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A crise da política e a busca de uma linguagem da sensibilidade

LEONIDAS DONSKIS: Um interessante debate teve lugar no Frankfurter Rundschau (26 de setembro de 1992). Quando um entrevistador lhe perguntou se os intelectuais conseguirão manter sua relevância social, o escritor e crítico literário espanhol Manuel Vázquez Montalbán (famoso por seus romances de detetive) replicou com perspicácia que “a conexão entre a CNN e Jane Fonda será o único intelectual orgânico do mundo”.

Montalbán prosseguiu acrescentando que tinha mais confiança nos intelectuais que aparecem em público coletivamente que naqueles que o fazem como indivíduos. E então concluiu que a crítica social vai sobreviver no século XXI, dando forma a novos movimentos sociais. Nas palavras dele, a única coisa em que nós, “intelectuais individualistas”, continuamos sendo bons é na formação de comunidades preocupadas com a crítica. Segundo o escritor espanhol, o papel do intelectual vai decrescer, mas ao mesmo tempo surgirão críticos coletivos mais poderosos.

Sem sombra de dúvida, os intelectuais têm um futuro, embora este possa ser muito diferente do papel dos solitários Tirésias e Cassandra, dissidentes, derrotistas e personificações da consciência conhecidos por nós, da Europa Oriental e Central, nos últimos cinquenta anos. Em nossa era narcisista, obcecada com consumo, intensidade, busca de atenção, autoexposição e sensacionalismo, é difícil que um indivíduo intelectual consiga deixar de cair no esquecimento sem se tornar vítima ou celebridade.

Assim, o fato é que vivemos num mundo que deixa espaço cada vez menor para pessoas como Andrei Sakharov, João Paulo II ou Václav Havel. Uma autoridade moral em aparência inquestionável pode ser marginalizada ao assumir o nome deles, mas alterando a lógica de suas escolhas morais – em silêncio e até sem percebê-lo. Uma prática burocrática segura e uma rotina bem-estabelecida podem ser tão perigosas para a autenticidade da defesa dos direitos humanos quanto uma abordagem seletiva dessa questão.

Por exemplo, há algo muito embaraçoso, para não dizer irônico e até sinistro, na maneira pela qual os grupos políticos negociam e calculam suas opções ao sugerir nomes de defensores dos direitos humanos para o Prêmio Sakharov no Parlamento Europeu. O que espreita por trás de uma prática rotineira de realpolitik é a autoridade ratificadora do maior defensor dos direitos humanos, cujo nome é usado para os fins egoístas e pretensiosos dos políticos.

O anonimato e a irresponsabilidade de grupos políticos e burocráticos são tão destrutivos em relação ao destino dos grandes críticos e intelectuais quanto o kitsch político ou o culto das celebridades no mundo da mídia. Vivemos numa época em que os intelectuais à moda antiga, ou da era pré-Facebook, correm o perigo de serem relegados para as margens da política e da área pública. Correm o risco de se tornarem não entidades.

Não é uma piada, longe disso, na verdade. Se você for a público, só pode se fazer audível e visível por meio de novidades da TI e da comunicação pública ou pelos talk-shows da TV. O resto é coisa do passado. Em geral, a tecnologia ultrapassou a política. Ou você se envolve ativamente no mundo da TI ou não existe mais. Você pode, logo deve. Você pode estar on-line, logo, deve estar on-line. Se estiver off-line, deixa de participar da realidade. Ponto-final.

Mas é muito cedo para tocar a marcha fúnebre dos intelectuais. Estes podem sobreviver formando comunidades de mentalidade crítica e interpretativa, tal como sugerido por Montalbán. Além disso, podem ser úteis na moldagem de novos movimentos sociais, o que se torna óbvio na era do Facebook. Os movimentos sociais, por sua vez, podem remodelar nossa vida política deixando pouco daquilo que até agora concebíamos como política convencional.

Pois tudo isso parece o fim – ou pelo menos o começo do fim – da Política com P maiúsculo em nosso mundo contemporâneo. A política clássica sempre foi associada ao poder de transformar problemas privados em questões públicas, assim como ao poder de internalizar questões públicas e transformá-las em problemas privados ou existenciais. Hoje esse mecanismo político está fora de sintonia. O que nós em nossa política pós-moderna tratamos como questões públicas são mais frequentemente problemas privados de figuras públicas.

É um segredo público, portanto, que nossa época seja aquela em que a política sai de cena. Veja os numerosos palhaços políticos que estão se tornando mais populares agora que qualquer político à moda antiga, de tipo burocrático ou especializado. Estamos nos aproximando depressa de uma fase da vida política em que o grande rival de um partido bem-estabelecido não será outro partido de corte ou tonalidade diferente, mas uma organização não governamental ou um movimento social influente.

Os autocratas russos e chineses percebem isso muito bem. Como todos nós sabemos, ONGs não são bem-vindas em regimes tirânicos; nem tampouco o Facebook, em especial após uma série de “revoluções pelo Facebook” no Oriente Médio, ou a Primavera Árabe, ou mesmo durante a revolução de Facebook dos jovens espanhóis indignados em Madri. Com toda a probabilidade, esses atos de resistência e inquietação social antecipam uma era de movimentos sociais virtuais que serão conduzidos ou integrados por partidos políticos novos ou convencionais. De outro modo, os partidos serão extirpados da face da Terra por esses movimentos.

Vivemos uma época de obsessão pelo poder.

Como você observou, a velha fórmula da política como uma estratégia de vareta e cenoura ainda se sustenta, embora nós, tendo visto no século XX os piores pesadelos sob a forma de varetas, estejamos mais propensos a vivenciar a dominação das cenouras. O poder manifesta-se como força e potencial financeiro e econômico, em lugar da força militar e da linguagem do militarismo. Mas a lógica continua a mesma. É a boa e velha Wille zur Macht, ou vontade de poder, quer assuma o disfarce de Friedrich Nietzsche ou o de Karl Marx. A questão não é se você tem uma Weltanschauung identificável, uma identidade forte ou uma ideologia importante, mas quanto poder você tem. Compro, logo existo.

Nós nos acostumamos a encarar um ser humano como mera unidade estatística. Não é um choque para nós vermos indivíduos humanos como força de trabalho. O poder de compra da sociedade e a capacidade de consumo tornaram-se critérios cruciais para se avaliar o grau de adequação de um país ao clube do poder – ao qual aplicamos vários títulos grandiosos de organizações internacionais. A questão de ser ou não uma democracia só se torna relevante quando você não tem poder e precisa ser controlado por meio de varetas retóricas ou políticas. Se você é rico em petróleo ou pode consumir e investir em grande escala, isso o absolve do fracasso em respeitar as modernas sensibilidades políticas e morais, ou em permanecer comprometido com as liberdades civis e os direitos humanos.

Olhando mais de perto, o que está acontecendo na Europa é uma revolução tecnocrática. Uma ou duas décadas atrás, era crucial ter provas de que se era uma democracia para se qualificar como sócio do clube. O que contava era um conjunto de valores e compromissos. Hoje, temos a probabilidade de ingressar num novo estágio da política mundial. O que realmente conta é sua disciplina financeira, se você está apto a participar de uma união aduaneira, assim como sua conduta econômica.

Recordando Erewhon, de Samuel Butler (como anagrama de nowhere, “lugar nenhum”, o título desse romance antiutópico é uma clara alusão à Utopia de Thomas More), temos aqui a lógica política e moral da Europa virada de cabeça para baixo. Em Erewhon, Butler ridiculariza uma comunidade utópica em que a doença se torna uma obrigação, e o fracasso em permanecer saudável e em boa forma é motivo de processo. Algo desse tipo pode ser encontrado no Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, em que o fracasso em atingir a felicidade é visto como sintoma de atraso. Mas a caricatura da busca da felicidade numa longínqua sociedade tecnocrática e tecnológica não deveria nos consolar como algo distante de nossa realidade.

O que temos agora na Europa é a emergência do conceito de culpabilidade da impotência econômica. Nenhum tipo de impotência política e econômica deve permanecer impune. Isso quer dizer que não temos mais o direito de fracassar – que por tanto tempo foi um aspecto inescapável de nossa liberdade. O direito de estar aberto à possibilidade de falência ou qualquer outra chance de fracasso era parte da saga europeia da liberdade como uma escolha fundamental que fazemos a cada dia ao enfrentarmos suas consequências.

Esses dias se foram. Agora você corre o risco de se tornar o coveiro da Europa ou mesmo de todo o planeta se enviar a mensagem errada ao mercado global. Você pode causar um efeito dominó global, desapontando assim tanto seus inimigos quanto seus aliados, também dependentes da mesma e única estrutura de poder mundial. Trata-se de uma nova linguagem de poder, até então não percebida nem identificada por ninguém na história mundial. Comporte-se, do contrário vai atrapalhar o jogo e nos deixar na mão. Ao fazê-lo, vai prejudicar a viabilidade de uma ordem social e moral em que nenhum país ou nação é responsável por si mesmo. Tudo tem repercussões e implicações globais.

E que dizer das nações? Costumávamos ter certeza de que as nações europeias encarnavam o princípio calvinista da predestinação, implicando a possibilidade de ser feliz nesta vida terrena e na realidade deste mundo. O princípio kantiano da autodeterminação tornou-se mais relevante no século XIX. Havia um mundo em que a busca da felicidade, assim como a possibilidade de salvação e autor-realização, falava a linguagem da república e de seus valores. Daí a emergência de nações pós-coloniais depois de duas guerras mundiais e da desintegração dos impérios.

O que há hoje nessa segunda modernidade guarda pouca semelhança, se é que guarda alguma, com a lógica da primeira, como diria Ulrich Beck. Não podemos mais vivenciar as paixões e os anseios do século XX, para não mencionar os dramas do século XIX, não importa o quanto tentemos relegitimar nossa narrativa histórica e política. Para usar termos seus, a modernidade líquida transformou-nos numa comunidade global de consumidores. O que foi a nação na era da modernidade sólida, como comunidade de memória, sentimento coletivo e opção moral, é agora uma comunidade de consumidores obrigados a se comportar a fim de se qualificar para o clube.

Na era do Facebook, as nações estão se tornando unidades extraterritoriais com uma língua e uma cultura comuns. Sabíamos, na era da modernidade sólida, que a nação era constituída por diversos fatores, acima de tudo um território, uma língua e uma cultura comuns, assim como a moderna divisão do trabalho, a mobilidade social e a alfabetização. Agora o quadro é bem diferente. Uma nação parece um conjunto de indivíduos dotados de mobilidade com uma lógica de vida baseada em avanços e recuos. Tudo é uma questão de saber se você está on-line ou off-line com respeito aos problemas de seu país e aos debates em torno deles, em vez de decidir de uma vez por todas se vai permanecer naquele lugar ou votar nos mesmos atores políticos pelo resto de sua vida.

Ou você está on ou está off. Esse é um plebiscito diário numa sociedade líquida moderna.

ZYGMUNT BAUMAN: “A tecnologia ultrapassou a política”, diz você, e como está certo! Como que profeticamente, pois em algum momento de meados do século XIX, quando poucas das mentes mais brilhantes, se é que alguma, imaginavam que a tecnologia iria tirar de seus criadores o direito e a capacidade de tomar decisões, Robert Thomas Babington Macaulay observou que “a galeria [da Casa dos Comuns] em que os repórteres se sentam tornou-se um quarto estado do reino”. Sem dúvida alguma, ao aludir ao terceiro estado, que não muito tempo antes fora um recém-chegado com ambições ridiculamente excessivas, e no entanto se tornara não mais objeto de riso, mas uma voz de comando na política, Macaulay previu a iminente ascensão da imprensa ao poder – uma ascensão suficiente para sobrepujar e desapossar os então reconhecidos governantes da Grã-Bretanha.

Muito antes de Marshall McLuhan, Macaulay identificou um meio transformando-se em mensagem após retirar a autoridade dos formadores de opinião ao assumir e monopolizar as rotas de acesso aos potenciais e predestinados detentores de opinião. Tendo se apossado dos meios, mantendo-os perto do peito e equipando todas as entradas com torres de controle dotadas de guardiães, os jornais e, mais ainda, as fontes eletrônicas de notícias, suas sucessoras, conseguiram se apropriar totalmente, ou quase, do controle da escolha de metas. As mensagens sem meios para levá-las a seus pretensos endereços deviam ser natimortas ou morrer sem deixar testamento. Nesse sentido, não há nada de novo. A expropriação dos meios de comunicação continua a ser a condição do jogo, sobretudo no caso dos ditadores chineses ou birmaneses que ameaçam tirar do ar sites sociais; ou, de modo latente, como nas guerras de audiência entre empresas de radiodifusão; no meu entender, a única questão nova é se, no campo da produção e distribuição de notícias e opiniões, os expropriadores podem ser expropriados. Será que a tecnologia então indisponível, mas agora comum e de fácil acesso, seria o presságio da expropriação dos expropriadores?

A reação do establishment oficial americano à juventude iraniana expressando brevemente seu protesto nas ruas de Teerã contra as eleições fraudulentas de junho de 2009 teve impressionante semelhança com uma campanha comercial em favor dos similares de Facebook, Google ou Twitter. Suponho que alguns dos galantes jornalistas investigativos, a cujo círculo por infortúnio não pertenço, poderiam ter fornecido um grande volume de provas materiais em favor dessa impressão. O Wall Street Journal pontificou: “Isso não teria acontecido sem o Twitter!” Andrew Sullivan, blogueiro americano influente e bem-informado, apontou o Twitter como “ferramenta básica para a organização da resistência no Irã”, enquanto o venerável New York Times abusava do lirismo, proclamando um combate entre “bandidos disparando balas” e “manifestantes disparando tuítes”.1

Hillary Clinton foi a público, anunciou em seu discurso sobre a “liberdade na internet”, em 21 de janeiro de 2010, o nascimento do “samizdat de nossos dias” e proclamou a necessidade de “colocar essas ferramentas” – “vídeos virais e posts de blogs” – “nas mãos de pessoas do mundo todo, que as utilizarão para fazer avançar a democracia e os direitos humanos”.2 “A liberdade de informação”, na opinião dela, “sustenta a paz e a segurança que fornecem o alicerce do progresso global.” (Permita-me observar prontamente, contudo, que não muita água havia passado sob as pontes do Potomac quando a elite política americana começou, como que seguindo a regra francesa de deux poids, deux mesures, a exigir restrições ao WikiLeaks e a prisão de seu fundador.) Ed Pilkington relembra Mark Pfeifle, assessor de George Bush que apresentou o Twitter como candidato ao Prêmio Nobel, e cita Jared Cohen, funcionário do Departamento de Estado que descreveu o Facebook como “uma das ferramentas mais orgânicas para a democracia que o mundo já viu”.3 Em suma, Jack Dorsey, Mark Zuckerberg e seus companheiros de armas são generais do Exército da Democracia e dos Direitos Humanos – e todos nós, tuitando e enviando mensagens pelo Facebook, somos seus soldados. O meio é realmente a mensagem – e a mensagem dos meios digitais é “abrir a cortina da informação” e revelar um novo panorama planetário de poder popular e direitos humanos universais.

Foi esse tipo de senso não comum entre a elite política e formadora de opinião americana e outros vendedores voluntários de serviços digitais que Evgeny Morozov, estudante de 26 anos recém-chegado aos Estados Unidos proveniente da Belarus, censurou, ridicularizou e condenou como “pura ilusão” (net delusion) em seu recente livro de mesmo título.4 Entre muitas outras observações que Morozov conseguiu incluir em seu estudo de quatrocentas páginas estava a de que, segundo a Al-Jazeera, havia apenas sessenta contas de Twitter ativas em Teerã, de modo que os organizadores das manifestações usaram sobretudo técnicas vergonhosamente fora de moda para atrair a atenção, como telefonar ou bater à porta dos vizinhos. Contudo, os inteligentes governantes do autocrático Irã, tão eficientes com a internet quanto cruéis e inescrupulosos, usaram o Facebook para encontrar vínculos com quaisquer dissidentes conhecidos, usando essa informação para isolar, prender e desabilitar os potenciais líderes da revolta – e cortar pela raiz qualquer desafio democrático à autocracia (se é que houve algum). Há muitas formas diferentes pelas quais os regimes autoritários podem usar a internet em benefício próprio, assinala Morozov – e eles os empregaram e continuam a empregar.

Para começo de conversa, as redes sociais oferecem uma forma mais barata, rápida, completa e, em geral, fácil de identificar e localizar atuais ou potenciais dissidentes que qualquer instrumento tradicional de vigilância. Como David Lyon afirma e tenta mostrar em nosso estudo conjunto,5 a vigilância por meio de redes sociais torna-se mais eficaz graças à cooperação de seus pretensos alvos e vítimas. Vivemos numa sociedade confessional, promovendo a autoexposição pública ao posto de principal e mais disponível das provas de existência social, assim como a mais possante e a única eficiente. Milhões de usuários do Facebook competem para revelar e tornar públicos os aspectos mais íntimos e inacessíveis de sua identidade, conexões sociais, pensamentos, sentimentos e atividades. Os sites sociais são campos de uma forma de vigilância voluntária, do tipo “faça você mesmo”, sem dúvida superando (tanto em volume quanto em gastos) as agências especializadas, controladas por profissionais de espionagem e detecção. Isso é algo caído do céu para qualquer ditador e seu serviço secreto, um benefício genuinamente inesperado – e um soberbo complemento para as numerosas instituições “banópticas” da sociedade democrática, preocupadas em evitar que indesejados e indignos (todos aqueles que se comportem ou tendam a se comportar de modo inadequado) sejam admitidos ou se infiltrem sub-repticiamente em nossa decente e autosselecionada companhia democrática. Um dos capítulos de The Net Delusion tem o título de “Por que a KGB deseja que você entre no Facebook”.

Morozov revela as muitas maneiras pelas quais regimes autoritários, para não dizer tirânicos, podem superar os supostos militantes da liberdade em seu próprio jogo, usando a tecnologia em que os apóstolos e panegiristas do viés democrático da internet têm investido suas esperanças. Nenhuma novidade nisso. Antigas tecnologias, como nos relembra a Economist, foram usadas por ditadores do passado para pacificar e desarmar suas vítimas. Pesquisas mostraram que alemães orientais com acesso à televisão ocidental estavam menos propensos a expressar suas insatisfações com o regime.6

Quanto à informática digital, reconhecidamente muito mais potente, Morozov afirma que “a internet tem fornecido tantas doses de diversão barata e acessível aos que vivem sob o autoritarismo que se tornou bem mais difícil fazer com que as pessoas se preocupem com a política”. A menos que a política seja reciclada em outra variedade empolgante de entretenimento, cheia de som e fúria, mas ineficaz, segura e inócua, algo praticado pela nova geração de “slacktivistas”, os quais acreditam que “clicar numa petição do Facebook vale como ato político”, “dissipando suas energias em mil distrações”, cada qual destinada ao consumo instantâneo e a uma só utilização, de que a internet é o mestre supremo em matéria de produção e remoção diárias. (Um dos numerosos exemplos da eficácia do slacktivismo político em mudar os métodos e recursos do “mundo real” é o triste caso do grupo Save the Children of Africa. Ele levou vários anos para coletar a magnífica soma de US$ 12 mil, enquanto as crianças africanas que deveriam ser salvas continuavam a morrer.)

Com a desconfiança popular nos poderes constituídos se espalhando e se aprofundando, e o apreço popular pelo potencial da internet de dar poder ao povo subindo às alturas por meio dos esforços conjuntos do marketing do Vale do Silício e dos versos ao estilo Hillary Clinton, recitados e transmitidos por milhares de gabinetes acadêmicos, não admira que a propaganda pró-governamental tenha melhor chance de ser ouvida e absorvida se atingir seus alvos pela internet. Os autoritários mais espertos sabem disso muito bem. Afinal, os especialistas em informática estão disponíveis para contratação, ávidos por vender seus serviços a quem oferecer o melhor preço. Hugo Chávez está no Twitter e se gaba de ter 1 milhão de amigos no Facebook, enquanto na China há um exército aparentemente genuíno de blogueiros subsidiados pelo governo (batizados de “partido dos 50 cents”, pois ganham cinquenta centavos por acesso). Morozov fica lembrando a seus leitores que, como Pat Kane escreveu no Independent de 7 de janeiro de 2012, “o serviço patriótico pode ser uma motivação para o jovem operador sociotécnico da mesma forma que o anarquismo boêmio de Assange e seus parceiros”. Os info-hackers, de forma igualmente entusiástica e com o mesmo volume de boa vontade e sinceridade, podem se unir a uma nova “Transparência Internacional” da mesma forma que a uma “Brigada Vermelha”. A internet acomodaria as duas opções com a mesma equanimidade.

Essa é uma história velha, muito velha, contada e recontada: machados podem ser usados para cortar lenha ou decepar cabeças. A escolha não é dos machados, mas de quem os segura. Qualquer que seja a escolha, o machado não vai se importar. E não interessa quão afiados possam ser os gumes com que ela esteja atualmente cortando, a tecnologia em si não vai “promover o avanço da democracia e dos direitos humanos” por você (e em seu lugar).

Você mais uma vez está certo quando se recusa a investir suas esperanças de reversão da atual insensibilização da linguagem política nas instituições já existentes do Estado-nação. Isso por motivos que já debatemos, ainda que de passagem: a progressiva separação, destinada ao divórcio, entre o poder (a capacidade de fazer com que as coisas sejam feitas) e a política (a capacidade de decidir que coisas devem ser feitas); e a resultante incapacidade manifesta, ridícula e degradante da política do Estado-nação de realizar sua função. Poucas pessoas (se é que alguém) continuam a esperar a salvação vinda de cima. As garantias vocalizadas pelos sacerdotes são ouvidas (se é que o são) com uma descrença temperada de ironia – a pilha de esperanças frustradas cresce a cada dia. À plena luz das telas da TV, o espetáculo público continua a ser reapresentado. Homens e mulheres de Estado anunciam com orgulho, no jornal da noite, os passos decisivos que acabaram de tomar – medidas para restabelecer o controle sobre o curso dos negócios e pôr fim a outro problema angustiante –, só para esperar, nervosos, que a bolsa de valores abra na manhã seguinte e descobrir se as providências têm a mínima chance de implementação; e, caso o tenham, se a implementação terá algum efeito tangível.

Nossos pais podiam debater sobre o que precisava ser feito, mas eles concordavam que, uma vez definida a tarefa, a agência estaria ali esperando para executá-la – ou seja, os Estados armados ao mesmo tempo de poder (a capacidade de fazer com que as coisas sejam feitas) e de política (a capacidade de garantir que sejam feitas as coisas certas). Nossa época, porém, destaca-se pelo acúmulo de indícios de que agências dessa espécie não existem mais, e com toda a certeza não podem ser encontradas naqueles que eram antes seus lugares usuais. Poder e política vivem e se movem separadamente, e seu divórcio está prestes a ocorrer. De um lado está o poder, perambulando em segurança pela esfera global, livre do controle político e com a liberdade de escolher seus alvos; de outro está a política, espremida e destituída de todo ou quase todo o seu poder, de seus músculos e dentes. Todos nós, indivíduos por decreto do destino, parecemos estar abandonados a nossos próprios recursos, lamentavelmente inadequados às tarefas grandiosas com que já nos defrontamos, assim como para as tarefas ainda mais apavorantes às quais suspeitamos que seremos expostos, a menos que se encontre uma forma de evitá-las. No fundo de todas as crises que abundam em nossos dias está a crise das agências e dos instrumentos de uma ação efetiva. E seu derivado, o sentimento constrangedor, degradante e exasperador de ter sido sentenciado à solidão em face dos perigos comuns.

Como a rede de instituições do Estado-nação não é mais um player em que se devam investir as esperanças de que trilhas mais transitáveis sejam abertas e equívocos mais angustiantes sejam reparados, que força (se é que existe alguma) poderá preencher o lugar e o papel vagos de agente da mudança social?

Essa é uma questão problemática e muitíssimo contenciosa. Não há carência de excursões exploratórias – tentativas desesperadas de encontrar novos instrumentos de ação coletiva mais eficazes num ambiente cada vez mais globalizado que as ferramentas políticas inventadas e postas a funcionar durante a era pós-westfaliana de construção nacional; e que terão maior possibilidade de proporcionar a fruição da vontade popular do que poderiam sonhar os órgãos do Estado aparentemente “soberano”, enredados num dilema. As missões de reconhecimento continuam a vir de muitos setores da sociedade, em particular do “precariado” (nome derivado do conceito de “precariedade”), um estrato em rápido crescimento, que assimila e absorve os remanescentes do antigo proletariado e parcelas cada vez mais amplas das classes médias, “unidos” apenas pela sensação de uma existência vivida sobre areias movediças ou ao pé de um vulcão.

O problema é que, além dessa sensação comum, pouco há na condição e nos interesses sociais das unidades de reconhecimento para que se possa esperar mantê-las unidas e inspirá-las a trabalhar juntas por tempo suficiente a fim de que sejam recicladas em ferramentas fidedignas, confiáveis, eficazes e capazes de substituir as antigas, cuja inadequação às tarefas presentes e cuja indolência cada vez mais evidente desencadearam a própria avalanche de experimentos. Uma dessas experiências em curso, que aparece com mais preeminência na mídia pública, é um fenômeno analisado a partir das crescentes, porém variadas, manifestações do movimento Occupy e da praça Tahrir ao Zuccotti Park e Manhattan, também conhecido como movimento dos Indignados. Harald Welzer pode estar no caminho certo quando busca as causas profundas desse fenômeno numa crescente percepção, por parte do público, de que as estratégias “individualistas têm função sobretudo sedativa. O nível da política internacional só oferece a perspectiva de mudança num futuro distante, e a ação cultural é deixada para o nível médio, o nível da sociedade da própria pessoa, e para a questão democrática de como as pessoas desejam viver no futuro”7 – ainda que em muitos casos, talvez na maioria deles, esse conhecimento seja mais subliminar ou frouxamente articulado.

Se Marx e Engels, aqueles dois jovens de cabeça quente e pavio curto originários da Renânia, se dispusessem hoje a escrever seu manifesto, que agora tem quase dois séculos, poderiam muito bem iniciá-lo com a observação revisada de que “um espectro ronda o planeta, o espectro da indignação”. As razões para indignar-se realmente abundam – pode-se presumir, contudo, que um denominador comum dos estímulos originais muito variados e dos influxos ainda mais numerosos que eles atraem em seu caminho seja uma humilhante premonição de nossa ignorância e impotência, negando a autoestima e a dignidade (não temos ideia do que vai acontecer e nenhum modo de evitar que aconteça). As formas antigas, supostamente patenteadas, de enfrentar os desafios da vida não funcionam mais, enquanto outras, novas e eficazes, não estão à vista ou são escassas. De uma forma ou de outra, a indignação está aí, e já se mostrou a maneira de copiá-la e baixá-la: indo para as ruas e ocupando-as. A fonte de recrutamento de potenciais ocupantes é enorme e cresce a cada dia.

Tendo perdido a fé na salvação vinda do “alto”, como o reconhecemos (ou seja, de parlamentos e gabinetes governamentais), e em busca de formas alternativas de conseguir que se façam as coisas certas, as pessoas vão para as ruas numa viagem de descoberta e/ou experimentação. Elas transformam as praças das cidades em laboratórios ao ar livre, onde as ferramentas da ação política destinadas a dar conta da enormidade do desafio são planejadas ou expostas, testadas e talvez submetidas a um batismo de fogo. Por uma série de razões, as ruas das cidades são bons lugares para montar esses laboratórios; e, por uma série de outras razões, os laboratórios nelas montados parecem produzir, ainda que só por enquanto, o que em outros lugares se buscou em vão.

O fenômeno do “povo nas ruas” até agora tem mostrado sua capacidade de remover os mais odiosos objetos de sua indignação, as figuras culpadas por sua miséria – como Ben Ali na Tunísia, Mubarak no Egito ou Kadafi na Líbia. Ainda precisa provar, porém, que, independentemente de sua eficácia na proeza de limpar o terreno, também pode ser útil no posterior serviço de construção. O segundo desafio, não menos crucial, é saber se a operação de limpeza do terreno pode ser realizada com tanta facilidade em países não ditatoriais. Os tiranos tremem diante da visão de pessoas tomando as ruas sem comando nem convite, mas os líderes globais dos países democráticos, assim como as instituições por eles criadas para garantir a perpétua “reprodução do mesmo”, parecem não ter notado nem estar preocupados com isso; continuam recapitalizando os bancos espalhados pelas incontáveis Wall Streets do planeta, ocupadas ou não por indignados. Como Hervé le Tellier observou com perspicácia no Le Monde, nossos líderes falam de “escândalo político, caos monstruoso, anarquia catastrófica, tragédia apocalíptica, hipocrisia histérica” (usando o tempo todo, observemos, termos cunhados pelos gregos, nossos ancestrais comuns, mais de dois milênios atrás), com a implicação de que as trapalhadas e transgressões de um país e de seu governo podem ser responsabilizadas pela crise que atinge todo o sistema europeu, e inocentando, na mesma medida, o próprio sistema.

As “pessoas que ocupam as ruas” podem muito bem sacudir os próprios alicerces de um regime tirânico ou autoritário que aspire ao controle total e contínuo da conduta de seus súditos, e acima de tudo privá-los do direito de iniciativa. Isso não se aplica, contudo, a uma democracia que com facilidade pode assimilar grandes doses de descontentamento em seu caminho, sem grandes turbulências, assim como qualquer volume de oposição. Movimentos dos Indignados em Madri, Atenas ou Nova York, ao contrário de seus predecessores – por exemplo, as pessoas que ocuparam a praça Václavské, na cidade de Praga, sob o regime comunista –, ainda esperam em vão que sua presença nas ruas seja notada por seus governos; esperam menos influenciar, mesmo que só um pouco, suas políticas. Isso se aplica off-line, às pessoas nas ruas. Também se aplica, em escala muitíssimo maior, às pessoas on-line, no Facebook, Twitter, MySpace, tentando honestamente mudar a história, incluindo suas próprias biografias, produzindo blogs, destilando veneno, tocando trombetas, tuitando e convocando as outras à ação.

Em seus mais recentes estudos publicados, Les temps des riches: anatomie d’une secession (2011), de Thierry Pech, e Les rémunerations obscènes (2011), de Philippe Steiner, os dois autores colocam sob microscópio a “revolta dos ricos contra os pobres” das três últimas décadas. A redução dos impostos pagos pelos ricos e a eliminação de todos os limites ao enriquecimento das pessoas mais abastadas foram promovidas sob o lema “Quando o rico paga menos, o pobre vive melhor”. A fraudulência do prometido efeito do “fomento indireto” da opulência no topo da pirâmide agora foi desnudada – para todo mundo observar de modo impotente e lastimoso –, mas as “baixas colaterais” da grande decepção estão aqui para ficar ainda por um longo tempo. Os alicerces da solidariedade social e da responsabilidade comunal foram sabotados, a ideia de justiça social comprometida, a vergonha e a condenação social conectadas à cobiça, à rapacidade e ao consumo ostensivo foram removidas e recicladas em objetos de admiração pública e de culto à celebridade. Esse é o impacto cultural da “revolta dos ricos”. Mas a sublevação cultural agora adquiriu alicerces sociais próprios, nos moldes de uma nova formação social: o precariado.

Pelo que sei, foi o professor e economista Guy Standing que (acertando na mosca) cunhou o termo “precariado” para substituir, a um só tempo, os conceitos de “proletariado” e “classe média”, porque ambos ultrapassaram em muito seu prazo de validade, tornando-se ampla e plenamente “termos zumbis”, como o classificaria Ulrich Beck. O blogueiro oculto sob o apelido de “Ageing Baby Boomer” sugere:

É o mercado que define nossas escolhas e nos isola, garantindo que nenhum de nós questione a forma como essas opções são definidas. Faça as escolhas erradas, e você será punido. Mas o que torna isso tão selvagem é que não leva em consideração o fato de muitas pessoas serem muito mais bem-equipadas que outras – por terem capital social, conhecimento ou recursos financeiros – para fazer boas escolhas.8

O que “une” o precariado, integrando esse agregado muito variado numa categoria coesa, é a desintegração, a pulverização e a atomização extremas. Qualquer que seja sua proveniência ou denominação, todos os precários sofrem – e cada qual sofre sozinho, o sofrimento de cada indivíduo é uma punição individual merecida pelos pecados individualmente cometidos de sagacidade insuficiente ou déficit de dedicação. Os sofrimentos nascidos no plano individual são semelhantes. Induzidos por uma pilha crescente de contas de luz, água, gás e mensalidades da faculdade; pela mesquinharia dos salários, superada pela fragilidade dos empregos disponíveis e pela inacessibilidade dos que são sólidos e confiáveis; pela nebulosidade da maior expectativa de vida; pelo espectro inquietante da redundância e/ou degradação – tudo isso se traduz numa incerteza existencial, aquela apavorante mistura de ignorância e impotência, fonte inexaurível de humilhação.

Sofrimentos como esse não agregam, eles dividem e separam os sofredores. Negam a comunidade do destino. Fazem os apelos à solidariedade parecer ridículos. Precários podem invejar ou temer uns aos outros; às vezes têm pena ou até (embora não muitas vezes) gostam uns dos outros. Poucos deles, contudo, chegariam a respeitar outra criatura “como eles” (ou elas). E por que deveriam? Sendo “como” eu, essas outras pessoas devem ser tão indignas de respeito quanto eu, merecem tanto desprezo e escárnio quanto eu! Os precários têm bons motivos para recusar o respeito a outros precários e, por sua vez, não esperam ser respeitados por eles. Sua condição dolorosa e miserável é marca indelével e nítida evidência de inferioridade e indignidade. Essa condição, muito visível, embora mantida sob o tapete, é testemunha de que as pessoas dotadas de autoridade, aquelas que têm o poder de permitir ou recusar direitos, negaram-se a lhes garantir os direitos concedidos a outros seres humanos “normais” e, portanto, respeitáveis. Assim, ela é testemunha indireta da humilhação e do autodesprezo que acompanham de forma inevitável o endosso social da incapacidade e da ignomínia pessoais.

O significado de ser “precário” (precarious), segundo o Oxford English Dictionary, é “ser mantido pelo favor e à disposição de outro; logo, incerto”. A incerteza chamada “precariedade” transmite a assimetria preordenada e predeterminada do poder de agir; eles podem, nós não. E é por graça deles que continuamos a viver, mas essa graça pode ser retirada a curto prazo ou de uma hora para outra, e não está em nosso poder evitar essa retirada ou mesmo mitigar sua ameaça. Afinal, nós dependemos dessa graça para nossa subsistência, enquanto eles continuariam a viver, e com muito mais conforto e menos preocupação, se nós todos desaparecêssemos.

Na origem, a ideia de “precariedade” descrevia a sina e a experiência de vida dos amplos escalões de dependentes e outros parasitas que se apinhavam em torno das cozinhas dos grandes e poderosos. Era dos caprichos da princesa, do senhor feudal e de outras pessoas assim dotadas de prestígio e poder que dependia o seu pão de cada dia. Os dependentes deviam a seus anfitriões/benfeitores adulação e divertimento; mas nada lhes era devido da parte dos anfitriões. Estes, ao contrário de seus atuais sucessores, tinham nomes e endereços fixos. Desde então eles perderam (libertaram-se de?) tudo isso. Os proprietários das mesas frágeis e inconstantes às quais os precários contemporâneos, vez por outra, têm permissão de se sentar são sumariamente chamados por nomes abstratos como “mercado de trabalho”, “ciclo econômico de prosperidade/depressão” ou “forças globais”.

Ao contrário de seus descendentes líquidos modernos um século depois, aos contemporâneos de Henry Ford Sr., J.P. Morgan ou John D. Rockefeller era negada a principal “arma contra a insegurança”, e eles se viam incapazes de reciclar o proletariado num precariado. A possibilidade de transferir sua riqueza para outros locais – lugares cheios de pessoas prontas a sofrer sem queixas qualquer regime fabril, ainda que cruel, em troca de qualquer salário de subsistência, ainda que miserável – não estava à sua disposição. Tal como seu corpo fabril, seu capital estava “preso” ao lugar, afundado num maquinário pesado e volumoso, trancado dentro das paredes da fábrica. O fato de a dependência, portanto, ser mútua, e de os dois lados serem forçados a permanecer juntos por um longo tempo, era um segredo de polichinelo, do qual os dois lados tinham profunda consciência.

Confrontados por essa interdependência estrita com sua longa expectativa de vida, ambos os lados tiveram de chegar mais cedo ou mais tarde à conclusão de que era de seu interesse desenvolver, negociar e observar um modus vivendi – um modo de coexistência que incluía a aceitação voluntária de inevitáveis limites à sua liberdade de manobra, até os quais o outro lado do conflito de interesses devia ser pressionado. A exclusão estava fora desses limites, da mesma forma que a indiferença à miséria e a negação de direitos. A única alternativa ao alcance de Henry Ford e das crescentes fileiras de seus admiradores, seguidores e imitadores seria equivalente a cortar o galho em que se encontravam a contragosto empoleirados, ao qual estavam ligados tão seguramente quanto seus trabalhadores a suas bancadas, e dos quais não podiam passar para lugares mais confortáveis e convidativos. Transgredir os limites estabelecidos pela interdependência significaria a destruição das fontes de seu próprio enriquecimento; ou exaurir depressa a fertilidade do solo sobre o qual suas riquezas haviam crescido e, ao que se esperava, continuariam a crescer, ano após ano, em direção ao futuro – talvez eternamente. Em suma, havia limites à desigualdade que o capital podia suportar. Ambos os lados do conflito haviam investido em evitar que a desigualdade saísse de controle. E cada lado tinha um interesse investido em manter o outro no jogo.

Em outras palavras, havia limites “naturais” à desigualdade e barreiras “naturais” à exclusão social. A principal causa da profecia de Karl Marx, de que “a pauperização absoluta do proletariado” passaria a ser contraditória e se tornaria cáustica, e a principal razão pela qual a introdução do Estado social, um Estado com a responsabilidade de manter a força de trabalho em condições de presteza para o emprego, tornou-se um tema “além da direita e esquerda”, uma questão não partidária. Também foi por isso que o Estado precisou proteger a ordem capitalista contra as consequências suicidas de deixar sem controle as mórbidas predileções dos capitalistas e sua voracidade de lucro rápido; e para que ela agisse de acordo com essa necessidade, estabelecendo salários mínimos ou limites de tempo para a jornada e a semana de trabalho, assim como proteção jurídica para os sindicatos e outros instrumentos de autodefesa do trabalhador. E foi esse o motivo pelo qual se evitou que a distância entre ricos e pobres se ampliasse ou mesmo, para empregar uma expressão atual, “se tornasse negativa”. Para sobreviver, a desigualdade precisou inventar a arte da autolimitação. E o fez – e a praticou, ainda que de forma irregular, por mais de um século. No final, esses fatores contribuíram ao menos para uma reversão parcial da tendência: a atenuação do grau de incerteza pairando sobre as classes subordinadas e, portanto, um relativo nivelamento das forças e das chances dos dois lados desse jogo de incertezas.

Esses fatores agora estão ausentes, e de modo cada vez mais conspícuo. O proletariado se torna rapidamente um precariado, acompanhado por uma parcela, em célere expansão, das classes médias. Um reverso dessa reencarnação não está no jogo. A remodelagem do proletariado de outrora numa classe em luta foi altamente promovida, da mesma forma que a atual atomização do precariado, seu descendente e coveiro de sua tradição e de seu legado.

Uma mudança mais seminal também se seguiu. Ao contrário do “proletariado” de outrora, o “precariado” abarca pessoas de todas as classes econômicas. Todos nós, ou pelo menos 99% de nós (como insistem os “ocupantes de Wall Street”), somos agora “precários”: os que já foram tornados redundantes e os que temem que seus empregos não sobrevivam à próxima rodada de cortes ou “reestruturação”; os portadores de diplomas universitários procurando em vão empregos adequados a suas habilidades e ambições; os empregados permanentes que tremem diante da ideia de perder seus lares e as economias de suas vidas no próximo colapso da bolsa de valores; e muitíssimos outros, que têm sólidas razões para não confiar na segurança de sua posição na sociedade.

A grande pergunta, a pergunta de vida ou morte, é se o “precariado” pode ser reclassificado como “agente histórico”, tal como o “proletariado” foi (ou se esperou que fosse) capaz de agir solidariamente e buscar um conceito comum de justiça social e uma visão comum de “boa sociedade”, uma sociedade hospitaleira a todos os seus membros. Essa pergunta só pode ser respondida pela maneira como nós, os precários, agimos – sozinhos, em grupos ou todos juntos. Pode-se supor, contudo, que, enquanto o “Estado social” buscou responder a essa pergunta de maneira positiva, a pressão concentrada dos atuais governos e órgãos intergovernamentais sobre cortes nos gastos sociais (cortes nas provisões para os pobres e indolentes, com aumentos para os ricos e poderosos), intencionalmente ou não, se volta para tornar implausível, se não totalmente impossível, uma resposta positiva.

Você também está certo quando observa que os motivos, itinerários e consequências da migração on-line e off-line são frouxamente coordenados, se é que chegam a sê-lo. A migração não exige mais a mudança de localização geográfica, e permanecer no mesmo lugar não é em si uma evidência de pertencimento. No entanto, a territorialidade era, por definição, o alicerce e a salvaguarda da soberania política. Tirando-se a territorialidade, o que permanece da soberania? Essa noção precisa ser relegada à classe dos “conceitos zumbis”, tomando de empréstimo uma oportuna expressão de Ulrich Beck: a classe dos conceitos que já estão mortos, mas se comportam, são vistos e tratados como se vivos estivessem. Ou à classe dos “simulacros” de Jean Baudrillard, fenômenos semelhantes a doenças psicossomáticas em que é impossível decidir se o paciente está fingindo estar doente ou se ele de fato está; fenômenos compostos inteiramente de aparências, desprovidos das referências materiais e orgânicas que de hábito lhes são atribuídas ou imputadas.

Sob tais circunstâncias, a maior questão é a que você apresentou ao dizer que “esses atos de resistência e inquietação social antecipam uma era de movimentos sociais virtuais que serão conduzidos ou integrados por partidos políticos novos ou convencionais. De outro modo, os partidos serão extirpados da face da Terra por esses movimentos”. Bem, minha impressão é que o tribunal ainda está decidindo. As coisas podem ir para um lado ou para outro, ou ser decididas de uma forma que não poderíamos prever. Não faz muito tempo, acompanhávamos com ansiedade os eventos da Primavera Árabe, e a “grande revolução democrática” que a maioria dos observadores ocidentais esperava como consequência quase imediata, de certa forma, mostrou-se relutante em chegar. Mas as multidões que vão para a praça Tahrir e se recusam a sair até que suas demandas sejam ouvidas provaram, não obstante, ter um efeito muito mais seminal que as tendas montadas em torno de Wall Street, da City de Londres ou dos Parlamentos grego e espanhol. Regimes tirânicos são muito mais sensíveis (e vulneráveis!) às pessoas nas ruas que as democracias, acostumadas a essa visão como parte de sua rotina comum e quase cotidiana. A tirania é incompatível com uma multidão autoconvocada. Sua coexistência é inconcebível, sua simultaneidade deve ser breve, tendendo a um desfecho violento – um ou outro deve desistir depois de tentar em vão forçar o outro lado a fazê-lo primeiro (vide o Iêmen, a Síria, o Egito, lista que decerto será ampliada).

A democracia pode levar as pessoas às ruas em sua marcha, pode tomar de empréstimo ou roubar suas bandeiras, tudo isso sem mudar a sério suas políticas, mas somente a linguagem usada para vendê-las. Wall Street até agora quase não percebeu que está sendo ocupada há meses – e pode deixar de notá-lo impunemente. Se você quisesse apontar o momento de transição, na Europa, dos regimes dinásticos/autocráticos para as modernas democracias, não seria a pior opção determinar o ponto no tempo em que a “malta”, “patuleia” ou “plebe” foi substituída no vocabulário da elite política por termos como “povo”, “cidadãos”, “eleitorado” ou… “contribuintes”.

Finalmente, você observa que “em nossa era narcisista, obcecada com consumo, intensidade, busca de atenção, auto-exposição e sensacionalismo, é difícil que um indivíduo intelectual deixe de cair no esquecimento se não se tornar vítima ou celebridade”. Uma vez mais, você está certo. Desde que C. Wright Mills exigiu, meio século atrás, em nome dos intelectuais, que a mídia fosse “devolvida” a “nós, a quem ela pertence por direito”, quanta água rolou sob as pontes do Potomac. A mídia, nas garras do mercado e plenamente envolvida em impiedosas guerras de audiência, estabeleceu-se firme no espaço que separa a formação das ideias de sua distribuição, recepção e retenção. Esse espaço é crucial do ponto de vista estratégico: quem o ocupa assume a emissão de vistos de entrada e de saída; e, para todos os fins e propósitos práticos, controla a circulação de ideias em sua totalidade.

Régis Debray, numa frase famosa, chamou o atual estágio da história dos intelectuais de “a era da midiocridade”, comprimindo num só conceito dois aspectos distintos: o poder da mídia produzindo o domínio da mediocridade. Os intelectuais que conseguem passar por essa agência de emissão de vistos controlada pela mídia são os que se conformam às normas estabelecidas nos estatutos da mídia e adotadas em suas práticas – normas pelas quais as solicitações de visto são aceitas ou rejeitadas, dependendo do impacto sobre as avaliações (números de vendas, retornos de bilheteria, números de “curtidas” ou “visitas” registrados pelos sites). São esses padrões que decidem o volume e o preço dos comerciais e também os níveis de lucro e dividendos dos acionistas.

As pessoas com solicitações de entrada aprovadas são descritas com o nome genérico de “celebridades” (pessoas que, segundo a expressão espirituosa e cáustica de Daniel J. Boorstin, são muito conhecidas por serem muito conhecidas, e cujos nomes com frequência valem mais que os serviços que prestam). Na competição por vistos de entrada, os intelectuais têm poucas chances, quando comparados aos astros de cinema e teatro, jogadores de futebol e assassinos em série. Há razões mais que suficientes para imaginar se as características necessárias para entrar no círculo encantado das celebridades são compatíveis com os recursos capazes de conduzir à realização da vocação de um intelectual – seja individual ou “coletivamente”, como sugere Montalbán.

Sim, como você diz, “é um segredo de polichinelo o fato de que nossa época seja aquela em que a política sai de cena. Veja os numerosos palhaços políticos que agora estão se tornando mais populares que qualquer político à moda antiga, de tipo burocrático ou especializado”. Ou o “noticiário político” se submete docilmente ao domínio do “infotenimento”, ou não tem chance de ser oferecido a mais de um “nicho de audiência” reduzido e em geral marginalizado. As notícias comuns no horário nobre são transmitidas por âncoras que ficam de pé, ou com mais frequência correm, e seu mais importante recurso e qualificação é reciclar qualquer tema político em matérias de entretenimento; e a si mesmos em celebridades, vistas todos os dias em função de sua posição atual na competição por popularidade, e não pelo peso das coisas que poderiam ter dito com credibilidade ou qualquer outro valor que não o entretenimento.

Em seu livro de 1989, Lutz Niethammer salientou que a ideia de “fim da história”, que ganhava grande popularidade na época em que ele o escreveu, nem é apenas uma moda passageira nem está “confinada ao sentido literal do termo, de que alguma coisa, mais uma, chegou ao fim”. Estamos mais propensos a falar de “nossa modernidade (Wolfgang Welsch) pós-moderna, em que a reflexividade sinaliza não o fim de uma estrutura dinâmica, mas a dissolução da esperança a ela associada”.9 O que, para todos os fins e propósitos práticos, significa a dissolução da esperança imputada aos políticos “tal como nós (ou melhor, nossos ancestrais imediatos) os conhecíamos”: políticos vistos até então como os principais patrocinadores e motores da história. Niethammer cita Arnold Gehlen, ao afirmar que “nada mais se pode esperar em termos da história das ideias”10 – “a história das ideias foi suspensa, e … agora chegamos à pós-história. Assim, a advertência de Gottfried Benn ao indivíduo – ‘Conte com seus próprios recursos’ – deveria ser transmitida à humanidade como um todo”. O “fim da história”, podemos dizer, é apenas uma hipótese derivada do reconhecimento do “fim da política”, seu principal (talvez até único) motor, cuja origem, por sua vez, pode ser rastreada até suas raízes – o suposto fim das ideias e dos intelectuais como seus principais produtores e portadores.

“Conte com seus próprios recursos.” É precisamente isso que você tem em mente, suponho, quando assinala que “o que temos agora na Europa é a emergência do conceito de culpabilidade da impotência econômica. Nenhum tipo de impotência política e econômica deve permanecer impune. Isso quer dizer que não temos mais o direito de fracassar – que por tanto tempo foi um aspecto inescapável de nossa liberdade”. A recusa ao direito de falhar parece ter sido instalada no veículo da modernidade – uma espécie de freio do qual se esperava que compensasse e limitasse o impacto crescente da liberdade – desde seus primórdios. Vemos isso numa das primeiras utopias modernas, a abadia de Thelema, de Rabelais, em que a felicidade é o único compromisso e a infelicidade, o único desvio do dever passível de punição.

LD: A literatura distópica descreveu os pesadelos do século XX. Nós de Zamyatin, Admirável mundo novo de Aldous Huxley, 1984 de George Orwell e Escuridão ao meio-dia de Arthur Koestler (embora este último se qualifique em menor grau para o clube dos romances de advertência) previram essas simulações de realidade, ou fabricações de consciência, que eram (e continuam a ser) profunda e marcadamente características do mundo dos modernos meios de comunicação de massa. Que nossas percepções do mundo e nossa consciência podem ser moldadas por esses meios, que todos nós lidamos com imagens, imposturas e fantasmas em lugar da realidade tal como ela é, isso já foi demonstrado por Jean Baudrillard.

A aclamada teoria dos simulacros, ou simulações da realidade, de Baudrillard, que você já mencionou, é muito semelhante ao que Milan Kundera descreveu de forma adequada como o mundo manufaturado pelos novos tipos de pessoa dos meios de comunicação de massa a que ele chama de imagólogos, os engenheiros e negociantes de imagens. A imagologia, a arte de construir conjuntos de ideais, anti-ideais e imagens de valor que as pessoas supostamente seguem sem pensar ou questionar da maneira crítica, é produto da mídia e da publicidade. Se assim for, como afirma Kundera no romance A imortalidade, a realidade desaparece. Uma velha senhora numa aldeia da Boêmia, no século XIX, tinha muito mais controle de sua própria vida, assim como do ciclo de realidade natural e mundana, que hoje tem um milionário ou político poderoso, obrigado a colocar sua vida à mercê de manipuladores de opinião.

Examinando mais de perto o romance A possibilidade de uma ilha, de Michel Houellebecq, percebemos visão semelhante sobre o que aconteceu à política da arte e à arte da política. Arte e ficção não podem sobreviver sem se render a imagens cheias de sexo, violência e coerção. Além disso, elas cerram fileiras com a política ficcionalizada e com as mensagens da mídia sensacionalista ao combinar sensacionalismo barato, teorias conspiratórias cacofônicas, insinuações justificáveis, conjecturas e ódio habilmente traduzidos na linguagem dos cartuns e do entretenimento políticos.

Mas não há razão para exagerar o papel dos imagólogos ou, no jargão político atual, dos manipuladores de opinião, já que os próprios políticos estão ávidos por agir como constructos da mídia. Eles não são da mesma estirpe ou classe de pessoas a que pertenceram desde a época da revolução puritana na Inglaterra (a primeira ação na história moderna a estabelecer o domínio da lei como princípio regulador sobre o rei) até a Segunda Guerra Mundial e o período do pós-guerra, com figuras históricas como Winston Churchill, Charles de Gaulle ou Willy Brandt. Também não são astros da cultura pop, celebridades, vítimas ou artistas. Na maioria dos casos, funcionam como a nova classe dos políticos-artistas.

Só duas coisas têm valor no mundo da sociedade tecnológica e consumista, como mostrou Houellebecq: o entretenimento da política e a política do entretenimento. É por esse motivo que comediantes do gênero stand-up, produtores de TV trabalhando com entretenimento político e apresentadores de programas televisivos se tornaram parte inescapável e importante do novo establishment. Políticos não vivem sem imagólogos, segundo Kundera. E não conseguem mais viver sem o humor político, ou, para ser mais preciso, sem o mundo do entretenimento. Eles podem trocar de lugar a qualquer momento. O humor político e a comunidade do entretenimento podem entrar na política, enquanto políticos se tornam prazerosamente astros de TV, preocupados com o entretenimento político ou pelo menos por ele afetados. Basta pensar em Silvio Berlusconi.

Curiosamente, as novas formas de entretenimento político andam de par com o gradual sumiço do velho bom humor. O novo humor político trata mais do ódio disfarçado que de piadas e riso, e o ódio revela ter como objeto a grosseria política atual. Esses aspectos são facilmente conversíveis e intercambiáveis. O ódio torna-se uma valiosa mercadoria política. A grosseria passa a ser uma forma aceita e assumida de serviço político de informação. Veja o chefe do Partido Liberal Democrata da Rússia, Vladimir Zhirinovsky, que, recordando a espirituosa descrição de um político alemão, após cinco minutos de conversa na Alemanha se mostrou antiliberal, após dez minutos antidemocrata, e após quinze fascista.

Foi com boas razões que o historiador britânico Peter Gay descreveu a época da invenção dos modernos cartuns políticos como a era do ódio. Se nós fazemos piadas à margem do que é permitido e no limite da permissividade, tendemos a tangenciar o ódio – tal como o principal personagem do romance de Houellebecq, Daniel, comediante de stand-up raivoso e de grande sucesso, cujas piadas indecentes e duvidosas sobre judeus, árabes palestinos, muçulmanos e imigrantes projetam seu nome e se tornam, por sua vez, o nome do jogo.

Em nossa sociedade tecnológica consumista, o entretenimento é preferível ao humor genuíno, que sobrevive à margem do próprio entretenimento, do poder e do prestígio. O mundo todo se tornou político. Por conseguinte, fomos libertados dos estereótipos e da irracionalidade de nossa experiência anterior. Mas também perdemos o humor, que não nascia de outra coisa senão do estereótipo – de uma irracionalidade segura num mundo inseguro – e da impotência. Isso se dá não apenas por causa das animosidades políticas e do ódio disfarçado em entretenimento e cultura popular. O problema é que a política é uma questão de empoderamento, motivo pelo qual ela não pode tolerar a fraqueza. O brilhante humor dos judeus do Leste Europeu é um exemplo perfeito da existência do outro lado do campo de poder.

O humor político de nossa época – com seu flerte seguro com o poder – é a política em sua forma mais verdadeira. Não é mais antiestrutural nem uma orgia linguística, mas um suave e gracioso ajuste à estrutura e ao campo de poder. É também uma advertência: senhoras e senhores, vocês não são os únicos aqui. Compartilhem ou irão perecer. Esse é o novo nome do jogo.

A crise geral da política pode ser uma das razões da existência desse forte desencanto com o liberalismo na Europa. A crise do liberalismo é demasiado óbvia para que precisemos enfatizá-la. A um olhar mais próximo, o que ocorre agora na Europa parece uma enorme onda de antiliberalismo, incluindo graves violações dos direitos humanos em países que aparentemente não têm dúvidas sobre seu compromisso com a democracia e suas suscetibilidades. E o pior ainda não chegou. O ex-liberal que opta por um amálgama de racismo, xenofobia e louvor à Heimat, enquanto permanece 100% comprometido com a economia de livre mercado e seu aspecto neoliberal, dificilmente poderia ser considerado diferente dos proponentes do capitalismo sem democracia da China e da Rússia. Antigos astros do liberalismo europeu tornam-se conservadores quase que da noite para o dia e degeneram em menestréis do populismo de extrema direita. Basta relembrar Viktor Orbán, o líder do Fidesz na Hungria, ou o chefe do Partido da Liberdade (Partij voor Vrijheid, PVV), Geert Wilders, na Holanda.

Mais um detalhe revelador da profunda crise do liberalismo: quando indagado sobre as chances de essa ideologia mudar a paisagem intelectual e a lógica da vida política no Leste Europeu, o sociólogo polonês Jerzy Szacki expressou fortes dúvidas. Disse temer, e com sérios motivos, que o liberalismo plantado no solo de sociedades pós-comunistas se tornasse uma caricatura de si mesmo, transformando-se numa inversão do marxismo, celebrando e associando-se obsessivamente à economia e ao poder financeiro, em vez de se manifestar em favor da liberdade e dos direitos humanos.

Szacki estava certíssimo, e foi isso que ocorreu na Europa Central e no Leste Europeu. Após o colapso da antiga União Soviética, surgiu o que eu descreveria como matriz da política dessas regiões: o antigo Partido Comunista assumiu todo o poder financeiro, criando uma rede dentro da qual o poder econômico e político se fundiu num todo indivisível; enquanto o poder oposto, um partido conservador-nacionalista com alguns ex-comunistas remanescentes, preparava-se para pintar sua casa com novas cores quase que da noite para o dia, tornando-se seu antípoda – uma unidade ligada à religião e mais ou menos autoritária, ferozmente oposta, em espírito, à antiga estrutura de poder, mas em nada diferente desta em termos de sensibilidades democráticas.

E onde foram deixados, nesse contexto, nossos potenciais liberais? Na melhor das hipóteses, tenderam a constituir clubes isolados e semiacadêmicos para estudar e celebrar Adam Smith e um conceito grosseiramente simplificado de mão invisível. Além disso, uma explosiva proliferação de traduções de Friedrich A. von Hayek, Ludwig von Mises e outros economistas liberais com orientação no laissez-faire levou depressa à produção de títulos sonoros com que os liberais recém-nascidos do Leste Europeu batizaram os liberais de centro-esquerda da Europa Ocidental e dos Estados Unidos – “socialistas”, “comunistas”, “traidores do liberalismo” e coisas desse tipo.

Lembro-me de um rápido intercâmbio com um colega americano que ia dar uma palestra na Universidade de Ohio. Aguardando minha participação num auditório vizinho, eu lhe desejei boa sorte, ao que ele reagiu oferecendo-me uma breve exposição de suas impressões sobre a República Tcheca. Comentando o novo esboço de Constituição que iria debater, observou com ironia que o que ele ali encontrara fora uma notável versão do marxismo virado de cabeça para baixo. “Nem uma única palavra sobre cultura ou educação, somente economia”, lastimou.

Mas essa foi apenas a parte insignificante de um doloroso problema. O fato de a maioria dos liberais da Europa Central e do Leste Europeu não conseguir revelar e apreciar o liberalismo de Isaiah Berlin, John Gray ou Michael Ignatieff – um arcabouço inclusivo e crítico da política do diálogo e da coexistência com base no reconhecimento mútuo e no valor humano, e não uma abordagem unidimensional, doutrinária e partidária – era lamentável, porém, não a pior das notícias. Mais estava por vir.

A mencionada matriz política da Europa Central e do Leste Europeu, abrindo espaço político para um sistema bipartidário sem um nicho autêntico para os liberais, permitiu que alguns partidos minúsculos ou de amplo espectro ideológico criados pelos novos magnatas e por pessoas em busca de revanche política fossem apresentados como forças liberais, e essa foi a verdadeira tragédia. Os antigos e ultrapassados modos de retórica e de discurso político eram um diminuto segmento do drama político pós-comunista; o fato de partidos minúsculos ou várias espécies de agregados semiliberais serem aceitos na família política dos liberais europeus foi bem mais doloroso para o futuro do liberalismo.

Esses cálculos e manifestações da tecnocracia política já desferiram um sério golpe nos liberais europeus. Tentando desesperadamente recrutar novos “irmãos de fé” no Leste Europeu, os liberais da Europa arriscam-se a perder sua identidade política e sua razão de ser. A caricatura das ideias liberais no Leste Europeu, onde o liberalismo foi confinado à sustentação tecnocrática do livre mercado e à consequente interpretação econômica vulgar do mundo humano, é resultado do vácuo intelectual e moral daquela região após 1990.

Por infortúnio, seus correlativos da Europa Ocidental não parecem melhores se levarmos em consideração a rejeição dos aspectos educacionais e morais da política, que constitui o câncer do novo liberalismo europeu, obcecado em encontrar um nicho e se acomodar no processo de tomada de decisão e na realpolitik globais. Um desdém pelas ciências humanas e pela educação liberal, acoplado à cegueira em relação à cultura e a seu papel crucial na Europa, parece a maldição dos liberais europeus.

Posso bem imaginar a reação dos que se oporiam com energia a mim lembrando-me do compromisso dos liberais com os direitos humanos. Isso é verdade até certo ponto. Mas não podemos nos iludir tomando os liberais como os únicos campeões dos direitos humanos – não faz sentido presumir aqui um monopólio moral, já que muitos liberais não conhecem os dramas dos povos e indivíduos da Europa Central e do Leste Europeu que tiveram seus nomes gravados como grandes dissidentes na memória dessa parte da Europa. Ninguém tem o monopólio da verdade em política, e o mesmo se aplica à virtude e à ética em geral.

Em nossa época de tecnocracia disfarçada de democracia, os liberais traem um ser humano cada vez que o tratam apenas em termos de força de trabalho, unidade estatística ou parte de uma maioria do “eleitorado”. Esse é um tema crucial e que eles ainda devem abordar.

Outra questão é o que eu chamaria, usando seu imortal adjetivo, na verdade de caráter cirúrgico e existencial, de totalitarismo líquido. Como sabemos, o termo “totalitarismo soft” está nos lábios de muitos observadores. Estes sugerem que a União Europeia não é uma democracia, mas uma tecnocracia com esse disfarce. Em função dos serviços de vigilância em massa e de informações secretas que cada vez mais citam a guerra ao terror para exigir que nos submetamos ao escaneamento corporal nos principais aeroportos do mundo, ou que forneçamos todos os detalhes de nossas atividades bancárias, sem excluir a opção de expor os aspectos mais íntimos e pessoais de nossas vidas, os analistas sociais tendem a descrever essa propensão sinistra que nos expropria a privacidade como “totalitarismo soft”.

As coisas podem estar próximas daquilo que dizem que elas são. Todos esses aspectos da modernidade, com sua crescente obsessão por controlar nossas atividades públicas sem perder o senso de alerta máximo, quando se trata de nossa privacidade, permitem-nos presumir com segurança que essa privacidade hoje está morta. Como pessoa que cresceu e se criou na era Brejnev, por algum tempo imaginei, de forma meio ingênua, que a dignidade humana era violada única e exclusivamente na antiga União Soviética. Afinal, não podíamos fazer uma ligação telefônica para outro país sem controle oficial e relatórios sobre a conversa, para não mencionar nossa correspondência e todas as outras formas humanas de intercâmbio.

Como diria você, esses foram dias de uma era da modernidade sólida em que o totalitarismo era claro, discernível, óbvio e malévolo. Para usar termos seus, na era da modernidade líquida, a vigilância em massa e a colonização do privado estão vivas e em boa forma, embora assumam aspectos diferentes. Nas grandes distopias de nossa época, o indivíduo é invadido, conquistado e humilhado pelo Estado onipotente, ao ser expropriado de sua privacidade, incluindo seus aspectos mais íntimos. A tela de TV no 1984 de George Orwell, ou relatórios sobre o vizinho, amante ou amigo de alguém (se é que faz sentido usar esses termos, já que amor e amizade, como modernos sentimentos e expressões de livre escolha, haviam sido abolidos), aparece como pesadelo da modernidade sem uma face humana, ou da modernidade em que essa face é esmagada por uma bota.

O aspecto mais terrível dessa versão totalitária da modernidade foi a sugestão de que podíamos penetrar em cada um dos aspectos da personalidade humana. Um ser humano é privado de qualquer tipo de segredo, o que nos faz crer que podemos saber tudo sobre ele ou ela. E o ethos do mundo tecnológico prepara o caminho para a ação: podemos, logo devemos. A ideia de conhecer e contar tudo sobre outro ser humano é a pior espécie de pesadelo no que se refere ao mundo moderno. Por muito tempo acreditamos que a escolha define a liberdade. Eu me apressaria em acrescentar que, em especial hoje, da mesma forma o faz a defesa da ideia de incomensurabilidade do ser humano e de intangibilidade de sua privacidade.

O ponto de partida do totalitarismo líquido, em oposição ao totalitarismo sólido e real, pode ser percebido no Ocidente cada vez que vemos pessoas ansiando por reality shows e obcecadas com a ideia de perderem de livre e espontânea vontade sua privacidade, ao expô-la nas telas de TV – com orgulho e satisfação. Mas há outras formas de governo e de política, bem mais reais, que merecem atenção e são amplamente dignas desse termo. De fato, há uma grande distância entre as novas formas de vigilância em massa e de controle social no Ocidente e o divórcio aberto e explícito entre capitalismo e liberdade na China e na Rússia.

Mais que qualquer coisa, o totalitarismo líquido manifesta-se no padrão chinês de modernidade, em oposição ao padrão ocidental, com sua fórmula de capitalismo sem democracia ou livre mercado sem liberdade política. O divórcio entre poder e política que você descreve desenvolveu uma versão específica chinesa: o poder financeiro pode existir e prosperar lá, desde que não se associe ao poder político nem se sobreponha a ele. Fique rico, mas permaneça longe da política. A política ideológica é uma ficção na China, desde que Mao Tsé-Tung foi traído mil vezes por seu partido, que deixou de ser uma cidadela comunista e se transformou num grupo de elite gerencial. É impossível trair mais a Revolução Cultural chinesa e o comunismo que os modernizadores chineses sob o disfarce do toque mágico da modernidade, com a ajuda do livre mercado e da racionalidade instrumental.

Outro exemplo de totalitarismo líquido é a Rússia de Putin, com sua ideia de democracia gerenciada, equipada com o putinismo, esse vago e estranho amálgama de nostalgia da grandeza do passado soviético, capitalismo gângster e cúmplice, corrupção endêmica, cleptocracia, autocensura e remotas ilhas deixadas à opinião e às vozes discordantes na internet. Em contraste com a versão chinesa do divórcio entre capitalismo e liberdade política, a variedade putinesca implica uma fusão total de poder econômico e político com impunidade e terrorismo de Estado, abertamente entregue a gangues e grupos criminosos de variadas tonalidades.

O famoso analista, comentarista e ensaísta político russo Andrei Piontkovsky, uma das vozes dissidentes mais corajosas da Rússia de Putin, descreveu de modo adequado a notável afinidade histórica entre a União Soviética às vésperas do expurgo de 1937 e a Rússia de hoje, salientando que Ilya Ehrenburg manifestara a disposição da intelligentsia com a frase “Nunca antes tivemos uma vida tão próspera e feliz!”. A ironia é que os benefícios obtidos de Stálin pela intelligentsia foram apenas o prelúdio dos horrores do expurgo. “De forma chocante, as coisas são similares na Rússia hoje”, diz Piontkovsky. Tal como Stálin, Putin subornou a intelligentsia. Menos vareta e mais cenoura. No final, enquanto o stalinismo foi uma tragédia shakespeariana, o putinismo é uma farsa.

ZB: Sua declaração, Leonidas, é densamente carregada de questões, cada qual mais grave e pesada que a anterior. Ela pode ser lida como prolegômenos de toda análise futura do atual estado do jogo da política e seus vínculos com a estrutura social, a cultura, os padrões de interação humana, as visões de mundo hegemônicas. Duvido de minha capacidade de responder a todos esses conteúdos riquíssimos, que dirá fazê-lo de maneira sistemática. Prefiro limitar-me a algumas ideias inspiradas pela leitura de seu texto.

Você começa pela natureza mutante dos medos articulados e registrados nos textos distópicos. Agnes Heller há pouco organizou uma ampla amostra de romances históricos escritos nos tempos atuais e tentou justapor seu conteúdo e estilo aos de seus predecessores do século passado, em busca de mudanças nas perspectivas dos autores, talvez em consonância com as variações das expectativas dos leitores. Há muitas observações marcantes no estudo de Heller, mas um de seus achados vai direto ao cerne do problema que você captou e dissecou.

Enquanto os medos e tormentos tanto dos heróis quanto das vítimas nos romances históricos do século passado provinham de guerras, inimizades interdinásticas, exércitos em marcha, choques entre igrejas poderosas e outros tipos de turbulência “no topo”, agora eles se originam no plano das massas, de atos difusos, dispersos, isolados, não planejados e imprevistos, assim como imprevisíveis, de indivíduos distintos; são produtos de ações individuais, embora haja um número maior. Só para dar um exemplo, em O nascimento de Vênus, de Sarah Dunant, ambientado na Florença do tempo de Savonarola, os medos emanavam de malfeitores errantes, numerosos, porém solitários, e de loucos atacando às cegas. Todos, sem exceção, são criações de um horror generalizado diante de assassinos em série à espreita ou supostamente à espreita, em ruas mal-iluminadas e esquinas sombrias, assim como de vizinhos contíguos mal-intencionados. Eles não nascem em função de exércitos invasores, ferozes e sedentos de sangue, tampouco da pestilência ou da fome. Os sofredores são isolados e largados à própria engenhosidade e perspicácia, tal como seus algozes.

Acho que devemos encarar os romances históricos como esse, de novo estilo, como outra divisão na categoria das distopias. A única diferença em relação à divisão principal é o fato de elas serem ambientadas (por definição) num espaço específico, e não num futuro (também por definição) indefinido. Não importa onde se situem, as utopias hoje escritas reciclam um novo tipo de medo: o temor mais por negligência que por ação, os horrores provindos do colapso do controle (tanto da capacidade quanto da vontade de governar), e não de seus excessos ou da ambição desmesurada. Do lado receptor, essa nova qualidade do medo se reflete na praga da solidão: na ausência de comissões a cargo da produção do medo, de uma equipe geral para comandar e direcionar seus produtos, assim como dos quartéis do poder a serem atacados, tomados e incendiados para eliminar as fontes do pavor e das fobias que atormentam a todos, estamos condenados a confrontar nossos medos individualmente e a elaborar nossos próprios estratagemas e subterfúgios para contra-atacá-los, pois os medos comuns a todos não redundam numa comunhão de interesses e numa causa comum, assim como não se fundem num estímulo a juntar forças. Resumindo, nossos medos, tal como tantos outros aspectos da vida num ambiente líquido moderno, foram desregulamentados e privatizados. Essa transformação teve lugar, em simultâneo, nos dois extremos da interface governantes-governados. E dificilmente não teria ocorrido ao mesmo tempo.

Outra questão é sobre a qualidade dos líderes políticos, na verdade, sobre a liderança política em si, que você analisou de modo tão eloquente. Nesse contexto, permita-me citar um pequeno texto que enviei à Sociologicky Casopis, revista de sociologia tcheca, em que tentei avaliar o significado do recente falecimento de Václav Havel:

Alguns dias atrás, centenas de milhares de pessoas, talvez mais de um milhão, tomaram as ruas e praças públicas de Praga para dar adeus a Václav Havel, segundo muitos observadores o último grande líder político-espiritual (espiritual, em grande parte, por sua grandeza política, e político, em grande parte, por sua grandeza espiritual), em relação a quem se pode dizer que dificilmente tornaremos a ver alguém semelhante durante nossas vidas. O que também dificilmente tornaremos a ver é esse grande número de pessoas prontas a tomar as ruas em função de sua gratidão e seu respeito por um estadista, e não pela total indignação, pelo ressentimento e desprezo em relação às pessoas que estão no poder e aos políticos tal “como os conhecemos”. Em seu adeus a Havel, os participantes do cortejo fúnebre lamentavam a morte de um líder que, de forma bem distinta dos atuais operadores da política, deu poder aos impotentes, em vez de privá-los das partículas de poder que eles ainda poderiam deter.

Havel foi um dos poucos líderes político-espirituais – em número cada vez menor, e cada vez mais raros – a desafiar sozinho, e com enorme efeito, a ironia e o desprezo com que muitas vezes era tratada, por pessoas instruídas e pela opinião pública, a capacidade de um indivíduo mudar o curso dos eventos. Futuros historiadores irão confirmar também as temerosas previsões de milhões de participantes do cortejo fúnebre, que se sentiram consternados com a partida de Havel, acrescentando a esse nome a designação de “o último na linhagem dos grandes líderes políticos que moldaram o mundo em que vivemos”.

Dando adeus a Havel, a maioria de nós – incluindo nossos atuais líderes nomeados/eleitos (não importa a relutância com que possam admitir isso) – tem todo o direito e o dever de olhar para si mesmo como um anão sentado nos ombros de um gigante, e Václav Havel sem dúvida alguma foi um dos maiores gigantes. Olhamos em torno procurando, em vão, pelos sucessores desses gigantes – e o fazemos numa época em que precisamos deles ainda mais que antes, até onde vai nossa memória coletiva.

Havel nos deixou numa época em que as pessoas à frente dos governos dos Estados, mesmo dos governos dos chamados “Estados poderosos”, são vistas com dose cada vez maior de ironia e descrença. A confiança na capacidade das atuais instituições políticas de influenciar o curso da história, para não dizer de controlá-lo ou alterá-lo, caso necessário, está encolhendo. A confiança na política em si tem sido deixada à deriva por repetidas observações sobre a impotência dos governos, e ainda está procurando, em vão, um abrigo seguro para interromper seu curso e lançar âncora. Está cada vez mais evidente que a rede herdada de instituições políticas não pode mais realizar seu trabalho. E uma nova caixa de ferramentas para a ação coletiva, na melhor das hipóteses, ainda está em fase de planejamento, não sendo provável que entre em produção a curto prazo, nem que sequer seja reconhecida como digna de existir.

A crescente fraqueza dos poderes políticos atuais há muito foi notada, e parece que se trata de uma doença incurável. Ela é apresentada de modo flagrante demais para ser negligenciada. Os chefes dos governos mais poderosos se reunirão numa sexta-feira, a fim de debater e decidir a linha de ação correta, apenas para esperar, tremendo, que a bolsa de valores reabra na segunda-feira para descobrir se a decisão que tomaram consegue se sustentar. O presente interregno não nasceu há pouco, não muito há pouco, de qualquer modo. Sua existência cada vez mais importuna foi assinalada e reconhecida anos atrás, e refletida num crescente déficit de confiança nos veículos estabelecidos de ação coletiva, na queda do interesse pela política institucionalizada e no sentimento difuso, que se espalha inexoravelmente e que já está generalizado, de que a salvação, caso concebível, não iria e/ou não poderia vir do alto.

Podemos acrescentar que os motoristas e condutores desses veículos de ação coletiva, agindo sozinhos ou em grupo, há muito tempo têm feito tudo que se possa imaginar para colocar essa confiança à deriva, ao negarem e desqualificarem os méritos da ação conjunta, assim como para manter a confiança desancorada – ao admoestar, importunar e convencer homens e mulheres de que, mesmo que os problemas sejam sofridos em comum, eles têm causas individuais, e portanto podem e devem ser individualmente enfrentados e tratados – e individualmente resolvidos, por meios individuais.

Com divisões sociais cada vez mais evidentes buscando em vão uma estrutura política em que se vejam refletidas, assim como ferramentas políticas capazes de ajudar nessa reflexão, o principal traço, talvez o traço definidor, desse “interregno” (ou seja, sua tendência a permitir que quase tudo aconteça, mas nada seja obtido sem algum grau de confiança e certeza de sucesso) pode muito bem se manifestar com uma força sem precedentes e consequências inéditas. Alianças construídas na fase de limpeza do terreno (coalizões de tipo arco-íris, reunindo interesses incompatíveis, inclinadas a se dissipar após o fim do aguaceiro que provocou seu estabelecimento) podem logo se desfazer ou até explodir, revelando – para que todos possam ver – a natureza de seu matrimônio ad hoc por conveniência. A fase de limpeza do terreno não precisava de líderes fortes, muito pelo contrário. Líderes assim, com uma visão corajosa e firmes convicções, podem fazer com que essas coalizões entrem em colapso muito antes de a limpeza estar concluída.

Os porta-vozes das pessoas em movimento podem declarar que estão satisfeitos (embora não necessariamente pelos motivos certos), que não possuem líderes nem necessitam deles – na verdade, podem encarar a falta de liderança como sinal de progresso político e uma das realizações mais importantes dos movimentos. Vladimir Putin, quando declarou (prematuramente, ao que tudo indica) a derrota do protesto público de massa contra o escárnio com que os poderes da Rússia tratam seu eleitorado, bateu com a cabeça na parede. Imputou o suposto fracasso da oposição à ausência de um líder capaz de preparar um programa que os manifestantes se dispusessem a aceitar e fossem capazes de apoiar.

Isso não surpreende. É o que se espera em nossa época, à qual Antonio Gramsci chamou, por antecipação, de “interregno” (termo por muito tempo e injustificadamente olvidado, mas por sorte desencavado e reposto em uso graças ao professor Keith Tester): uma época em que se avolumam a cada dia as evidências de que as antigas e já testadas formas comuns de fazer as coisas não funcionam mais, enquanto seus substitutos mais eficientes não estão à vista – ou são precoces, voláteis e incipientes demais para serem notados ou levados a sério quando (e se) forem notados.

Podemos presumir com segurança que o número crescente de pessoas que tomam as ruas hoje e se estabelecem por semanas ou meses ininterruptos em abrigos improvisados, montados em praças públicas, sabe – ou, mesmo não sabendo com certeza, tem a oportunidade de adivinhar ou suspeitar – do que estão fugindo. Sabem com certeza, ou pelo menos têm bons motivos para acreditar que sabem, o que elas não gostariam que continuasse sendo feito. O que não sabem, porém, é o que precisa ser feito em vez disso. E mais importante ainda, não têm ideia de quem poderia se mostrar poderoso e disposto o bastante para conduzir o que acreditam ser a maneira certa. Mensagens no Twitter e no Facebook convocam e enviam essas pessoas à praça pública para protestar contra “o que aí está”, mas os remetentes da mensagem se mantêm calados sobre a discutível questão do tipo de “deve estar” que deveria substituir esse “está”; ou retratam esse “deve” num esboço amplo, superficial, vago e acima de tudo “flexível” o suficiente para evitar que alguma de suas partes se ossifique em pomo da discórdia. Também se mantêm, com prudência, silenciosos em relação à espinhosa questão da compatibilidade ou incompatibilidade de suas demandas. Os remetentes de mensagens do Twitter e do Facebook só podem desprezar essa cautela sob o risco de prejudicar a causa que promovem. Se desobedecessem às regras férreas de todo apelo digital às armas, e toda exitosa estratégia do on-line para o off-line, correriam o risco de suas mensagens morrerem no nascedouro ou perecerem sem deixar herdeiros. Poucas tendas seriam montadas em praças públicas em resposta a seus apelos, e bem poucas manteriam seus habitantes iniciais por muito tempo.

Ao que tudo indica, os canteiros de obras hoje estão em processo de limpeza coletiva, na expectativa de um novo tipo de gerenciamento do espaço. As pessoas em movimento fazem esse trabalho, ou ao menos tentam fazê-lo com honestidade. Mas os futuros prédios que deveriam substituir os que foram abandonados e/ou demolidos se espalham por inumeráveis pranchetas privadas, nenhuma das quais no estágio de licenciamento. Na verdade, ainda não se fincaram os alicerces de uma agência de planejamento capacitada e incumbida de emitir essas licenças. Enquanto o poder de limpar terrenos parece ter crescido consideravelmente, a indústria de construção está ficando muito para trás – e a distância entre suas capacidades e a grandiosidade do trabalho de construção continua a aumentar.

A impotência e a inaptidão, altamente visíveis, da máquina política atual constituem a principal força a mover um número sempre crescente de pessoas em movimento e em contínuo avanço. A capacidade integradora dessa força está confinada, contudo, à operação de limpeza do terreno. Ela não se estende aos planejadores, arquitetos e construtores da pólis que será erigida em seu lugar. Nosso “interregno” é marcado pelo desmantelamento e a desabilitação das instituições que costumavam ajudar nos processos de formação e integração de perspectivas, programas e projetos públicos. Submetidas a um profundo processo de desregulamentação, fragmentação e privatização, juntamente com o restante do tecido social da coexistência humana, tais instituições permanecem privadas de uma ampla parcela de sua capacidade executiva e da maior parte de sua autoridade e confiabilidade, com apenas uma vaga chance de recuperá-las.

Qualquer criação é quase inimaginável se não for precedida ou acompanhada por um ato de destruição. A destruição, porém, não determina por si mesma a natureza de uma sequência construtiva, nem torna sua iminência uma conclusão inevitável. No que se refere à rede institucional da sociedade, em particular aos veículos de empreendimentos coletivos, integrados, é como se 2011 tivesse contribuído muito para o volume e a capacidade das escavadoras disponíveis. Ao mesmo tempo, naquele ano, a produção de guindastes e outros equipamentos de construção mergulhou ainda mais fundo numa já prolongada recessão, e os suprimentos existentes ficaram ociosos – foram estocados na expectativa de tempos mais propícios, embora estes, infelizmente, se mostrem relutantes em chegar.

Líderes de coalizões ad hoc só podem ser líderes ad hoc, trabalho bem pouco atraente para pessoas com genuínas qualidades de liderança, equipadas com algo além de charme fotogênico pessoal, habilidades em velhacaria e apetite pela notoriedade instantânea, ainda que frágil. Cada conjunto de circunstâncias externas cria seu próprio conjunto de opções realistas para escolhas individuais, mas cada opção atrai sua própria categoria de potenciais optantes. Uma política reconhecidamente impotente, preocupada sobretudo em manter seus súditos a uma distância segura, cada vez mais percorrida por publicistas e produtores de oportunidades fotográficas, e ainda mais distante das questões e preocupações cotidianas das massas, dificilmente funcionaria como ímã para indivíduos com projetos e visões cujo alcance ultrapassa a data das próximas eleições – indivíduos com as qualidades indispensáveis para formar os líderes políticos, mas não para operadores da máquina política. Os potenciais líderes políticos ainda estão nascendo. A deterioração e a crescente decadência e impotência das estruturas políticas os impedem de amadurecer.

Vladimir Putin resumiu com muita precisão o estado atual da experimentação com ferramentas alternativas de ação política para substituir as outras, ultrapassadas, cada vez menos potentes e mais débeis. Contudo, não lhe cabe (nem a ninguém) determinar por quanto tempo seu diagnóstico irá manter a validade, antes que isso seja decidido pelas pessoas que fazem a história ao mesmo tempo em que por ela são feitas, por ação ou omissão. Nesse processo, a necessidade urgente, imperativa de uma política genuína e de líderes espirituais, assim como sua probabilidade, se tornará mais e mais evidente. Os eventuais líderes deverão ter a prudência de relembrar e aprender com a experiência as realizações de Václav Havel. Pois mesmo entre as figuras políticas mais preeminentes dos últimos tempos Havel de certo modo se destacava.

Ao contrário de outros líderes políticos autênticos, Havel não tinha à disposição nenhum equipamento considerado indispensável para o exercício de uma influência tangível. Não tinha atrás de si um movimento político, acompanhado de uma máquina política ramificada e bem-entrincheirada. Não tinha acesso a grandes verbas públicas, um exército, lançadores de mísseis nem polícia, fosse ela secreta ou uniformizada, para transformar sua palavra em carne. Não possuía veículos de massa para transformá-lo em celebridade, transmitir suas mensagens para milhões e fazer com que milhões ficassem ávidos por ouvi-las e segui-las. Na verdade, Havel tinha apenas três armas para usar em seu esforço de mudar a história: esperança, coragem e obstinação – armas que todos nós possuímos em maior ou menor grau. A única diferença entre Václav Havel e o restante de nós é que, ao contrário dele, dificilmente recorremos a essas armas, e quando (ou se) o fazemos, é com uma determinação muito menor, além de mais fraca e de curta duração.

Para seguir essas recordações de Havel, permita-me observar que, não importa quão discordantes fossem entre si as grandes ideologias do espectro político do passado, todas elas concordavam em um ponto, embora se altercando com ferocidade sobre o que precisava ser feito, dificilmente discutiam sobre quem iria fazer aquilo que, em sua opinião, era necessário. E não havia necessidade de discussão, pois considerava-se evidente que a agência destinada a transformar o verbo em carne era o Estado; o Estado todo-poderoso, como as pessoas então acreditavam nele, que fundia o poder de fazer coisas à capacidade de decidir quais delas deveriam ser feitas e quais seriam evitadas, exercendo uma soberania plena – ou seja, a capacidade executiva – sobre seu território e a população que o habitava. A receita simples para conseguir que as coisas fossem feitas (o que quer que elas fossem) era assumir o aparato do Estado a fim de utilizar o poder que ele detinha. O poder era visualizado como “estocado” em armazéns do governo e pronto para uso (simbolizado na imaginação do público pelo botão que libera o lançamento de mísseis nucleares que todo presidente dos Estados Unidos tem o direito de pressionar, independentemente do partido político que o tenha colocado no Salão Oval). Quem administra o armazém tem a capacidade de fazer o que considera correto e adequado, ou apenas conveniente.

Esse, porém, não é mais o caso. O poder de fazer com que as coisas sejam feitas flutua nos “espaços dos fluxos” (Manuel Castells); é evasivo, cheio de mobilidade, irritantemente difícil de localizar, apontar ou designar e, tal como a hidra lendária, tem muitas cabeças. É imune a regras estabelecidas no local e confinadas ao território – e formidavelmente resistente a todas as tentativas de controlar seus movimentos e tornar previsíveis suas próprias ações, ou suas reações às ações dos outros. A contrapartida é a rápida diminuição da autoridade dos governos de Estado, que exibem sua impotência a toda hora, cada dia de modo mais espetacular. Creio que as visões de uma “boa sociedade” saíram de moda, em última instância, porque os poderes capazes de concretizá-las sumiram de nossa vista. Por que quebrar a cabeça tentando responder à questão “O que fazer” se não há resposta à questão “Quem o fará”? Hoje atravessamos múltiplas crises, porém, a mais profunda delas, de fato, uma “metacrise”, que torna todas as outras quase insolúveis, é a crise da agência. E mais importante ainda, da “agência tal como a conhecemos”, da herdada e atual agência do Estado, experimentada e testada pelas gerações passadas, que a montaram e que as recomendaram a nós.

De modo correspondente e complementar ao declínio e fracasso da agência (eficaz, confiável), tem havido uma mudança seminal no domínio da ideologia. Até por volta de meio século atrás, as ideologias estavam, por assim dizer, “entrelaçadas” com o Estado – seus interesses e propósitos eram estabelecidos. As ideologias de hoje estão entrelaçadas com a ausência do Estado como instrumento eficaz de ação e mudança. Em sua versão extrema, a ideologia está “privatizada”, concentrada em escavar um nicho relativamente sólido e tranquilo na areia movediça; um refúgio seguro e protegido num ambiente social desesperada e irremediavelmente inseguro e desguarnecido (como construir um abrigo familiar num mundo inclinado para a “Destruição Mutuamente Garantida”, DMG – ou comprar uma residência numa “comunidade fechada”, dentro de uma cidade repleta de violência e decadência incontroláveis).

A alguma distância do polo da “individualização” e pulverização extremas das totalidades sociais, estende-se uma ampla gama de ideologias preocupadas em procurar e testar novas formas de ação coletiva como possível(eis) alternativa(s) a um Estado agora cada vez mais conspícuo. O já mencionado fenômeno das “pessoas em movimento” é uma dessas ideologias em ação. Incipiente e precoce, não plenamente constituído, mais encontro de grupo às cegas que movimento determinado e consistente numa direção planejada e escolhida, até agora está em fase de teste. A evidência acumulada durante o teste é ambígua, para dizer o mínimo. O júri ainda está deliberando e provavelmente irá deliberar por muito tempo. Os sinais são controversos; os resultados de sucessivos testes são caleidoscópicos; o conteúdo de suas mensagens é camaleônico. A recusa a investir esperanças nas instituições políticas existentes talvez seja o único fator invariável e integrador que esses movimentos compartilham.

Outro aspecto crucial entre os muitos que você mencionou… Você diz:

A tela de TV no 1984 de George Orwell, ou relatórios sobre o vizinho, amante ou amigo de alguém (se faz sentido usar esses termos, já que amor e amizade, como modernos sentimentos e expressões de livre escolha, haviam sido abolidos), aparece como pesadelo da modernidade sem uma face humana, ou da modernidade em que essa face é esmagada por uma bota.

Mas daí você infere que, “na era da modernidade líquida, a vigilância em massa e a colonização do privado estão vivas e em boa forma, embora assumam aspectos diferentes”. Quanta verdade!

Creio que um insight mais importante deve ser trazido a esse contexto. Ele ajuda a entender o mecanismo utilizado na vigilância de massa e na “colonização do privado” e a metodologia da subordinação e da escravização espirituais específicas de nossos tempos líquidos modernos, assim como as técnicas de poder empregadas na construção desses mecanismos. Joseph S. Nye inverteu a infame recomendação de Maquiavel ao príncipe: é mais seguro ser temido que amado.11 Ainda se debate se essa recomendação era certa ou não para os príncipes. Sem dúvida, porém, ela não faz mais sentido para presidentes e primeiros-ministros.

Nye concordaria que, em função de seus hábitos oscilantes, o amor não é particularmente adequado como alicerce sobre o qual a confiança a longo prazo possa se construir e manter. Mas tampouco o é, acrescenta ele, o estado de atemorização, em especial se não for reconfirmado por um príncipe que continue a proceder com base na ameaça de punição, na promessa de ser tão cruel, desumano e bestial – e acima de tudo tão incontrolável e irresistível – quanto aparentava e/ou acreditavam que ele fosse. Essa recomendação revela-se ainda mais inconfiável e frustrante se o amor (acompanhado de admiração, respeito, confiança e disposição de desculpar lapsos, delitos e impropriedades ocasionais) está ausente ou não é forte o bastante para compensar exibições de incompetência ou impotência. Em suma, presidentes e primeiros-ministros, atenção! Levando-se tudo isso em consideração, é mais seguro ser amado que temido. Se for preciso recorrer abertamente a hostilidades, não avalie seu sucesso pelo número de inimigos mortos, mas pela quantidade de amigos, admiradores e aliados que conseguiu reunir, adquirir e/ou confirmar.

Não acha que isso seja verdade? Basta ver o que aconteceu com a União Soviética. Ela emergiu dos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial com um assombroso capital de admiração e respeito entre os formadores de opinião em âmbito mundial. Tudo isso só para desperdiçá-lo, afogando o levante da Hungria em rios de sangue e depois esmagando e asfixiando o experimento tchecoslovaco e seu “socialismo com face humana”, para culminar a ignomínia com um desempenho econômico desastroso e a miséria produzida e reproduzida no plano doméstico sob a égide da economia planificada.

Ou veja os Estados Unidos, mundialmente reverenciados e admirados ao emergirem triunfantes de duas guerras sucessivas contra regimes totalitários só para dissipar um suprimento enorme, em aparência inexaurível, de confiança, esperança, adoração e amor, ao invadir o Iraque e o Afeganistão por motivos fraudulentos e sob falsas premissas, enquanto as armas destinadas a impor o medo se mostravam eficientes e mortais, como se acreditava. O terrível Exército de Saddam Hussein foi varrido, no estilo Blitzkieg, e levou apenas alguns dias para que as fortalezas talibãs fossem destruídas e derrubadas como cartas de baralho, enquanto os Estados Unidos perdiam, um a um, quase todos os membros da coalizão inicial e todos os seus potenciais aliados no mundo árabe. De que valeu isso? Os Estados Unidos provavelmente mataram centenas de milhares de iraquianos, com ou sem uniforme, mas perderam milhões de simpatizantes.

No mesmo livro, Nye conclui que “o modelo de liderança ao estilo militar” saiu de moda. Talvez a ideia de liderança tal como a conhecemos o tenha seguido. Ao menos, era nisso que insistiam os porta-vozes dos “ocupantes de Wall Street”, transformando em mérito o fato de não terem líderes; ou o que dois em cada três americanos confirmam, relatando sua falta de confiança nos poderes constituídos; ou o que sugere uma recente pesquisa encomendada pela Xerox Company, mostrando que o sucesso em empreendimentos coletivos depende 42% do trabalho em equipe, mas apenas 10% da qualidade dos líderes.

As pessoas não são mais tão submissas como costumavam ser (ou se acreditava que fossem) e estão menos propensas a temer a punição por desobediência do que se imaginava. Ficou mais difícil coagi-las a fazer o que os poderes constituídos desejam que façam. Por outro lado, porém, tornam-se mais suscetíveis à sedução, à medida que as tentações vão ganhando amplitude e sofisticação técnica. Atuais e futuros presidentes e primeiros-ministros, tomem nota: Joseph S. Nye Jr., experimentado e testado conselheiro de presidentes e membro de muitos think tanks do mais alto nível, recomenda a todos os atuais e potenciais detentores do poder que se baseiem menos no poder hard (seja ele militar ou econômico) e mais em sua alternativa e seu complemento soft; ou, em resumo, no poder inteligente, a razão áurea dos dois, uma mistura ótima, até agora difícil demais de se achar, mas urge buscar com atenção e com a dose certa de cada um dos dois ingredientes: uma combinação ideal da ameaça de quebrar pescoços com o esforço de conquistar os corações.

Entre as elites, sejam elas militares ou políticas, Nye tem uma voz de autoridade ouvida com atenção. Ele mostra uma saída da longa e cada vez mais ampla série de aventuras militares fracassadas e derrotas mascaradas. Creio que aquilo que sua voz sinaliza e reflete é uma espécie de fim de era, a era das guerras como as conhecemos, compreendidas sobretudo como um negócio simétrico – um combate. Os instrumentos de coerção do “poder hard” não foram absolutamente abandonados, da mesma forma que aquelas armas que provavelmente perderam em termos de aceitação e uso. Mas são cada vez mais planejados com a ideia de tornar a reciprocidade, e portanto a simetria ao estilo combate, quase impossível.

Exércitos regulares raras vezes se encontram face a face; armas pouco chegam a ser descartadas. Nas atividades terroristas, tanto quanto na “guerra ao terrorismo” (a distinção terminológica reflete a nova assimetria de hostilidades), a evitação total do confronto direto com o inimigo é buscada por ambos os lados e com crescente sucesso. Dos dois lados da linha de frente desenvolvem-se duas estratégias e táticas de guerra em tudo diferentes. Cada lado tem suas próprias limitações – mas também suas vantagens, em relação às quais o outro lado não possui respostas eficazes. Portanto, as atuais hostilidades que substituem o combate de outrora consistem em duas ações unilaterais, flagrantemente assimétricas, pretendendo tornar nula e inválida a própria possibilidade de simetria.

De um lado, há uma tendência de reduzir as hostilidades a ações realizadas a uma distância suficiente para negar ao inimigo a oportunidade de replicar ou mesmo prevenir, que dirá evitar, uma resposta de mesmo tipo; essas ações são conduzidas com a ajuda de mísseis inteligentes ou drones cada vez mais sofisticados, difíceis de localizar e desviar. Do outro lado, pelo contrário, a tendência é de simplificação do armamento: redução de custo, tamanho e complexidade de montagem e uso. O custo de sequestrar um avião e usá-lo com efeitos materiais devastadores – além de efeitos psicológicos cada vez mais desastrosos – é apenas alguns dólares maior que o preço de uma passagem aérea. Avaliado pelos padrões da primeira tendência, o efeito tende a ser desproporcionalmente grande em relação ao gasto, mas essa não é toda a história da assimetria dos custos. A simplicidade e a facilidade de acesso aos materiais de que são construídas essas armas tornam difícil a detecção precoce de atos terroristas planejados, e portanto sua prevenção.

Mas o aspecto fundamental que disso decorre é que o custo das tentativas de evitar os inumeráveis atos terroristas previstos (com base em conjecturas e em “evitar riscos”) tende a ultrapassar em muito o custo de lidar com os danos resultantes das poucas ações desse tipo realmente empreendidas. Como esses custos têm de ser cobertos pela capacidade financeira do lado que está sob ataque, eles podem muito bem, a longo prazo, se transformar na arma mais eficaz e devastadora dos terroristas (imagine só quanto custa espionar, detectar e confiscar milhões de garrafas de água, dia após dia, em milhares de aeroportos de todo o mundo, só porque alguém, em algum lugar, em algum momento, foi apanhado montando, ou era suspeito de montar, uma bomba artesanal ou caseira, misturando pequenas quantidades de líquidos). Algumas pessoas consideram que o colapso da União Soviética foi desencadeado por Reagan quando este envolveu Gorbachev numa corrida armamentista que a economia daquele país não podia enfrentar sem ir à bancarrota. Observando-se a dívida federal americana, já exorbitante e ainda em crescimento rápido, somos perdoados por indagar se Bin Laden e seus sucessores não pegaram a dica e aprenderam a lição esforçando-se por repetir o feito de Reagan.

LD: A questão de saber se a política moderna vai sobreviver ao século XXI da mesma forma como vigorou por séculos não é uma piada. O maniqueísmo de direita e esquerda, que, nas palavras de Milan Kundera, “é tão estúpido quanto insuperável”, e que está fortemente fincado na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, é muito mais que política partidária. Fosse ele simples, e seria muito seguro presumir que não haveria outra maneira de enfrentar as polaridades e visões opostas da existência humana que não a política democrática, com sua ética do compromisso racional, sem abrir mão de nossos princípios fundamentais, assim como de nossa dignidade e identidade.

Entretanto, olhando-se mais de perto, parece que não é assim. Estamos sofrendo com os encontros improdutivos, embora dramáticos, entre conceitos morais, códigos culturais e visões do mundo à nossa volta, inconciliáveis e mutuamente exclusivos, que os políticos tentam hoje assumir, acomodar e monopolizar. Mas não há uma única chance de conciliar esses dois polos e atingir um denominador comum.

Nesse ponto, o compromisso moral de nossa época, que denominamos ideologia dos direitos humanos, poderia ser bastante decepcionante mesmo no Ocidente. A indisfarçada irritação dos direitistas a cada insinuação de seus colegas da esquerda a respeito dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) é devolvida pela esquerda quando a direita tenta singularizar a perseguição aos cristãos no mundo, ou mencionar o cristianismo como força condutora da Europa, ou ao menos como uma forma de sensibilidade moral e política – tentativa em geral frustrada pela esquerda.

Enquanto os políticos estiverem preocupados, para não dizer obcecados, com o corpo, a privacidade e a memória dos homens, eles tenderão a substituir a busca de uma boa política pela luta a favor da maioria moral, abrindo agressivamente o caminho em direção a novas formas de controle social, disfarçadas de preocupações morais e educacionais.

Foi com sólidas razões, portanto, que Michel Houellebecq descreveu esse conflito interno da modernidade como o choque de duas antropologias opostas: a do outro mundo, orientada para um ideal distante, em cujo nome seus adeptos falam e agem ao buscar cobrir o território caracteristicamente moderno da sensibilidade e da vida humanas; e a deste mundo, que nega ter um plano superior ou supremo de existência e dignidade e é abertamente materialista e hedonista. A primeira preserva a vida em todas as suas formas, opondo-se com rigor ao aborto e defendendo a origem divina do ser humano; a segunda defende a relação entre o corpo feminino e sua dignidade, ou entre privacidade e liberdade.

A primeira é uma fraude, no sentido de se apresentar como uma tradição antiga e consagrada pelo tempo, falando uma linguagem moderna de poder e comportando-se como um ator de hoje com a voz de um profeta coletivo com mil anos de idade. No entanto, de certa maneira, assim também é a segunda, já que se esforça por se apresentar como a voz de hoje, embora fale em favor de uma velha ideia de antropocentrismo ancorada no Renascimento. O que é deixado para trás na luta dessas duas antropologias antagônicas e mutuamente exclusivas é uma tensão fundamental da modernidade.

O que é uma agência pública adequada (supondo-se que exista alguma) ao mistério da vida, da liberdade e da consciência humanas? Quem fala por nós? Os que nos controlam ou os que supostamente nos conhecem melhor que nós mesmos? Na verdade, nenhum deles.

E isso nos traz à próxima questão essencial: qual o potencial da política para representar a humanidade moderna, e qual será o futuro dos partidos políticos, esses agentes do poder que falam em nome da relação entre indivíduo e comunidade, traduzindo seus interesses privados em assuntos públicos, empoderando-os e conectando-os ao domínio público?

Na era do Facebook, em especial após a Primavera Árabe, tornou-se óbvio que os partidos políticos só sobreviverão até o próximo século, ou talvez só até a segunda metade do século XXI, se começarem a agir como os movimentos sociais e se ligarem a eles. De outra forma correm o perigo de se tornar irrelevantes e inúteis. Ou os partidos se aproximam dos movimentos sociais como novas expressões de vontade social e política esporádica (algo semelhante aos Indignados da Espanha), ou vão perder terreno, funcionando apenas como grupelhos antiquados e banais.

Como grupos de pessoas conscientes de seus objetivos e interesses políticos, os partidos correm o risco de serem eliminados a longo prazo por grupos politizados, corporativos ou semirreligiosos, talvez imbuídos de um vago sectarismo pós-moderno. Os vínculos humanos e a devoção conjunta são muito mais fortes nesses grupos quase religiosos que nos partidos políticos, enquanto a busca da realização de interesses econômicos pode ser muito mais eficiente em pseudopartidos organizados como novas células do mundo corporativo. Em ambos os casos, os partidos políticos à moda antiga, que sempre se basearam na clássica lógica do poder profundamente arraigada à unidade territorial, assim como no moderno casamento da política com a cultura, vão se encontrar numa situação em que é impossível vencer.

A representação e a legitimidade democrática genuínas, mais que a busca de formas eficazes de comunicação pública, parece um problema essencial da política hoje. Além disso, essa questão continua tão sem resposta quanto saber se nossas sensibilidades políticas modernas estão em sintonia ou em choque com nossas preocupações éticas e existenciais.

Não podemos deixar de lado esses problemas se quisermos evitar o pesadelo de uma política grotesca, estabelecida para terminar como reality shows, se tornar a forma predominante de vida política; e que os novos quadros políticos sejam recrutados exclusivamente no show business, no esporte e na indústria de filmes para adultos.