o atendimento em sistema de vigilância contínua a pacientes graves ou de risco, potencialmente recuperáveis.
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, através de sua Resolução n.º 71/1995, regulamenta as atividades das UTIs, estabelecendo critérios para os internamentos, a composição das equipes, a jornada de trabalho e a sua estruturação física.
Recomenda que o paciente quando internado na UTI tenha um médico responsável e, caso ele não disponha, que seja providenciado o mais rápido possível. Só na emergência podem ser tomadas medidas sem a concordância do médico responsável. A alta deve ser decidida entre a equipe da UTI e o médico responsável.
Nas questões mais delicadas, os intensivistas devem orientar-se pelos princípios fundamentais da Bioética, principalmente no que concerne ao internamento, às condutas terapêuticas e à alta.
O primeiro princípio a ser adotado é o da beneficência, ou seja, só internar o paciente se ele apresenta um potencial de salvabilidade, pois a UTI não se presta simplesmente para internar, mas para oferecer condições em favor da recuperação de um doente com expectativa de cura ou melhora.
Se o paciente não tem condições de recuperação, a UTI certamente não é o lugar apropriado para quem necessita apenas de apoio e conforto. Aí, aplica-se o princípio da não maleficência.
O princípio da autonomia, que para alguns constitui o primeiro dos princípios, deve ser acatado naquilo que diz respeito ao direito do paciente orientar-se com liberdade, seja recusando tratamento ou não aceitando medidas de ressuscitação. Esta questão deve ser bem avaliada pela equipe, pelo médico responsável e pela Comissão de Ética do hospital, embora, nos casos de iminente perigo de vida, o Código de Ética dos médicos manda tratar.
Finalmente que estes pacientes sejam tratados dentro de uma lógica que atenda aos limites da distribuição global dos recursos médico-hospitalares, e, no caso de eles serem escassos, usá-los quando estritamente necessários e onde venha se obter um resultado. É condenável, por todos os motivos, a utilização do chamado tratamento fútil, ou seja, daqueles que são inócuos ou incapazes de melhorar as condições do paciente, servindo apenas para prolongar o sofrimento e retardar uma morte irreversível. Essa forma de conduta, conhecida como paternalismo médico, é condenável sob todos os aspectos. Deve prevalecer, nestes casos, o princípio da justiça, desde que convenientemente aplicado.
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