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INTRODUÇÃO

EM FAVOR DO DIREITO MÉDICO

O avanço vertiginoso das ciências biológicas, notadamente no campo da biologia molecular e, mais precisamente, com notável feito dos estudos e aprimoramentos da cartografia do gene humano, nos remete a uma reflexão mais profunda do que isso representa nas relações jurídicas contemporâneas. E mais: como o direito propiciará fundamentos para sua discussão doutrinária e como o operador jurídico encaminhará suas razões nos pleitos apreciados pelos tribunais.

Certamente isto não será fácil a partir da concepção de que os assuntos da biotecnologia são intricados e que pertencem a um grupo muito reduzido de pessoas, as quais guardam tais informações de forma muito pessoal. Por outro lado, existe uma tradição em nosso ordenamento jurídico que questões desta ordem sejam de garantir quase de forma absoluta os que promovem programas nesta área do conhecimento. A tradição tem sido legislar e arbitrar a partir de uma opção consensual e anuente, e não sobre o que deriva das soluções mais controvertidas.

Ainda que se diga que tais projetos devam estar contidos em legislações específicas e rigorosas, faz-se mister repetir que a qualidade da lei depende muito da contribuição cada vez maior do conjunto da sociedade e da participação cada vez maior da comunidade científica consciente como meio de purificar a lei.

Difícil também é saber como esta contribuição deve ser feita, levando em conta a complexidade do tema, a forma de organização da comunidade científica e a maneira de aplicação de todo esse conhecimento à racionalidade prática do ordenamento jurídico. Só vemos um caminho: o da estruturação e o da regulamentação de um Direito Médico, a partir do momento que se entenda ser o direito de ser protegido contra as doenças, o direito à vida, o direito à integridade biológica e a obrigação do estado para com a saúde numa sociedade organizada seja tutelada por normas justas e equilibradas. A razão é simples: a existência humana, seja ela considerada de forma individual ou coletiva, será sempre a maior das referências entre todos os bens e valores juridicamente protegidos. Mesmo que esta ideia não seja ainda consensual na doutrina vigente.

Este formidável e grandioso avanço das ciências biológicas, notadamente no campo genético-molecular, significa uma indiscutível proposta em favor do homem de amanhã; todavia, este domínio sobre a natureza pode nos aproximar do abismo da destruição da vida. Os horrores da especulação médica em experimentações humanas nos campos de concentração nazistas é uma lamentável prova de que há um risco de descompasso entre as Ciências e a Moral. A má utilização da ciência pode despencar para a programação arbitrária de pessoas, o controle abusivo da sociedade e o domínio abjeto da natureza.

Isto não quer dizer que se excluam das necessidades do homem atual e do futuro as vantagens do progresso da ciência e a efetiva e vantajosa participação do pesquisador. Não. Desde que o cientista não se renda a uma visão tecnicista e consumista do mundo, pois o homem, antes de tudo e apesar de tudo, quer viver bem.

Nesta concepção de modelo, não se vê apenas a necessidade de abrigar princípios admitidos como pré-positivos, como o do respeito à dignidade da pessoa humana, mas a de contemplar em um corpo doutrinário tudo aquilo que diz respeito a um quadro compatível dos interesses das ciências biológicas e da ordem pública e social. Assim, por exemplo, não é justo impedir o mapeamento competente do DNA humano, codificando toda sua estrutura e armazenando esses dados no computador, quando isto tem o propósito de relacionar certas doenças e genes a um determinado quadro patológico. Não é a mesma coisa utilizar estes dados no sentido de utilizar este material genético para especular ou na criação de bancos de dados para interesses inconfessáveis.

Tudo isto, acreditamos, é motivo bastante para se redefinir alguns conceitos do Direito, criando-se um espaço de discussão para o Direito Médico, pois é inegável que estes fatos e consequências se discutidos de forma esparsa e aleatória, além de se perder a conexão que o assunto impõe, permite-se a desconsideração do progresso das ciências biológicas e do que isto representa e interessa a toda humanidade.

Para alguns a expressão “Biodireito” seria mais apropriada, a qual abrangeria toda licitude da atividade científica no campo da biomedicina, mesmo que importasse na sua discutível “jurisdiciarização”. O Biodireito estaria mais voltado aos requisitos jurídicos da proteção da dignidade humana e nas regras de convivência social enfocadas na esfera da Bioética, que estabelecem a qualidade de “ser humano”, tomando como enfoque uma visão ética e política. Enquanto o Direito Médico se concentraria no aspecto doutrinário e normativo das relações humanas e institucionais nas questões que envolvem os interesses sobre a vida e a saúde do homem e as condições de habitalidade do meio ambiente. Uma permeada pelos princípios fundamentais do Direito Médico; outro, baseado em tutelas preventivas, coativas e indenizatórias. Uma, volta mais ao direito “constituendo”; outro, integrado no direito “constituído”.

A compreensão ajustada do Direito Médico se mostra mais imperiosa a partir do momento em que se tornam mais e mais possíveis certas manipulações no campo das ciências biológicas, o que importa não só uma reformulação e uma adaptação das ciências do comportamento, mas também da regração jurídica. E nisso vai se tratar não apenas do direito à integridade física e moral assegurado constitucionalmente a cada homem e a cada mulher, como o direito de não sofrer torturas e sevícias ou de não ser submetido a outras formas de tratamento ou castigo cruel, mas principalmente do direito de ser protegido contra intervenções biológicas com interesses condenáveis, como as experiências especulativas e as manobras reprováveis em torno da reprodução humana e das desordens genéticas.

Não é de hoje que se pergunta: o corpo do homem pode ser objeto de uma manipulação biológica indiscriminada? Qual o limite do cientificamente possível e do eticamente válido? A moral hodierna e o direito constituído são claros ao assegurar o uso devido das inovações da moderna biotecnologia? Quem vai controlar o manipulador?

Para assegurar respostas imediatas a tantas questões, seriam indispensáveis, além da discussão de ordem doutrinária a cada uma das situações apresentadas, ter-se regras muito transparentes e objetivas, pelo menos sobre assuntos como: o destino dos embriões congelados após o uso da reprodução chamada assistida; a decisão sobre o regime de filiação e da sucessão na heteroprocriação dita artificial; a licitude da clonação com a produção de indivíduos iguais e em série; a possibilidade da gravidez masculina, da fecundação entre gametos humanos e animais e da gestação de embriões humanos em animais; a modificação intencional do código genético humano para formação de um indivíduo “melhorado”; entre outros.

A primeira coisa a ser considerada, portanto, no que se refere ao direito à integridade biológica, é que essas intervenções ocorrem sobre o homem e que elas podem afetar não apenas seu corpo, mas sua dignidade. Não se trata, pois, de uma simples questão moral ou de uma opinião política, senão da preservação do próprio ser humano, no seu contexto mais amplo.

O perigo está, por isso, mais para diante, em se estender o conceito utilitarista de pessoa, que hoje já exclui os nascituros e os pacientes terminais, ou estimular a “coisificação” do corpo humano, divorciando o conceito de pessoa de sua estrutura corporal, ou estimulando qualificações entre o indivíduo da espécie humana e pessoa.

Há certas áreas de pesquisa – entre elas a da pesquisa genética em fetos e embriões – que não receberam ainda um cuidado mais imediato nos seus aspectos éticos e legais, certamente porque não são seres humanos considerados como pessoas. Não é por outra razão que estão produzindo embriões hermafroditas.

Estamos sob a égide de uma Constituição que orienta o estado no sentido da dignidade da pessoa humana, tendo como normas a promoção do bem comum, a garantia da integridade física e moral do cidadão e a proteção incondicional do direito à vida. Torna-se evidente a necessidade do controle das manipulações biológicas com normas mais específicas como fator indispensável na manutenção da ordem pública e do equilíbrio social. Seu fim precípuo é a criação de meios e condições para que as pessoas sejam protegidas em todos os seus valores e que possam desenvolver plenamente todas as suas aptidões e ocupar o lugar que está destinado a cada um de nós.

Mesmo que as ciências biológicas sejam uma área do conhecimento viva e dinâmica, não são valores absolutos a que todos os outros estejam sistematicamente subordinados. Começam eles a merecer objeções quando comprometem o indivíduo ou os interesses de ordem social. Essa proteção, portanto, não visa apenas à defesa da própria pessoa, mas, antes de tudo, ao interesse ético-político da coletividade.

Qualquer ameaça à integridade física ou à saúde de um único homem numa intervenção especulativa é, indubitavelmente, um ato de lesa-humanidade, um atentado contra todos os homens.

Uma situação bastante duvidosa, não tanto pela intenção, mas pelos possíveis resultados, é a da terapia gênica. Seu fundamento é transferir genes de um organismo para outro, a fim de que se tornem perfeitamente adequados ao novo hospedeiro, e como meio de substituir uma informação genética anômala, causadora de perturbações por desordens gênicas.

O problema está na integração desse novo material, como capaz de gerar danos irreversíveis no gene essencial da célula hospedeira, pois qualquer dano subsequente, em vez de encerrar-se com o indivíduo, continuará e marcará as gerações seguintes. Ademais, o grande risco na política da tecnologia genética é transformar isso numa ameaça em grande escala, visando a interesses econômicos ou políticos, através de alterações gênicas arbitrárias. Ou mesmo permitindo a existência de programas paralelos, caracterizando verdadeiros mercados negros biológicos.

Desse modo, existe uma considerável demanda de situações novas a exigir do Direito respostas e soluções nestes intricados assuntos da biotecnologia. Mesmo sabendo-se que tais temas pertencem a um acervo muito recente do conhecimento humano, tal contribuição será insuprível na regulamentação das técnicas e no destino das aplicações às necessidades da população – sem esquecer que existe uma tradição de deixar acontecer para depois regular.

Pelo menos, no que tange à reprodução assistida, será necessário que se criem normas específicas mais precisas e uma política de controle sobre as intervenções genéticas, evitando os tribunais paralelos da eugenia, como já se vem fazendo no “controle de qualidade dos bebês”, através do exame no líquido amniótico, descartando-se os “fetos de má qualidade” ou aperfeiçoando os considerados “fora de padrão”, por meio do chamado aborto eugênico.

Mesmo que se diga serem esses projetos de legislação muito específicos e rigorosos, faz-se mister dizer que é por demais importante a participação de todos neste caminhar, porque ninguém pode ficar fora desta responsabilidade, pois estão em jogo a sorte das liberdades individuais e o destino da pessoa humana como espécie.