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I
O tal Geek estava olhando para ela ─ de novo! Samantha podia sentir os olhos dele fustigando sua nuca. Tudo o que ele fazia era olhar. O tempo todo. Sempre que ela assistia às aulas da Sra. Winton, podia apostar que, se virasse o rosto para trás, daria direto com os olhos dele. Ele vinha fazendo isso desde que o semestre começou, que foi quando ele entrou para aquela turma. Mas por que ela? Difícil de dizer. Quando lhe devolvia o olhar, ela não conseguia decifrar a expressão no rosto dele. Raiva? Desejo? Ela só sabia que era algo intenso. Muito intenso.
Mas nunca teria acreditado que ele se sentisse atraído por ela. Havia dois motivos bem óbvios que faziam com que qualquer menino não chegasse nem perto: ela era inteligente e gorda. Garotos não gostam de meninas inteligentes. Têm medo de dar vexame. E, é claro, ninguém gosta de gente gorda. Nem amigas ela tinha. Quem iria querer ser amiga da primeira aluna da sala (que caretice!), mas que nos esportes era um zero à esquerda? (nem pensar!).
Samantha fez força para se concentrar no livro a sua frente, mas não conseguiu parar de pensar no Geek. Será que ele planejava matá-la!
~*~
Rupert Jones não desviava o olhar da garota de longos cabelos louros. Ele sabia que estava sendo inconveniente, mas não conseguia se conter por mais que tentasse. Todas as vezes que assistia às aulas de espanhol era a mesma coisa. Ela tinha os cabelos mais lindos do mundo. De um louro escuro reluzente que desciam em cachos até os ombros. Mesmo sob o clarão das lâmpadas no teto, dava para ver que a cor era natural. Havia uma profusão de tons impossíveis de serem feitos por mãos humanas. Sob o sol, como naquele instante, tinha um tom mais avermelhado que lançava reluzentes cintilações. Desejava tocá-los, deslizar os dedos por aquelas mechas, mergulhar o rosto naquele fios. Ficou imaginando o perfume que teriam.
A distância entre eles era de duas carteiras escolares. Poderia se esticar e tocá-la.
Temendo que num arroubo incontrolável o inevitável acontecesse, sentou-se sobre as mãos.
~*~
A professora, Sra. Winton, explicava alguma coisa sobre Miguel de Cervantes, mas Samantha simplesmente não conseguia processar. Ele era muito alto ─ o Geek ─, bem mais alto que o restante dos alunos, inclusive mais alto que a Sra. Winton, e era bonitão, ainda que seu rosto tivesse um ar melancólico. O problema, porém, era que ele fazia um tipo muito bizarro. Era o que todos achavam.
Samantha chegou a cogitar em queixar-se à professora por causa dos insistentes olhares do garoto. Mas será que ficar olhando era crime? Será que se ela dedurasse: “Aquele cara ali não para de me olhar”, eles iriam tomar alguma providência, por mais constrangedora que fosse? Afinal, aquele era um país livre!
Pensou em tentar ─ ela mesma ─ lidar com a situação. Ir logo perguntando por que ele não parava de olhar para ela. Claro que ele tinha noção do que estava fazendo. Mas ela detestava discutir e, além do mais, não fazia a menor ideia de como puxar o assunto que, convenhamos, não dava para ser levantado de forma casual, tipo “Ah... por sinal, por que você fica me encarando?” Ela faria papel de idiota.
O nome dela era Samantha Parkin mas o pessoal a chamava de “Porca Parkin” ou “Miss Piggy” ─ aquela porquinha do desenho animado Vila Sésamo ─, ou simplesmente de Balofa, pelo fato de ela ser gorda, é claro. Rupert, porém, nunca havia associado gordura à ideia de feiura.
Na verdade, ele também gostava dos porcos. Animais inteligentes e muito asseados, se lhes fossem dadas as condições.
Ele sacodiu a cabeça do jeito que os cachorros fazem para secar o pelo, como se assim pudesse se livrar desses pensamentos que invadiam sua mente sem pedir licença.
Vai ver que ele estava pirando.
─ Rupert! ─ a voz atravessou seus pensamentos como uma faca cortando o ar, e ele entrou em estado de atenção.
─ Sim, senhora.
─ Você está presente tanto em espírito quanto em corpo?
Ele se encolheu todo e gaguejou ─ Sim, senhora.
─ Então, talvez, possa nos honrar com seus comentários.
Rupert devolveu-lhe um olhar cabisbaixo, e a Sra. Winton compadeceu-se dele.
─ Então responda: Você acha que existe termos de comparação entre Miguel de Cervantes e Charles Dickens?
Rupert fez uma pausa para pensar. ─ Bem... ─ ele começou um tanto hesitante ─ os dois fazem críticas à sociedade em que vivem, mas tenho para mim que isso significa apenas similaridades.
A Sra. Winton deu um sorrisinho. ─ Continue, Rupert.
─ São escritores bem diferentes, não é mesmo? O que quero dizer é que Cervantes ridiculariza a sociedade por meio de piadas surreais, enquanto Dickens cria enredos objetivos e incisivos, claramente conectados à realidade. Esquecendo-se por instantes da loura que o tirava do sério, começou a gesticular como um ator num palco de teatro. ─ Cervantes reproduzia o mesmo molde de cartolina que usava como matriz, tipos caricatos que ninguém levava a sério; já os personagens de Dickens são pessoas de carne e osso em que se podia acreditar. Não que Dickens não fizesse piadas ─ ele continuou, já totalmente à vontade, discorrendo sobre coisas de que realmente gostava, e sua voz passou de um chiado agudo intermitente, para o som alto e profundo e confiante dos oradores de berço. Quase todos da turma se sentavam eretos, prestando atenção.
Pelo canto do olho, Rupert notou que Samantha havia se virado e olhava para ele, e faltou pouco para não perder o fio da meada. Depois de se engasgar numas palavras, seguiu adiante. ─ Não que Dickens não fizesse piadas. Há um trecho engraçado em Oliver Twist, quando o Sr. Brownlow diz ao Sr. Bumble que, perante a lei, ele é responsável pelos atos da sua esposa, ao que o Sr. Bumble responde: ─ Se a lei prevê isso, então a lei é burra. E se essa é a visão geral da lei, então a lei é um solteirão. Ou em Barnaby Rudge, em que John está “determinado a dar um chute do seu corvo falante na primeira oportunidade.”
A sala inteira caiu na gargalhada e, de repente, ele se deu conta de que estava fazendo papel de palhaço. A Sra. Winton não estava exatamente rindo, mas tinha no rosto uma expressão aturdida, com um tremor nos cantos dos lábios. Ai meu Deus!
Rupert sentou-se ruidosamente. ─ Bem, essa é a minha opinião ─ e encerrou de um jeito hesitante, fitando as mãos, com vergonha de olhar na direção de Samantha. Havia estragado tudo com ela, tudo mesmo.
─ E quanto a você, Samantha? Você acha que vale a pena comparar esses dois autores?
Samantha deu uma espiadela em Rupert, que continuava de cabeça baixa, fitando as mãos.
─ Concordo com o Rupert, professora ─ ela disse. ─ Não gosto muito de Cervantes como escritor e não vejo como suas histórias podem ser levadas a sério; Dickens, por outro lado, causou verdadeiro impacto. Dickens provocou mudanças.
Agora a Sra. Winton estava mesmo achando graça. ─ Você está dizendo que Dickens foi o responsável por uma revolução social?
Samantha agitou-se no assento ─ Não sozinho, é claro. Mas fez um bocado para chamar a atenção das pessoas para as dificuldades dos pobres. Fez com que as pessoas se conscientizassem. Não acho que Cervantes tenha mudado nada. A sociedade inglesa mudou mesmo. A sociedade espanhola não.
A Sra. Winton sorriu. Ela adorava essa turma. Os alunos estavam ali porque queriam. Continuavam ali para fazer os cursos de especialização. A maioria deles estava entrando para a faculdade. Ela podia dar a eles total liberdade nesse tipo de discussão, e quase sempre colaboravam com ideias inovadoras e interessantes.
─ E quanto a você, Denton? O que você acha?
─ Na minha opinião, os dois são uns chatos, professora.
Todos sabiam que Denton seria sempre do contra.
Muitos colegas reclamaram. ─ Para com isso, Denton ─ disse um rapaz louro de óculos de aros grossos e o rosto cravado de acne. ─ Cervantes pode não ter desencadeado mudança na sociedade, mas não se pode afirmar que seja um chato.
Rupert relaxou. Afinal havia saído do foco dos holofotes. Arriscou um olhar de viés para Samantha. Ela continuava olhando para ele! No mesmo instante desviou o olhar. Ela estava sorrindo. Que droga! Desejou que o chão se abrisse sob seus pés.
A rápida troca de olhares não passou de todo despercebida pela Sra. Winton, e um sorrisinho insinuou-se sutilmente nos cantos dos lábios da professora. Ela conhecia Rupert desde pequeno e achava que ele era um menino de ouro, embora um pouco sério demais. Além de excepcionalmente inteligente, era muito estudioso, e a turma o chamava por Geek. Ele parecia não se importar, vivendo principalmente em seu próprio mundinho. Às vezes ela indagava a si mesma se ele não seria um pouco autista.
A garota, porém, era nova no colégio. Ela havia se matriculado no Graystones no ano anterior, porque no colégio de onde viera não havia o sexto ano. Ela era abertamente inteligente, talvez no mesmo nível de Rupert que, na sua opinião, beirava a genialidade. Ah... se ele conseguisse se soltar um pouco!
A aula levou uma eternidade para acabar e, quando afinal terminou, Rupert agarrou os livros e enfiou-os às pressas na mochila. Ele estava tão afobado, que deixou um livro escapar-lhe da mão e cair no chão com um bum. Ele se curvou para apanhá-lo e deu de cara com Samantha Parkin. Ficou lá paralisado, encarando os olhos dela, que não eram azuis, como achava que seriam, mas uma mistura de cinzas e verdes e azuis e, talvez, com um toque de cor de avelã. Ela também parecia ter congelado por um instante, antes de dizer: ─ Toma – e entregar-lhe o livro. Ele levou um susto tão grande, que por pouco não o deixou cair de novo.
─ Achei que você foi o máximo ─ ela sussurrou, e os dois se ergueram na mesma hora, quase, mas não exatamente, roçando seus corpos.
─ Hum, bem, er... ─ Rupert não conseguiu verbalizar nada que remotamente fizesse qualquer sentido.
─ Vocês vão ficar parados aí na porta? ─ indagou a Sra.Winton ─ tenho uma reunião da equipe e já estou atrasada.
─ Desculpe, tia... quero dizer Sra. Winton ─ balbuciou Rupert antes de sair aos trancos e barrancos. Samantha correu ao encalço dele. ─ Desculpe, Sra. Winton ─ ela disse virando o rosto para a professora.
Alison Winton acompanhou-os com os olhos. Rupert, o geek e Samantha, a balofa. Ele alto e magro, naquela fase do estirão em que parece que o corpo não obedece ao dono. Ela baixa e gorda. Ele precisava se dobrar para frente para falar com ela. Os dois tinham tudo para formar um par esdrúxulo, mas não. De algum modo, pareciam feitos um para o outro. “Um encontro de almas gêmeas” supôs a professora, que logo fez seguir esse pensamento por outro: Por favor, meu Deus, não permita que ele tenha puxado ao pai!
~*~
─ A Sra. Winton é mesmo sua tia? ─ Samantha ergueu a cabeça e olhou para ele através dos seus cílios. Rupert foi tomado pelo desejo de deixar cair a mochila, segurar o rosto dela entre as mãos e beijá-la. Em vez disso, enfiou as mãos bem fundo nos bolsos.
─ Não, ela é apenas uma amiga íntima da família. Conheço-a desde que nasci e sempre chamei-a de tia.
─ Ah, entendi ─ disse Samantha que, depois de uns instantes de silêncio, continuou ─ onde você encontrou todas aquelas informações sobre Charles Dickens? A minha impressão era de que eu havia lido tudo sobre Cervantes versus Dickens, mas você disse umas coisas que para mim foram absolutamente novas.
─ Bem, são apenas umas ideias minhas ─ Rupert contemplou o céu que estava azul e luminoso e percebeu que o verão se aproximava.
─ Mas... e aquela piada sobre o corvo? De onde você tirou aquilo?
─ Li no livro Barnaby Rudge (Barnaby Rudge), de Dickens. Trata dos Protestos Gordon. Edgar Allan Poe gostava muito do livro, mas achava que faltava seriedade ao corvo. Há quem afirme que serviu de inspiração para o famoso poema. Você sabe do que estou falando, “o corvo disse: Nunca mais”.
Samantha fez uma pausa e observou-o atentamente por uns instantes. ─ Puxa vida! Você deve ter lido pilhas de livros. Como você descobriu isso?
Rupert ficou sem graça. ─ Não me lembro. Só fui pegando uma coisa aqui, outra ali. Tenho mania de colecionar informações inúteis ─ ele fez uma pausa. ─ Gosto muito de Dickens. Acho que ele tem um humor bem ácido. Você deveria ler o The Uncommercial Traveller (O viajante não comercial). É o máximo.
Samantha tinha tido uma visão superficial dele, sem nunca ter considerado outras possibilidades. ─ Você é mesmo um geek, não?
─ Eu? ─ ele demonstrou surpresa. ─ Eu achava que um geek fosse um tipo de gênio das ciências.
─ E você não é?
─ Na verdade, sou. Mas eu achava que se referia especificamente à ciência. Vou ter de procurar no dicionário quando chegar em casa.
─ Onde você mora?
Ele se virou e, pela primeira vez, sorriu para ela. Ele era mesmo lindo e, ao sorrir... hum... deslumbrante.
─ Está vendo aquele parque lá adiante? ─ ele apontou para uma área verde atrás de grades de ferro. ─ Então, dá para ver a parte de cima de um escorregador e mais adiante o que algum dia deve ter sido a estrutura dos balanços, perto de uma área demarcada. Pois moramos do outro lado. Quer dar uma olhada? Talvez tomar um café ou algo assim? Ou prefere que eu acompanhe você até sua casa? O que seria mais tradicional e sem dúvida mais elegante.
─ Vou ver como é a sua casa ─ ela disse entusiasmada ─ e talvez amanhã você possa conhecer a minha.
~*~
─ Diga lá, como conseguiu começar o curso de espanhol no meio do semestre?
Estavam sentados à mesa da cozinha da casa de Rupert, tomando café e beliscando salgadinhos.
─ Eu tinha começado a estudar sozinho e às escondidas, mas a tia Alison descobriu e disse que se eu estivesse a fim de aprender espanhol, então que fizesse da forma correta. Ela me deu algumas aulas particulares para que eu alcançasse o mesmo nível da turma, e fui aceito no colégio.
Samantha franziu a testa. ─ Por que às escondidas?
─ Minha mãe não queria que eu aprendesse espanhol. Olha, meu pai era espanhol, e acho que é meio doloroso para ela lembrar-se do passado, sabe como é... ─ ele fez cara de triste.
─ Seu pai era espanhol? Por que era? O que aconteceu?
─ Ele morreu.
─ Oh meu Deus! Desculpe. Eu não sabia.
Ele sorriu para ela. ─ E como poderia saber? Mas isso não importa. Ele morreu antes de eu nascer, de modo que não cheguei a conhecê-lo. Só fico imaginando como ele era, entende? Mas ninguém me conta nada.
Samantha o encarava, os olhos arregalados. ─ Que estranho! Por que as pessoas não contariam?
─ Não sei ─ ele respondeu franzindo a testa. Isso fez com que seus olhos ficassem bem juntos ─ sempre achei que fosse para não magoar minha mãe. Ela nunca menciona nada sobre ele e também não há nada em casa que tenha sido dele. Sabe o que quero dizer, né? Fotos, roupas, objetos... O que estou dizendo é que todo mundo tem alguma coisa, entende? Livros, taco de basebol, álbum de selos... uma coisa qualquer. Mas não há nada. É como se ele nunca tivesse existido.
Rupert fez uma pausa, sem acreditar que, pela primeira vez, tivesse revelado todas essas coisas e, pior, justamente para Samantha Parkin, dentre todas as pessoas deste mundo. Em seus devaneios, ele nunca imaginou que conversaria com ela sobre o pai. Na verdade, nunca se imaginou conversando com ela, mas simplesmente afundando o rosto em seus cabelos e beijando-a... e... outras coisas. Espantou de sua mente esses últimos desejos.
Samantha se inclinou para ele e disse: ─ Isso é bem esquisito. Você tem razão. Tem de haver algo. É como se sua mãe fingisse que ele nunca existiu. Por que ela faria isso? É de se esperar que ela o tivesse amado. E... sei não... acho muito estranho que ela nunca fale nada sobre seu pai. Qualquer criança ficaria curiosa. Seja como for, não me parece justo.
─ E não é só ela ─ disse Rupert ─ tenho certeza de que a tia Alison sabe de tudo. E acho que a Patsy também sabe de alguma coisa.
─ Quem é Patsy?
Rupert deu um sorriso. ─ Outra das crianças “adotadas” pela tia Alison. Só que Patsy não é mais criança. Tem vinte e seis anos. E está fazendo pós-graduação em... adivinha?
Por alguma razão, Samantha não precisou adivinhar. Sabia de antemão. ─ Espanhol.
─ Ah..., foi por pouco! Letras Neolatinas, com especialização em língua espanhola. Ela estuda na Universidade de Granada. Mas vem passar os feriados da Páscoa em casa, e já me decidi: quando ela estiver aqui vou obrigá-la a me contar tudo que sabe.
Samantha deu uma gargalhada. ─ E como você vai fazer isso? Na base da tortura?
Uma expressão soturna formou-se no rosto de Rupert e, por um instante, tomou um ar sinistro. ─ Sim, se for necessário.
Naquele instante, Samantha acreditou nele e sentiu um calafrio. Ele riu, ergueu as mãos para o alto e disse: ─ Brincadeirinha. Jamais conseguiria machucar a Patsy. Ela é como uma irmã mais velha.
Samantha também deu uma risada: ─ Você tem uma família bem estranha. Dá a impressão de que não há muita amizade entre vocês.
─ Eu me dou bem com minha mãe ─ disse Rupert ─ e muita gente chama os amigos de seus pais de tia ou tio, mas Patsy é um caso especial.
Ele se calou, mas Samantha insistiu ─ Como assim?
─ Está mesmo interessada em saber de todas essas coisas?
─ Pode crer. Continue, anda!
─ Bem, tem a ver com amizade, mais uma vez. Tia Alison tinha uma amiga bem próxima que morreu, deixando uma sobrinha, a Patsy. Bem, tudo indica que a mãe de Patsy era uma desmiolada, e quem pegou a menina para criar foi uma tia, justamente essa tal amiga da tia Alison. Com a morte dela, a menina adotada ficou desolada. E foi assim que a tia Alison mais ou menos passou a cuidar da menina. A Patsy adora a tia Alison ─ ele fez uma pausa antes de continuar: ─ E eu também. Foi ela quem fez com que minha mãe mudasse de ideia sobre a Espanha. Não sei o que ela falou, mas persuadiu-a a aceitar que eu estudasse espanhol.
─ E depois, quando estiver fluente em espanhol, o que planeja fazer?
─ Olha, acho que já domino esse idioma. Só preciso praticar. Meu plano é ir atrás do meu pai.
─ Mas você disse que ele está morto!
─ Bem, talvez. Seja como for, quero descobrir onde ele morou e como morreu... bem, esse tipo de coisa...
Ele resolveu que não lhe iria contar nada sobre os sonhos. Afinal, já lhe havia revelado mais do que devia.
Samantha se recostou na cadeira e observou-o. Sem sombra de dúvida, ele era a pessoa mais interessante que jamais conhecera. Então, por que será que tinha ficado com medo dele? E foi assim que as palavras escaparam de sua boca: ─ Rupert ─ ela chamou ─ por que você está sempre me encarando?
II
─ Porque você é linda. Não paro de te olhar porque você é linda.
Já em seu quarto, Samantha ficou trazendo à memória as palavras dele, repetindo-as sem parar. Difícil de acreditar que tivesse mesmo acontecido.
Um rapaz interessante, inteligente e, ─ sem brincadeira ─ maravilhoso ─ disse que ela era linda. Ao dizer essas palavras, ele havia se esticado como se fosse tocá-la, mas de supetão recolheu a mão, temendo ter feito algo errado; ela, por sua vez, olhava para ele de queixo caído. Seguramente parecia uma retardada. Nunca ninguém, nem mesmo sua mãe, dissera que ela era linda.
Então, como se não tivesse dito nada de importante, ele mudou de assunto e perguntou como era a família dela.
─ Longe de ser tão interessante quanto a sua ─ ela tinha respondido. ─ Só eu, minha mãe, meu pai e meu irmãozinho, que é uma peste, do jeito que o diabo gosta.
─ Adoraria ter um irmão ─ disse Rupert com ar de tristeza.
─ Quer ficar com o meu?
Rupert achou graça. ─ O que ele fez de tão ruim?
─ Olha, ele costumava ser um amor quando era pequeno. Eu lia histórias para ele. Agora, ele passa a vida tentando me meter em confusão. Ontem, por exemplo ─ ela disse cheia de raiva ─ ele foi se queixar à mamãe que eu estava batendo nele, e eu nem estava no mesmo quarto que ele!
─ Que danado!
Samantha teve ganas de abraçá-lo. Como era bom ter alguém no seu time. Ela podia passar o dia explicando com minúcias as maldades de Nigel, mas Rupert mudou de assunto.
─ Então, o que os seus pais fazem para sobreviver?
─ Meu pai é engenheiro da Jackson’s. Aquela na rodovia Barnborough, com um outdoor vermelho enorme.
Rupert assentiu.
─ E minha mãe também trabalha lá, no setor de contabilidade.
De repente, Samantha começou a rir.
─ O que foi?
Ela cobriu a boca com as mãos por uns instantes. ─ Um dia papai chegou em casa furioso, porque alguém havia grafitado o outdoor com tinta spray, bem abaixo da propaganda que diz ─ ela teve outro acesso de riso ─ A ferramenta da Jackson’s funciona. Sabe o que escreveram? A minha também.
E foi por isso que os dois ainda se escangalhavam de rir quando a mãe de Rupert chegou em casa e já ia tirando o sobretudo ao entrar na cozinha quando, vendo Samantha, gritou ─ Ai meu Deus! E desapareceu escada acima.
Rupert e Samantha pararam de rir na hora e se entreolharam sem entender nada.
─ O que foi aquilo ─ indagou Samantha.
Rupert deu de ombros. ─ Não sei. Às vezes ela age de forma estranha ─ depois chamou em voz alta ─ Mãe, tá tudo bem?
Ouviu-se uma voz abafada vindo do andar de cima. ─ Sim... uma pequena emergência. Já estou descendo.
Samantha assentiu como se soubesse do que se tratava. Provavelmente incontinência urinária devido ao estresse. Ela havia entreouvido sua mãe conversar com uma amiga alguns dias antes, e ficou com a impressão de que todas as pessoas mais velhas tinham esse problema.
~*~
─ Então ─ a mãe de Rupert olhou para eles com um falso sorriso animado ─ não vai me apresentar a sua amiga?
Rupert se virou para Samantha. ─ Esta é Samantha Parkin. Ela estuda espanhol na mesma sala que eu. E, Samantha, essa é a minha mãe, Heather Jones.
─ Oi, Sra. Jones. Prazer em conhecê-la. Educadamente, elas se cumprimentaram com um aperto de mãos. Samantha pousou os olhos na mãe de Rupert e disse: ─ A senhora não trabalha na agência de viagens na High Street?
Heather assentiu. Rupert se curvou e sussurrou no ouvido de Samantha ─ ela é a dona.
─ Para com isso, meu filho ─ repreendeu Heather ─ embora com expressão de orgulho.
E ela tem razão em se orgulhar disso, pensou Samantha. Ela não estava se saindo mal como mãe solteira. Não deve ter sido nada fácil. Merecia estar orgulhosa.
Heather sentou-se para conversar um pouquinho com eles, aquele tipo de papo superficial que as pessoas sempre têm com os jovens, perguntando como vai a escola e o que você gosta de fazer nos fins de semana. Samantha notou que ela evitou perguntar qual esporte ela praticava. Teria sido indelicado chamar a atenção para o fato de que Samantha era gorda demais para se dar bem em qualquer atividade física.
Finalmente, para alívio de todos, ela se levantou e disse: ─ Realmente preciso ir. Quer uma carona para algum lugar, Samantha? Vou passar na casa da tia Alison ─ ela disse ─ para fazer os preparativos de alguma coisa ─ e abanou a mão daquele jeito que indica que esses preparativos eram de menor importância.
─ Muito obrigada, Sra. Jones ─ respondeu Samantha ─ mas não moro longe. Posso ir a pé num instantinho.
Quando Heather fez cara de preocupada, Rupert acrescentou: ─ Não se preocupe, mãe. Vou acompanhá-la até em casa.
Heather, fez cara de mais preocupada ainda, mas disse: ─ tudo bem, então até outra hora ─ e saiu de casa.
Rupert franziu a testa ─ O que teria acontecido? Em geral ela não sai logo assim que chega em casa. Na verdade, ela praticamente nunca sai de casa... ─ Ele deu de ombros e pôs de lado a atitude inusitada da mãe. ─ Agora conta mais sobre esse seu irmão que é o diabo em forma de gente.
~*~
─ Alison?
Heather bateu na porta da casa de Alison e, como não obtivesse uma pronta resposta, abriu-a.
─ Alison! ─ ela gritou ao entrar.
Uma cabeça apareceu no topo da escada ─ Aqui em cima.
Alison desceu as escadas vestindo um roupão e secando o cabelo numa toalha. ─ Oi Heather, eu não sabia que você vinha aqui ─ mas ao ver a expressão no rosto da sua amiga, perguntou: ─ O que aconteceu?
─ É o Rupert. Ele arrumou uma namorada. E ela é muito gorda!
─ Oh..., eu não diria muito. Gorda, sem dúvida, mas provavelmente é apenas gordura corporal de adolescentes. Lembra de como a Patsy era gordinha nessa idade?
─ A questão não é essa! ─ gritou Heather. ─ A questão é que ela é gorda. Ela é gorda agora. Rupert se sente atraído por garotas gordas.
─ Vou abrir uma garrafa de vinho ─ disse Alison ao ir para a cozinha. ─ Tinto ou branco?
─ Branco... não!, Tinto. Tanto faz.
Cinco minutos depois, já mais calma, depois de alguns goles de vinho, Heather disse: ─ Eu sabia que isso ia acontecer. Eu sempre soube que isso ia acontecer. Nunca deveria ter concordado com as aulas de espanhol!
Alison abanou a cabeça ─ Não teria feito diferença alguma. Ele já estava praticamente fluente quando eu o aceitei. Ele aprendeu sozinho. Um menino brilhante. Você sabe disso ─ ela fez uma pausa para tomar um longo gole de vinho e enxugar os lábios nas costas da mão ─ eles teriam se conhecido de qualquer maneira. Estudam na mesma escola. Ora! Você tem de concordar que ela chama atenção.
Heather lançou um olhar ameaçador para amiga, tomou de uma golada o que restava no copo e esticou-o para que fosse reabastecido.
─ Ele está com dezessete anos. Idade suficiente para fumar e se casar. Daqui a um ano, terá idade bastante para beber e votar. Não tem escolha: ele está fadado a ir para a Espanha. É o que todos eles fazem. Vão lá para comemorar as despedidas de solteiro e aniversários ou simplesmente para passarem as férias de porre. Ao menos, quando ele for, terá boas chances de cuidar de si próprio se conseguir se comunicar em espanhol.
─ Sim, eu sei, mas em lugares como Torremolinos e Ibiza, eles sequer precisam falar espanhol, e eu não estou preocupada com eles. Estou preocupada com...
─ Eu sei, eu sei o que te preocupa ─ Alison se esticou e pôs a mão sobre a de Heather. ─ E um belo dia ele vai lá. Ele quer saber. É justo que ele queira saber. Acho que devíamos ter contado a ele anos atrás.
Heather olhou para Alison com expressão de pavor, bebeu de um só gole o que restava na taça quase cheia de vinho recém-cheia e serviu-se mais uma vez. ─ Mas como ele poderia descobrir, se não contamos nada para ele?
─ Ele vai descobrir ─ disse Alison calmamente. ─ Ele é muito inteligente. Acho que deveríamos contar para ele.
─ Não ─ Heather implorou com voz lacrimosa ─ Não diga nada a ele. Por favor, não conte para ele.
Alison tornou a segurar a mão da amiga.
─ Não vou contar a ele, a menos que você diga que eu posso, mas ainda acho que deveríamos ter dito a ele antes.
Heather levou as mãos à cabeça e começou a chorar. ─ Eu não poderia contar para ele. Como eu poderia contar para ele? Como você diz a uma criança que o pai dela era um monstro?
Alison se levantou para buscar outra garrafa de vinho. Tudo indicava que aquela ia ser uma noite bem longa.
~*~
Na Páscoa, Rupert e Samantha eram vistos por todos como um casal. Nesse meio tempo, tornaram-se inseparáveis, ficando juntos nos intervalos entre as aulas sempre que podiam e passando os finais de tarde revisando juntos as matérias. No colégio já não eram conhecidos separadamente como Miss Piggy e Geek, mas coletivamente como “os Geeks”.
Ansiosas, Alison e Heather ficaram observando por algumas semanas, mas enfim relaxaram ao confirmarem que Samantha não estava emagrecendo a olhos vistos.
Tudo bem, Alison pensou, ou ele não puxou ao pai, ou tem maior controle sobre si próprio.
Não que eles fossem um casal no sentido mais usual da palavra. Apesar de dizer que ela era linda, Rupert não demonstrava sentir tesão por Samantha. Nunca lhe havia tentado beijar, nem experimentado tocá-la. Às vezes ela sentia que era o que ele desejava, mas ele nunca se aproximava. Ou talvez fosse apenas sua imaginação. Ela não parava de pensar nele e se sentia insegura. Será que de verdade ele sentia algo especial por ela? O fato de achar que alguém era bonito não necessariamente implicava em atração, não é mesmo? Ela achava a mãe bonita, e o gato também, mas não se sentia atraída por eles.
E ela nem mesmo tinha certeza de que queria que ele a beijasse. O que Samantha gostava mesmo era da amizade que tinham. A primeira amizade de sua vida, e não queria de jeito nenhum estragá-la. Sem falar que também não estava certa de que tivesse interesse em beijar alguém. Alguns beijos que ela havia visto nos filmes eram bem chocantes. Os atores pareciam comer um ao outro, e ela não tinha o menor interesse em ser devorada. Sem falar que seria necessário levar em conta a logística envolvida. Por exemplo: o que fazer com os narizes? Claro que não dava para ser um de frente para o outro, ou acabariam se esbarrando. E se os dois virassem para o mesmo lado? Como acontece quando a gente tenta desviar de alguém na calçada e os dois acabam fazendo aquela dancinha hilária pra cá e pra lá, ao tentarem ir para lado?
A coisa toda soava muito complicada, talvez com grande dose de estresse físico e emocional. Apesar disso... apesar disso... Samantha ansiava por um beijo dele. Estava louca para saber como seria.
Até aquele momento, ela não tinha tido tempo para se preocupar com isso, pois eles estudavam feito loucos: ela para as provas de fim de semestre; ele para os simulados para ingressar na faculdade. Era a primeira vez que ela estudava com um colega ─ com alguém que lhe fazia perguntas e lhe dava sugestões. Eles passaram longas noites juntos revendo trabalhos antigos, livros didáticos e anotações e resumos para provas anteriores, e Samantha vibrava de alegria com tudo aquilo.
Mas um dia aquela fase acabou e não parecia haver uma razão que justificasse se encontrarem todas as noites, salvo pelo fato de gostarem da companhia um do outro. Bem... ela sim... gostava da companhia dele, e acreditava piamente que a recíproca fosse verdadeira. De vez em quando, ele levantava os olhos do livro e a encarava com uma expressão tão intensa, que ela podia jurar que ele estava apaixonado por ela. De repente, do nada, o rosto dele voltava ao normal, e ela ficava com uma estranha sensação de vazio.
Que merda! Ela precisava se livrar disso, apagar da mente, como se não tivesse acontecido.
Para Rupert era dificílimo se controlar. Samantha provocava nele um estado de arrebatamento diferente de tudo mais. A maior parte do tempo que passavam juntos, ele se sentia relaxado ao lado dela e podia conversar sobre qualquer coisa que jamais admitira, nem mesmo em pensamento, contar para alguém ─ a não ser, é claro, os sonhos. Não contaria de modo algum. Menos ainda para Samantha. Mas às vezes ele era invadido por um desejo tão forte que mal podia se aguentar. O jeito era continuar respirando fundo até que passasse. Seu desejo era de abraçá-la e beijá-la, um desejo tão intenso que contê-lo era como uma dor física. Ele não saberia dizer se ela sentia a mesma coisa, o que para ele não tinha a menor importância. Ele não se atrevia a beijar Samantha. Era uma questão de não confiar em si mesmo e de ser feliz com o que tinha ─ a melhor amizade que jamais teve com alguém de sua idade. Mas ele sempre se questionava... Questionava-se o tempo todo...
~*~
─ Samantha? Sam? ─ chamou Rupert ao entrar na casa como um raio, livrando-se da mochila no hall de entrada. A mãe de Samantha apareceu vindo da cozinha com cara de poucos amigos. Ela detestava que a filha fosse chamada de Sam. Mas sorriu ao ver que era o Rupert, um garoto tão simpático... difícil se zangar com ele.
─ Ela está lá em cima. Pode subir, se quiser.
─ Obrigado, Sra.Parkin ─ ele disse com um sorriso antes de subir a escada correndo, suas pernas desengonçadas quase tropeçando uma na outra.
Samantha abriu a porta do quarto e sorriu para ele ─ Para que tanta pressa?
─ Patsy chegou!
Samantha estremeceu de susto.
─ Anda, calça os sapatos. Quero que ela conheça você.
─ Não, espera. Não estou pronta. Tenho de me trocar. Fazer maquiagem.
Samantha ficou tão atordoada com a ideia de conhecer a Patsy, que não percebeu a expressão no rosto de Rupert. Patsy era importante para ele. E ela ficou com medo de não causar boa impressão.
─ Pra quê? ─ Rupert estava perplexo.
─ Pra que o quê?
─ Se maquiar?
─ Bem, você sabe ─ Samantha abriu as mãos num gesto hesitante ─ Quero causar boa impressão.
─ Ela vai te adorar. Sem falar que não faz o menor sentido você pintar uma cara em cima da que você tem, que já é linda.
Ela ficou paralisada. Ele disse, de novo. Ele disse que era ela linda. Ela o encarou, sem saber o que dizer.
─ Você é linda ─ ele disse ao segurar o rosto dela entre suas mãos e fitá-la bem dentro dos olhos. Então ─ e ela nunca veio a saber ao certo quem tomou a iniciativa ─, se abraçaram e se beijaram. Tudo deu certo. Os narizes não ficaram no caminho. Ele não tentou devorá-la. Delicadeza, suavidade, tudo de bom. Suas preocupações, tais como se conseguiria respirar, se os dentes se esbarrariam, se a barriga começaria a roncar, e se sentisse vontade de espirrar ou de fazer xixi..., nada disso aconteceu. Apenas se beijaram como se tivessem anos de experiência.
Então, de repente, logo quando ela estava começando a relaxar, Rupert se afastou.
─ Oh, Samantha, desculpe. Desculpe, Sam.
Ela devolveu-lhe o olhar sem entender nada.
─ O quê? O que houve, Rupert? Foi tão horrível assim?
Rupert fez que não, no rosto a expressão de desespero.
─ Não, não. Foi maravilhoso, perfeito. Mas eu não posso.
─ Mas por quê? Não estou entendendo nada. Também achei maravilhoso. Por que estragar tudo?
─ Tenho medo de machucar você.
─ Machucar! Rupert, você não está falando coisa com coisa. Por que você iria me machucar? Você foi gentil. Eu adorei. Anda, me diga o que está acontecendo.
Ela estava tão frustrada e confusa que teve vontade de bater os pés no chão e dar um chilique.
─ Não, não posso te contar.
Samantha o encarou: ─ você não pode simplesmente sair dessa assim, Rupert. Tem de me contar. Não é justo! ─ e ela bateu mesmo os pés como uma menininha. Sentia-se humilhada e envergonhada.
─ Rupert! ─ ela se esticou, pegou nas mãos dele e segurou-as com firmeza. Então recomeçou bem mais calma: ─ Rupert, seja o que for, você pode me contar. Pode confiar em mim. Você sabe disso. Jamais passaria adiante um segredo.
Ele começou a falar, primeiro aos poucos, depois com mais confiança ao se envolver na própria história.
─ É que eu tenho tido uns sonhos. São sempre os mesmos. O tempo todo. E a cena se passa no mesmo lugar. Eu estou em pé na encosta de uma montanha vendo o sol se pôr. À minha frente, mais montanhas não tão altas como aquela em que estou, e embaixo um vale em declive que se estende diante dos meus olhos. A distância, o céu vai tomando uma tonalidade azul mais escura, e imagino que seja o mar, mas está muito nublado para eu ter certeza.
“A meu lado, um vulto sombrio, um homem. Ele conversa comigo. Diz que sou filho dele, mas me chama por outro nome. Não consigo ver o rosto dele. É mais alto que eu e usa um chapéu enorme, como o dos cowboys do meio-oeste americano. Ele carrega alguma coisa no ombro, um tipo de saco, acho. Está escurecendo e não consigo distinguir quase nada.
Rupert emudece. Samantha também não diz nada, temendo que ele se cale para sempre se for interrompido.
Depois ele continua: ─ O homem aponta para o vale, para uma aldeia e diz “Está vendo, Ignacio? Aquela é a nossa aldeia. Foi lá que eu nasci. Aqueles são nossos compadres. Vem comigo, vou te mostrar”. Eu começo a descer a montanha ao lado dele. Então o homem entra numa casa, e uma jovem está na cama. Ele se inclina para beijá-la. Só que não são só beijos. Ele está sugando-a. E eu sei, embora não saiba como sei, que ele a está matando aos poucos, sugando tudo dela, toda a gordura do corpo dela ─ Rupert sente um calafrio antes de retomar a sequência do sonho ─ e às vezes sou eu. Sou eu sugando a moça. Estou no lugar dele ─ Rupert faz uma pausa, cobre o rosto com as mãos e chora.
Samantha põe a mão no joelho dele, e ele tira as mãos do rosto e olha para ela exibindo feições marcadas pela dor.
─ Está tudo bem, Rupert. É apenas um sonho ─ ela diz abraçando-o.
─ Não, você não entende ─ ele vira o rosto para o outro lado e diz: ─ eu gosto.
Ela segura o rosto dele e força-o a encará-la e diz muito séria: ─ Ouça! É só um sonho. Não importa que seja pavoroso nem como você se sente enquanto sonha. Continua sendo apenas um sonho.
Delicadamente ele afasta as mãos dela ─ Você diz que não importa, que é apenas um sonho, mas a questão é: que tipo de pessoa tem sonhos como esses?
Samantha deu de ombros e respondeu: ─ qualquer um. Eu, por exemplo, já sonhei coisas horripilantes.
─ Sim, mas aposto como você nunca mata ninguém em um sonho.
─ Na verdade, mato sim, ou pelo menos tento matar. Já sonhei várias vezes que esmago o rosto da Sra. Richards com um taco de hóquei e ela fica coberta de sangue, e eu quebro todos os dentes dela e ainda assim ela continua rindo na minha cara.
─ Caramba! Quem é essa Sra. Richards?
─ A inspetora de ginástica do meu último colégio. Ela costumava me torturar e humilhar na frente das outras meninas. Já é difícil o bastante ser gorda sem ter professoras que encorajam os colegas a rirem de você.
Com rugas de compaixão, Rupert disse: ─ Mas isso é horrível. Ela devia ser demitida. Você fez uma reclamação contra ela?
─ Minha mãe fez, mas eles disseram que isso fazia parte das desavenças e confusões nas escolas, e que tinham a Sra. Richards em alta conta.
─ Estou com muita vontade de ir até lá e quebrar eu mesmo a cara dela com um taco de hóquei.
Samantha achou graça da cara de bravo que ele fez.
─ Viu ─ ela disse ─ qualquer um pode ter sonhos homicidas. A diferença é que a maioria de nós não sai por aí matando ninguém de verdade.
Rupert continuava de cara amarrada.
─ Puxa vida! Você não está achando que vamos começar a invadir furtivamente os quartos das pessoas e sugar-lhes as gorduras, não é mesmo?
Rupert elucubrou sobre o assunto ─ não sei. Parece meio difícil. É que senti... ─ ele deu de ombros ─ é que presumi que deveria ter algum significado.
─ Não sei quase nada sobre interpretação de sonhos ─ disse Samantha ─ mas algumas coisas me chamaram a atenção.
Rupert pareceu ansioso.
─ O homem do sonho diz ser seu pai, e há tempos você vem tentando descobrir coisas sobre ele. No entanto ─ Samantha continua ─ ele dá a impressão de ser um tipo de monstro. Talvez, até o próprio diabo. Aquela cena em que ele está na montanha prometendo a você os prazeres do mundo é quase bíblica. Você sabe do que estou falando. A tentação de Jesus, quando o demônio o leva para o cume da montanha e lhe oferece o Reino Terrestre bastando para isso que Jesus o adorasse.
Rupert chegou a estremecer. Era exatamente isso. Ele próprio devia ter feito a conexão.
─ E se ele for ─ ela continuou ─ um assassino serial ou, sabe-se lá, uma espécie de vampiro? Tá me parecendo, Rupert, que você tem medo de descobrir a verdadeira história dele, e inventou que ele era um monstro, de modo que quando o encontrar, por pior que ele seja, não será tão ruim quanto aparece em seu sonho e você não ficará frustrado.
Pela primeira vez depois que começaram essa conversa, o rosto de Rupert se iluminou.
─ O que você acha dessa interpretação? ─ indagou Samantha.
─ Acho que ─ disse Rupert, envolvendo-a em seus baços: ─ Que tenho de beijá-la de novo. E desta vez vou caprichar.
––––––––
E ele cumpriu o prometido. Foi bem melhor dessa vez.
III
Passava muito das quatro horas quando enfim eles chegaram à casa da Sra. Winton. Vinham despreocupados, caminhando de mãos dadas e trocando olhares sonhadores.
Ao alcançarem o portãozinho na sebe, a porta principal de abriu e uma moça de cabelos escuros esvoaçantes correu saltitante até eles. ─ Onde vocês se meteram? Achei que tinham desistido de vir.
─ Desculpe, Patsy. Nós... nós acabamos nos atrasando um pouco ─ Rupert lançou um olhar carinhoso para Samantha, que lhe devolveu um amplo sorriso.
Patsy achou graça. ─ Então é isso que está acontecendo? Olá. Você deve ser a Samantha.
Samantha conseguiu desgrudar os olhos de Rupert e esticou a mão para Patsy, que a ignorou por completo e, em vez disso, envolveu-a num forte abraço. ─ Estou tão feliz em conhecê-la. Rupert me contou tudo sobre você, mas nunca imaginei que formassem um casal. Achava que eram apenas bons amigos.
─ Acho que somos os dois ─ disse Samantha com um sorrisinho tímido.
─ Maravilha! ─ ela se virou e abraçou Rupert, de um jeito mais animado do que seria necessário na opinião de Samantha, e disse: ─ Vamos entrar. Tenho um milhão de coisas para contar.
Subiram a escadinha de acesso à casa e entraram. Samantha olhou ao redor com espanto. Ela nunca havia entrado na casa da Sra. Winton. Era muito antiquada, entulhada de móveis e livros, e havia uma lareira. Nada parecido com o que tinha previsto. A Sra. Winton tinha uma atitude muito contemporânea. Por outro lado, ela era apaixonada por livros. E havia estantes cobrindo as paredes. Um gatinho malhado estava sentado num tapete diante da lareira acesa. O cômodo poderia ser fotografado como um exemplo de ambiente confortável de antigamente.
De repente o gato deu um salto e a ilusão se desfez. O bichano correu para Rupert que, pego de surpresa a meio caminho de se sentar no sofá, perdeu o equilíbrio e caiu sentado. ─ Jessica! ─ ele gritou. ─ Que alegria! ─ enquanto o bichinho lambia animadamente o rosto dele.
─ Que gatinha simpática ─ disse Samantha ─ ela é muito pequena. É ainda filhote?
Rupert caiu na gargalhada. ─ Viu como você parece jovem, Jessica ─ ele disse para a gata. Depois, virando-se para Samantha, explicou: ─ Ela é mais velha do que eu.
─ Tá brincando!
A gata se virou para ela com os olhos semicerrados, e quando Samantha foi se sentar ao lado de Rupert, Jessica escapuliu do colo dele para o de Samantha e se esticou para lamber-lhe o rosto. ─ Ela é maravilhosa ─ disse Samantha.
─ É mesmo ─ concordou Rupert. Ela é simpática com todo mundo, mas não são a todos que ela lambe o rosto. Vai ver ela adotou você como parte da família ─ Samantha sorriu de emoção.
Segurando a gatinha junto ao corpo, ela terminou de examinar a sala.
─ Eu achava que nos dias de hoje ninguém mantinha lareira acesa, com lenha ardendo ─ ela comentou.
─ Mas não é de verdade ─ disse Patsy ─ é a gás. Nós temos aquecimento central também.
Nem tão antiquado, afinal.
─ Eu nunca teria imaginado que a casa da Sra. Winton fosse tão tradicional.
─ Bem, na verdade esta é a minha casa, que nós compartilhamos.
─ Oh meu Deus. Desculpe, eu presumi... ─ sem saber o que dizer, Samantha cobriu a boca.
─ Tudo bem ─ Patsy sorriu ─ é o que todos presumem. Recebi de herança. A tia Alison adorava a casa. Então, quando se separou do marido ela veio morar comigo e vivemos justas desde então. Ela paga as contas e coisas assim, e quando volto tenho uma casa linda me esperando.
Que curioso... Samantha nunca tinha pensado a respeito do marido da Sra. Winton. Claro que ela deveria ter tido um a certa altura. Ela indagaria Rupert a respeito, mais tarde. Agora não era hora.
Patsy se dirigiu para a cozinha. ─ O que gostariam de beber? ─ ela indagou pelo vão da porta entreaberta ─ Chá, café, Coca?
Simultaneamente, Rupert respondeu Coca, e Samantha, chá. Os dois se entreolharam, imaginando que deviam ter combinado pedir a mesma coisa.
─ Tudo bem. Vou servir os dois.
Samantha cutucou a cintura de Rupert e sussurrou ─ você não vai perguntar a ela?
─ Perguntar o quê?
─ Sobre seu pai, bobinho.
A cabeça de Patsy tornou a aparecer ─ Leite e açúcar?
─ Um pinguinho de leite, por favor ─ disse Samantha ─ e nada de açúcar.
─ Certo ─ respondeu Patsy, antes de desaparecer.
Samantha se virou para Rupert e perguntou: ─ Então?
─ Tenho de esperar o momento certo.
─ Momento certo pra quê? ─ indagou Patsy, que acabara de entrar na sala carregando uma bandeja.
─ Eu... bem... ─ Rupert se remexeu na cadeira.
─ Ele quer informações sobre o pai ─ adiantou Samantha ─ ele tem tido sonhos assustadores e presumimos que tem a ver com a falta de conhecimentos sobre o pai. A gente acha que você deve saber de alguma coisa.
─ Por que vocês não perguntam à tia Heather? ─ disse Patsy ao apoiar a bandeja na mesa de centro diante deles. O chá era servido numa delicada xícara de porcelana sobre um pires e a coca num copo alto com gelo e uma fatia de limão, e havia um drinque que parecia um gim-tônica.
─ Minha mãe? Ela não me conta nada. Já perguntei centenas de vezes. Ela não diz nada além de repetir que ele está morto e que nada mais importa. E só para você saber, uma vez perguntei a tia Alison, mas ela mudou de assunto. Acho que deve ter jurado manter segredo.
─ Que coisa... ─ Patsy se sentou do outro lado de Rupert, pegou seu copo e deu um gole com evidente satisfação. Então, devolveu o copo à bandeja e disse: ─ Vou te contar o pouco que sei, mas você precisa levar em conta que eu tinha apenas oito anos quando me contaram somente parte da história.
Rupert e Samantha se ajeitaram no sofá, exatamente como fazem as crianças à espera de uma história de ninar.
─ Tudo começou quando minha tia June saiu de férias e nunca retornou. A tia Alison era amiga dela e depois de tentar em vão saber do paradeiro dela foi com outra amiga, a tia Heather, à Espanha para juntas descobrirem o que havia ocorrido. Quando voltaram algumas semanas depois, a tia Heather tinha emagrecido demais e as duas estavam num estado deplorável.
Rupert e Samantha trocaram olhares de preocupação.
─ O que aconteceu foi que a tia June tinha se apaixonado por um homem chamado Mantequero e ele a tinha matado ─ após um pausa, ela continuou ─ muito embora a Alison tivesse dito que ele não a matara propositalmente. Ele matou-a de amor. Passado um tempo, ela me levou a Espanha para ver o túmulo.
─ Ele a matou! ─ disse Samantha, o rosto muito pálido.
Rupert parecia perdido ─ Mas onde meu pai entra nessa história?
Patsy passou o braço ao redor dos ombros de Rupert. ─ Ninguém me contou o que vou te dizer, mas crianças ouvem um monte de coisas que não deviam, e o que escutei foi que a tia Heather também se apaixonou por Mantequero, mas que a tia Alison conseguiu afastá-los a tempo. Por isso que ela estava tão magra, entendeu? O que Mantequero fazia era comer toda a gordura da pessoa, que por fim ficava muito magra.
Samantha e Rupert estava embasbacados. Por uns segundos, ninguém abriu a boca. Então Rupert disse bem pausadamente: ─ O que você está dizendo é que meu pai era um assassino?
─ Bem, a tia Alison disse que ele não fez por querer.
─ Mas ele quase matou minha mãe e também a sua tia.
Patsy tirou a mão do ombro dele e apertou-lhe as mãos ─ Olha, eu não sei direito. Estou repetindo o que entreouvi. Talvez eu não tenha entendido, afinal eu só tinha oito anos.
Rupert baixou os olhos para as mãos que ainda seguram as de Patsy. Em seguida, soltou um longo e entrecortado suspiro ─ acho que ele matou sim. As coisas se encaixam ─ e ele contou o sonho para a Patsy. O silêncio caiu sobre a sala. Então Samantha disse: ─ O que não entendo é que, se ele é mesmo seu pai, por que não sabe seu nome? Por que ele te chama de Ignacio?
─ Porque o nome dele era Ignacio ─ sem que percebessem, Alison tinha entrado na sala ─ na Espanha, o filho mais velho sempre recebe o nome do pai ─ fez uma pausa, a testa franzida. ─ Mas se for mesmo ele, como vocês se comunicam? Ele morreu, Rupert. Eu assisti à morte dele ─ mas logo contraiu os lábios, recordando-se do que Rafa havia dito ─ Não é sempre que se consegue matar essas coisas.
─ Vou chamar sua mãe. Acho que chegou o momento de você saber de tudo. Mas primeiro preciso da permissão dela. Foi a promessa que fiz.
~*~
─ E então eles foram para cima dele, todos da aldeia, com forcados de dentes compridos e foices e o que mais estivesse à mão. E quando esses se afastaram, vieram aqueles que, por não terem armas, atiraram pedras no corpo dele ─ Alison se engasgou e secou os lábios com as costas da mão.
Rupert, Samantha e Patsy estavam horrorizados. Heather olhava para baixo, uma vermelhidão se alastrando pelo pescoço.
─ Bom ─ disse Rupert ─ então não há dúvida de que ele esteja morto ─ era uma afirmação, não uma indagação. Samantha aproximou-se e abraçou-o.
Alison deu uma olhada rápida para Heather, que continuava com os olhos pregados nos pés. ─ Não ─ ela disse devagar e em tom de incerteza. ─ Acho que não.
─ Então, o que os sonhos significam? ─ ele abriu as mãos num gesto de perplexidade. ─ O que devo fazer a respeito? Estou falando com um fantasma, ou o quê?
─ Não acredito em fantasmas ─ disse Alison.
Heather ergueu os olhos. ─ Quê? Você não acredita em fantasmas? Você consegue acreditar num vampiro que suga gordura, mas não acredita em fantasmas?
─ Eu vi o vampiro ─ disse Alison baixinho ─ com meus próprios olhos.
─ Mas enfim, se não é um fantasma, então o que é? ─ perguntou Heather.
─ Bem... ─ Alison pigarreou ─ poderia ser o subconsciente de Rupert imaginando o pai com base no que ele ouviu alguém dizer.
Heather fulminou-a com o olhar e se sentou com os braços cruzados. ─ Ele nunca ouviu nada dos meus lábios.
─ Pode ser que ele tenha ouvido alguma coisa. As crianças costumam fazer isso.
O rosto de Patsy ficou ruborizado e ela tomou um gole de seu drinque. Ela havia enchido o copo duas vezes desde a chegada de Heather e tinha ficado um pouco mais ousada.
─ Isso não importa ─ ela disse.
Todos os olhos se voltaram para ela.
─ Não importa? ─ A voz de Heather era quase um grito ─ ele está tendo pesadelos, mal consegue dormir, está em época de exames e à beira de um acesso de nervos, e você vem dizer que isso não importa?
─ Eu não quis dizer que não me importo com o que ele está passando ─ interrompeu Patsy ─ o que eu estava dizendo é que não importa se é o fantasma do pai dele ou algo que ele tenha conjecturado, ou ainda se o pai de alguma forma sobreviveu e se comunica telepaticamente com ele ─ do canto do olho ela viu Alison se arrepiar ─ o que de fato ele é não importa pois o que quer que seja, a consequência é a mesma.
Agora todas as atenções estavam voltadas para ela. Heather e Rupert olhavam para ela com intensa expectativa.
─ Ele precisa ir à Espanha, àquele vilarejo.
─ Caserones ─ acrescentou Alison.
─ E ver o túmulo do pai e despedir-se dele.
As duas mulheres mais velhas trocaram olhares. Heather ergueu as sobrancelhas ─ Bem, a agente de viagens aqui é você ─ disse Alison.
IV
Ele estava de pé na montanha, o vento acoitando-lhe as roupas, mirando ao longe a aldeia. O homem das sombras estava a seu lado. ─ Ignacio, meu filho ─ o homem disse ─ você virá até a mim. Você deve vir a mim e me libertar, e juntos saciaremos nossa fome com a comida dos deuses.
Ele queria ter respondido ─ esse não é o meu nome ─ mas as palavras não se verbalizaram. Em vez disso, ele assistiu com horror quando o homem se virou para ele e mostrou o rosto pela primeira vez. E ele viu que aquele rosto era... era o seu!
Num movimento brusco, Rupert se sentou na cama, o corpo ensopado de suor frio, mal conseguindo conter o grito. Os lençóis estava úmidos e amarfanhados entre as pernas.
De algum modo, esse parecia ter sido o pior de todos os sonhos.
Ele tinha consciência de que se tratava apenas de um sonho. Na verdade, não era o seu falecido pai chamando por ele. E ele acredita mesmo que seu pai estava morto. Foi o que a sua mãe e a tia Alison disseram. E para que não restassem dúvidas sobre isso, depois que os moradores da aldeia mataram o Mantequero, a tia Alison havia acrescentado que eles cravaram uma estaca nele e cortaram-lhe a cabeça. Na verdade, ela não assistira à última parte. Havia se afastado da cena num misto de horror e nojo, e ajudado Heather a tomar o caminho de volta para a montanha. Mas seria mais do que improvável que alguém conseguisse sobreviver a tudo isso, não é? Até mesmo Rasputin teria tido dificuldade para sair dessa.
Depois de aceitar que Patsy tinha razão, Heather se transformou num furacão de saias. Uma hora depois já havia feito reservas para o voo deles, acertado com Johan, um amigo, o aluguel de uma de suas casas de veraneio, e contratado um taxi para levá-los ao aeroporto. Depois avisou a todos que era para levarem na mala apenas o necessário para alguns dias e estarem prontos para sair às três da manhã. O avião partiria às sete e eles tinham de chegar ao aeroporto com duas horas de antecedência.
Assim que Rupert terminara de fechar a mala, ela insistira que ele fosse para a cama, ignorando os protestos do filho de que nunca conseguiria dormir. Ele planejava usar o laptop para pesquisar sobre Caserones. Queria ver se havia semelhanças com o lugar que via em seus sonhos.
Mas sua mãe foi inflexível, repetindo que ele precisava dormir antes da viagem.
O conselho da mãe foi um tiro que saiu pela culatra. Depois do sonho que acabara de ter, achou que nunca mais voltaria a dormir.
─ Rupert ─ a mãe chamou da cozinha ─ você está pronto? O taxi vai chegar em quinze minutos.
Ele saiu da cama deixando os lençóis embolados e foi para o chuveiro. A mala estava pronta, as roupas arrumadas.
─ Desço em cinco minutos, mãe.
~*~
─ O que foi que a sua mãe disse?
Haviam embarcado no avião. O sol nascia quando decolaram e logo estavam em altitude de cruzeiro, sobrevoando os vinhedos e milharais da França.
Samantha fez beicinho e disse ─ ela não ficou nada satisfeita e não entendeu porquê, de uma hora para a outra eu resolvi ir à Espanha, sem avisar a ninguém. Cheguei a pensar em dizer a ela que era uma viagem com o colégio, para as aulas de espanhol, mas então me lembrei que ela não acreditaria nessa história, de modo que disse a ela que a sua mãe tinha conseguido no último minuto uma promoção e se ofereceu para nos levar. Ela ainda não estava convencida de todo, mas quando eu disse que a Sra. Winton também estava indo, ela afinal concordou e ainda me deu uma grana. Olha só!
Tirou a carteira e exibiu um maço de notas de cinquenta euros.
─ Caramba! ─ disse Rupert. ─ Como foi que ela conseguiu todos esses euros, mesmo depois de os bancos fecharem?
─ Ela tinha guardado ─ disse Samantha com um sorrisinho metido a besta ─ para quando vamos à França. Ela tem um monte desses na gaveta da mesinha de cabeceira.
─ É mesmo? ─ surpreendeu-se Rupert ao fechar os olhos. Samantha observou-o por uns instantes. O rosto pálido, as feições cansadas. Ela se virou para olhar o mundo lá longe que se via da janelinha do avião, e que naquele instante se aproximava das montanhas.
~*~
Johan, um amigo de Heather foi encontrá-los num bar em Orgiva. Ele pouco havia mudado nos quase vinte anos que não se tinham visto. O cabelo grisalho um pouco mais branco, algumas rugas extras; fora isso, era o mesmo: ─ alto, magro e em ótima forma. Quantos anos deve ter agora? avaliou Heather. Uns sessenta, no mínimo. Talvez setenta e alguma coisa. E, então se deu conta de que foram elas que tinham mudado.
─ Heather! ─ Johan abraçou-a e sapecou-lhe os tradicionais beijinhos espanhóis, um em cada bochecha. Heather abriu um sorriso enorme para ele.
─ Você está demais! Tão elegante e charmosa. Podia ser modelo. Não dá para acreditar que seja a mesma pessoa.
Heather abaixou os olhos e contemplou o próprio corpo com evidente satisfação. Mal conseguia se lembrar de como era quando estava gorda, muito gorda. ─ Nunca mais engordei ─ ela disse ─ nem mesmo quando estava grávida de Rupert.
Ela procurou os olhos do filho que veio na direção deles com a mão esticada para um cumprimento. Johan se assustou e deu um passo para trás, a expressão do rosto registrando o susto.
─ Tudo bem ─ disse Heather ─ eles se parecem, mas Rupert não tem as mesmas... propensões ─ e deu uma incomum risada nervosa. ─ Este é o Rupert.
Rapidamente Johan se recompôs e sorriu para o rapaz. Por uns instantes, teve absoluta certeza de que era o Mantequero – de volta da morte –, mas então percebeu que não podia ser a mesma pessoa. Para começo de conversa, o rapaz era bem mais jovem. Suas lembranças eram de um homem feito, de um adulto. O jovem era alto, mas não tão alto quanto o Mantequero, que tinha a mesma altura do próprio Johan. Rupert precisava erguer o rosto para encará-lo.
─ Prazer em conhecê-lo, senhor ─ ele disse.
Instantaneamente, Johan simpatizou com o rapaz. Tão educado. Algo inédito nos jovens daqueles dias. Ignorando a mão estendida, Johan deu-lhe um abraço comum na região de Andaluzia e os dois beijinhos. Rupert ficou surpreso, mas não se afastou.
Então, Johan foi cumprimentar os outros. Disse à Alison que ela não havia mudado nada e depois voltou sua atenção, e charme, para a Patsy. ─ Eu não consigo acreditar que esta é a menininha que veio aqui para ver o túmulo da tia. Você se transformou numa belezura.
Ele sentiu um aperto no peito, uma aflição ao ver Samantha. Incontestavelmente gorda. Nem tanto quanto Heather tinha sido, mas ainda assim... do fundo do coração torceu para que o filho não tivesse puxado ao pai.
─ Ele não herdou as características do pai ─ sussurrou Alison, como se pudesse ler os pensamentos dele. ─ Estão juntos a meses. Se fosse como o pai, ela não seria mais gorda.
─ Sim, sim, é claro ─ Johan murmurou de volta. É que fiquei atônito.
Alison deu-lhe um sorriso e chamou o garçom.
––––––––
─ Bem ─ disse Johan se levantando e passando um guardanapo nos lábios ─ se quisermos chegar a Caserones antes de o bar fechar, temos de ir logo. No caminho podemos dar uma passadinha na casa para deixar suas malas. Reservei para vocês o casarão que fica perto da piscina. Com três quartos.
─ Maravilha ─ disse Heather ajudando Alison a se levantar da cadeira. Ela ainda estava um pouco zonza por causa das curvas da subida da serra. Ela era a única do grupo que tinha medo de altura. Samantha achou isso um tanto curioso, já que em todos os outros aspectos ela estava convencida de que a Sra. Winton apresentava grande desenvoltura.
Ela se inclinou para Patsy. ─ Como ela se virou quando trouxe você aqui para ver o túmulo da sua tia?
Patsy ficou observando enquanto Alison era amparada no caminho até o carro e disse: ─ Se me lembro bem, ela contratou um taxi, sentou-se no banco traseiro a meu lado e não olhou para fora da janela ─ e continuou com um largo sorriso ─ acho que ela deve ter falado um monte de besteira para se distrair.
Samantha sorriu de volta e foi para perto de Rupert.
─ Tá tudo bem com você? ─ ela indagou baixinho ─ você está com uma aparência horrível ─ o rosto dele estava tão pálido, que chegava a ter um tom cinza esverdeado. ─ Você está se sentindo mal?
─ Não. Sim. Sim, mas não é nada físico.
Samantha lançou-lhe um olhar compreensivo ─ deve ser difícil ter de confrontar seu pai agora que sabe o que ele era.
─ O que ele é ─ remendou Rupert pegando no braço dela e virando-a de costas para os outros que, àquela altura, entravam no carro. ─ Sam, posso ouvir a voz dele, agora que estamos mais perto. Posso ouvir a voz dele me chamando. Inclusive quando estou acordado! ─ a voz dele foi num crescendo e as últimas palavras foram praticamente gritadas.
Shh, shh, fez Samantha, dando uma olhada preocupada na direção dos outros e murmurou ─ Que merda!
~*~
Estava na hora do almoço, e o restaurante de Rafa fervilhava. Alison forçou a vista para enxergar por cima das cabeças, mas não conseguiu ver Rafa; apenas dois rapazes correndo em volta das mesas, servindo pratos fumegantes e papeando alegremente com os clientes. De imediato, ela não conseguiu avistar nenhuma mesa com assentos sobrando; contudo, um dos garçons veio até ela e levou-a para uma mesa de canto. Só havia quatro cadeiras, mas ele conseguiu espremer mais duas, e todos se sentaram.
─ Eu estava procurando o Rafa ─ disse Alison.
Um jovem sorriu para ela, os dentes absurdamente brancos em contraste com a pele bronzeada ─ eu sou o Rafa ─ ele disse. Por um instante ela ficou sem saber o que dizer, mas logo percebeu que devia ser o filho de Rafa.
─ Não, estava me referindo a seu pai.
O rapaz abanou de leve a cabeça e disse: ─ lamento, mas ele desceu a serra para comprar peixe.
─ Que pena. Quando é que ele volta?
O rapaz deu uma olhada no relógio de parede, deu de ombros e disse: ─ Não sei direito. Daqui a uma hora, talvez.
Johan, que acompanhara a conversa, bateu palma ─ Perfeito. Ele deve chegar quando estivermos acabando de almoçar ─ ele abriu um sorriso para o grupo que o acompanhava e se virou para o garçom: ─ Qual é o prato do dia?
Rafa apareceu quase duas horas depois. Àquela altura todos, à exceção de Rupert, estavam empanturrados, depois de se servirem de tigelas de gaspacho, uma sopa fria de hortaliças servida com torradas, seguida de uma paelha e pudim de caramelo de sobremesa. E tudo regado a incontáveis taças de vinho. Rupert e Samantha tomaram tinto de verano, uma mistura de vinho tinto e limonada, e ambos estavam um pouco embriagados, especialmente Rupert, que quase não havia comido.
O garçom correu para o pai e começou a gesticular apontando para a mesa deles.
Ao bater os olhos em Heather e Alison que acenavam entusiasmadas, o rosto de Rafa se iluminou e ele correu para elas limpando as mãos nas calças.
─ Alison! ─ ele gritou, enquanto ela e Heather ergueram-se ao mesmo tempo, quase derrubando a mesa. Depois de um alvoroço de abraços e beijos, ele se virou para ser apresentado ao restante do grupo. Ao ver Rupert, ele ofegou de choque, deu uns passos para trás e seu rosto se fechou.
O vozerio do bar cessou de repente, como se alguém tivesse desligado um fusível, e todos os olhos se voltaram para Rafa, que fora se esconder num canto do salão e tremia de medo, ainda com a testa crispada, o olhar de ódio, o dedo em riste apontado para Rupert.
Rupert tinha ficado em pé e procurava em desespero um jeito de fugir dali. Aos poucos, como se todos tivessem sido puxados por uma única corda, os olhos se viraram para Rupert e ouviu-se um longo suspiro agudo.
Samantha e Heather tinham se postado protetoramente na frente de Rupert e Alison foi ter com Rafa.
─ Não é ele ─ ela disse ─ apenas se parece com ele. Você sabe que não pode ser ele. Você o matou, não foi? Você mesmo o matou. Você e os outros. Eu estava lá. Vi com meus próprios olhos ─ ela se virou para olhar para Rupert. ─ Olha bem para ele! É só um menino. Dá para ver que não é a mesma pessoa.
Rafa olhou para ela, os olhos tão escancarados que o branco do olho saltava em toda a volta. Alison achou que ele parecia um cavalo assustado. Quando ele falou, sua voz não passava de um sussurro áspero ─ O que é ele?
─ Filho da Heather. O nome dele é Rupert. Rafa lançou-lhe um olhar penetrante e em seguida virou sua atenção de volta para Rupert.
Por uma fração de segundo, todos suspenderam a respiração e a cena congelou na memória de Samantha, igual como às vezes acontece nos filmes. O homenzarrão acovardado num canto, as mãos erguidas com os dedos em figa, a Sra. Winton fitando-o com olhar suplicante, os garçons paralisados com a bandejas suspensas acima de suas cabeças, os clientes olhando horrorizados e incrédulos para o menino ao lado dela, e o próprio Rupert, tremendo como um veadinho assustado, as palmas das mãos e o resto do corpo colados contra a parede.
Então, mais uma vez, o tempo avançou rapidamente. Rafa relaxou, os filhos apoiaram suas bandejas sobre as mesas e correram para o pai, os clientes voltaram a conversar, quase sempre aos sussurros, acompanhados de olhares e gestos na direção de Rupert. Samantha ouviu a palavra mantequero repetidas vezes.
─ Anda, Papá ─ o jovem Rafa ajudava o pai a se levantar e a acomodar-se à uma mesa próxima, onde outros homens moviam suas cadeiras para abrir espaço. Outro filho de Rafa correu carregando um garrafão e serviu-lhe um copo bem grande. Rafa tomou tudo em um gole e bateu com o copo na mesa. O jovem tornou a servi-lo.
─ Rafa ─ Alison o havia seguido até a mesa e acocorou-se diante dele e seus olhos estavam da mesma altura ─ precisamos da sua ajuda. Preciso que você me diga uma coisa.
Rafa olhou para ela sem dizer nada, tomando outro grande trago da bebida.
─ Preciso saber se você o matou como deve de ser. Você cravou uma estaca nele e degolou-o?
Rafa apoiou o copo na mesa, levou as mãos à cabeça e gemeu ─ Óhhh, não. Não consegui. Enfiei a estaca nele, isso eu fiz, o que foi muito difícil, pois ele não parava de me encarar. O rosto dele... ele tinha um rosto tão bonito, tão triste. Fiquei de coração partido. Não dá para explicar como foi difícil. Enquanto eu martelava a estaca, o corpo dele estremeceu e ele abriu os olhos e falou comigo.
Alison ouvia a tudo num misto de horror e fascínio, incapaz de afastar os olhos de Rafa.
─ Ele disse ─ Rafa fez uma pausa para pegar o copo e tomar tudo que havia de uma golada. O filho voltou a enchê-lo sem dizer nada ─ Ele disse que nunca tinha feito nada de mal a mim nem a minha família. E disse meu nome: Rafa. Ele sabia meu nome! Ele me implorou para salvá-lo, mas eu segui martelando até que um sangue preto começou a jorrar e ele ficou inerte. Então fui buscar a minha foice, mas ao olhar de volta, os olhos dele estavam abertos, implorando. Não consegui fazer, Alison.
─ Então, o que aconteceu? ─ Alison perguntou baixinho.
─ Fui embora, Deus tenha piedade de mim. Larguei ele lá e voltei correndo para casa. Disse a mim mesmo que iria retornar. Que voltaria lá no dia seguinte para cortar a cabeça dele, mas não consegui. Voltei antes do amanhecer e cobri o corpo dele com pedras. Ele continuava deitado, na mesma posição. Então me convenci de que ele estava realmente morto. Que eu não precisava fazer mais nada. Eu o cobri para que os urubus não despedaçassem o rosto dele. E então fui para casa e desde então nunca mais voltei.
─ Rafa, você se recorda de onde foi? Pode nos levar até lá?
O rosto de Alison estava bem perto do de Rafa, os olhos dela buscando os dele.
Ele resmungou e bebeu mais um pouco.
Johan se ergueu e foi para perto deles ─ Vamos lá, Rafa ─ ele disse ─ se você continuar a beber não terá condições de levar ninguém a lugar nenhum. Vamos lá, amigo ─ ele deu uns tapinhas no ombro de Rafa que ergueu os olhos tomado de surpresa.
─ Vamos todos juntos. Você e eu e as mulheres e Rupert.
─ E eu ─ disse o filho de Rafa ─ se meu pai vai correr perigo, estarei junto
─ E eu também ─ disse o outro filho, postando-se ao lado do irmão.
Os clientes do restaurante começaram a falar todos ao mesmo tempo, anunciando a intenção de irem juntos.
─ Oh! Essa não! ─ disse Johan ─ vai ser outra droga de um circo como da última vez.
V
Durante a hora seguinte, o restaurante encheu-se de alvoroço enquanto os aldeões entravam e saíam apressados, pegando armas antigas, convocando amigos, gritando instruções. Heather, Alison e Johan estavam sentados bem próximos, concentrados em uma conversa séria. Patsy tinha ido para o bar e batia papo com a filha de Rafa, o que incluía muitos gestos e risadas. Samantha observava tudo, os olhos semiabertos. Sonolenta após a longa viagem iniciada cedo de manhã, mais o almoço pesado, mais a descarga de adrenalina depois do estressante encontro com Rafa.
Ninguém notou que Rupert tinha desaparecido.
~*~
Vem para mim. Vem para mim. Vem para mim, meu filho. Ignacio, vem para mim. A voz era melodiosa, sedutora.
Rupert se esforçava para escalar a montanha numa espécie de transe, seguindo as trilhas das cabras e leitos de riachos. Ele tinha de alcançar o pai. O terreno era coberto por uma profusão de flores silvestres que escondiam buracos traiçoeiros, arbustos espinhosos e galhos pontiagudos. Foi preciso que ele puxasse as meias para cima da bainha das calças para seguir adiante apesar das dificuldades, atendendo ao chamado. Estava se aproximando. Podia sentir que sim.
~*~
Começava a escurecer quando o pessoal da aldeia avisou que era hora de ir. Carregavam uma infinidade de armas: pedaços de pau, facas, ferramentas agrícolas e uma ou outra arma de fogo antiga.
─ Eles as escondem dentro das paredes ─ disse Johan ─ curvando-se e despertando Samantha para a realidade. Ela olhou ao redor tomada de um pânico repentino: ─ Cadê o Rupert? ─ ela gritou.
─ Puta que pariu! ─ disse Johan.
Rafa, agora totalmente recuperado do susto que tinha levado mais cedo, subiu no bar e assumiu uma postura dramática, evidenciando que estava preses a fazer um discurso.
─ Não temos tempo para isso ─ berrou Johan ─ o garoto desapareceu. Temos de achá-lo antes que ele encontre o pai.
Os aldeões se entreolharam consternados, antes de dispararem ao mesmo tempo para fora do bar, causando um verdadeiro engarrafamento ao tentarem sair pelo estreito vão da porta.
Quando afinal Johan e as mulheres alcançaram a rua, os aldeões já estavam a caminho, brandindo suas armas e entoando cânticos.
─ Por acaso eles sabem aonde estão indo? ─ perguntou Johan.
─ Acho que não, mas eu sei ─ disse Rafa ao tomar a dianteira e ir por um caminho diferente e mais difícil.
~*~
A cova estava marcada com pedras empilhadas, igual a tantas outras pelas quais Rupert havia passado, erguidas por pastores e viajantes para marcar o caminho. Aquela, porém, era diferente, pois estava afastadas das trilhas e escondida sob uma saliência na lateral do despenhadeiro. No fundo dessa saliência havia uma pequena gruta, e ele não conseguiu resistir ao desejo de dar um espiadela, embora seu pai, naqueles instantes, o chamasse com mais urgência. Rápido, garoto. Me tire daqui. O tempo está se esgotando. Eles estão a caminho.
No passado, a gruta certamente tinha sido habitada. Havia cobertas e o que sobrou de uma fogueira improvisada. Um minúsculo fio d’água escorria em um canto da parede e se acumulava em uma tigela de barro que, ao transbordar, empurrava a água por uma fenda até a entrada da gruta. Havia outros objetos: ferramentas, equipamentos, um chapéu de abas largas, um saco de couro enegrecido pelo tempo, que ele pegou e cheirou. O odor despertou-lhe a memória. Que delícia! Num gesto automático, lançou o saco sobre o ombro e tratou de remover as pedras empilhadas.
Mais abaixo, na montanha, o pequeno grupo de Johan começava a se preocupar com o pôr do sol. Eles não tinham pensado em levar tochas, pois partiram para a aldeia no meio do dia. Então, quando Rafa suspendeu uma lamparina de ferro reforçado e deu uma piscadela esperta, Johan pensou: Perfeito. Também funciona como uma arma muito poderosa.
Os sorridentes filhos de Rafa vinham bem atrás do pai, cada um segurando lamparinas parecidas com a do pai e facões afiados. O próprio Rafa carregava um martelo e um machado robusto presos ao cinturão. Johan sentiu um tremor ao perceber a finalidade dessas ferramentas.
─ Vamos indo ─ disse Rafa ─ estamos perto.
Ao longe, para lá do sopé da montanha, Johan podia ver as luzes da pequena aldeia irem se acendendo aos poucos, enquanto ao sol desaparecia atrás dos picos. Não havia sinais da presença de pessoas.
~*~
Depois de retirar a última pedra, Rupert olhou para o rosto do pai. Exatamente o mesmo do sonho: o rosto que ele próprio via no espelho todas as manhãs, mas que imperceptivelmente ia se transformando: as feições mais definidas, mais bonitas.
De repente os olhos se abriram ─ Ignacio ─ ele disse com um sorriso ─ enfim você veio. Esperei durante anos para ver seu rosto. Seja rápido. Você tem de me libertar.
Rupert fitou a estaca pontiaguda saindo do peito do pai e sentiu uma ânsia de vômito. Tentou arrancá-la com as mãos, mas nada aconteceu. Ficou em pé, as pernas abertas sobre o túmulo do pai, limpou as mãos nas calças e agarrou a estaca mais uma vez. Mesmo puxando com toda a força, não conseguiu movê-la. Olhou ao redor procurando alguma coisa que servisse de alavanca. Achou uma pedra grande e arredondada que colocou contra a estaca e empurrou. Houve um mínimo movimento.
─ Desculpe, pai ─ ele disse enquanto via o rosto do pai se contorcer de dor.
─ Não se preocupe, meu garoto. Continue. Eles já estão chegando.
Rupert pensou ter ouvido um farfalhar na grama logo abaixo e redobrou seus esforços.
Na tentativa seguinte, a estaca deslizou para o lado, fazendo um barulho repulsivo. Ignacio gritou. Rupert parou, horrorizado. ─ Vá em frente, vá em frente ─ disse o pai.
Rupert pensou ter escutado um barulho parecido com o farfalhar de grama abaixo deles e redobrou seus esforços.
No empurrão seguinte, a estaca deslizou para o lado fazendo um barulho arrepiante de algo sendo sugado. Ignacio gritou. Rupert congelou, horrorizado.
─ Não pare, continue ─ disse o pai.
Ele agarrou a estaca, que dessa vez saiu na hora. Grandes jatos de sangue enegrecido vazaram da ferida aberta. Rupert começou a chorar e se inclinou sobre o pai.
─ Desculpe, desculpe.
─ Tudo bem. Está tudo certo. Estou livre. Veja! ─ num movimento brusco, Ignacio ficou de pé, abriu os braços e virou o rosto para o pôr do sol. O brilho avermelhado refletiu em seus olhos, dando a ele um aspecto demoníaco, e, de súbito, Rupert sentiu um arrepio de frio. O que havia feito? Este era o homem que quase matou sua mãe. Que havia matado não se sabe quantos outros, e ele acabara de libertá-lo.
─ Rupert!
Era a voz de sua mãe. Ele a viu no topo de uma pequena elevação ─ Santo Deus! O que você fez?
Ignacio começou a rir. Foi uma risada forte e escancarada que ecoou pelos picos da montanha e disse: ─ Então, você voltou para mim, meu amor? Teve fome de meus beijos? E o que é isso? ─ Samantha seguira Heather e, ignorando completamente Ignacio, correu para Rupert, que a segurou num abraço.
─ Que criatura linda. Que generosidade sua, meu filho, trazê-la para mim. Tenho estado com fome há tanto tempo.
─ Não! ─ Rupert arreganhou os dentes ─ ela não é para você. Ela é minha.
─ Ora, meu garoto. Você recusaria a seu pai a primeira refeição depois de todos esses anos?
Rupert postou-se na frente de Samantha e encarou o pai.
Ignacio jogou a cabeça para trás e gargalhou novamente ─ você acha que pode me vencer, garoto? Você não passa de um adolescente. Eu poderia arrancar sua cabeça com um único golpe.
Atrás de Rupert, Samantha choramingou. Heather avançou e atirou-se nas costas de Ignacio. Ele sacudiu o corpo atirando-a para longe, como se ela fosse uma daquelas moscas irritantes.
Alison havia corrido na direção deles, mas estancou e fez uma espécie de dancinha com os pés, sem saber o que fazer. Johan veio por trás e agarrou-a pela cintura impedindo-a de avançar.
O Mantequero começou a caminhar para Rupert e Samantha e gritou: ─ Agora!
Seu grito ficou pairando no ar quando o facão de Rafa cravou nas costas dele, seguido por duas lâminas mais curtas. Os três se arrepiaram quando o Mantequero caiu para frente.
Rápido como um raio, o grandalhão ficou de joelhos ao lado de Ignacio, e virou o Mantequero de costas, que gritou quando as lâminas atravessaram seu corpo, a ponta do longo facão de Rafa surgindo no peito dele. Rafa colocou todo seu peso nos ombros do Mantequero, que começava a se desvencilhar.
─ Rápido rapazes ─ Rafa urrou ─ não deixem que ele se levante.
Heather deu para trás, as mãos cobrindo a boca, os olhos esbugalhados de pavor.
─ A estaca, me passem a estaca ─ ordenou Rafa ─ apontando para a estaca coberta de sangue ao lado da cova.
Não foi Heather, mas Rupert quem obedeceu. O Mantequero se retorcia como louco, mas Rafa e os filhos conseguiram contê-lo.
─ Toma ─ disse Rafa pegando o martelo preso ao cinturão e passando-o para Rupert ─ isso cabe a você. Isso tem de ser feito por quem o ama.
─ Mas eu não... ─ começou Rupert, mas ao olhar para o homem deitado e contido pelos três homens, compreendeu que sim, ele o amava. Com um grito monstruoso, repôs a estaca no lugar de onde a tirara e deu o primeiro golpe. Ignacio gritou. ─ Não, não, meu filho. Você não deve fazer isso. Eu não posso morrer. Vou continuar vivendo para sempre em tormento. Você não pode me condenar a isso.
Rupert fitou Rafa, que assentiu. Então, tornou a erguer o martelo de novo e mais algumas vez.
Quando acabou, caiu aos prantos ao lado do corpo. Tinha terminado. A voz de seu pai havia, finalmente, deixado de existir.
Rafa se levantou e disse: ─ você agiu muito bem, garoto. Pode ir. Farei o que tem de ser feito ─ pegou o machado preso ao cinturão e cochichou ─ e farei do modo correto desta vez.
Rupert se virou e enterrou a cabeça na curva do pescoço de Samantha, o que o impediu de ver, mas não de ouvir o terrível baque quando o machado atravessou o pescoço do pai e a cabeça dele caiu na terra.
Ele se virou a tempo de ver Rafa erguer a cabeça pelos cabelos, balançar o braço num grande arco e atirá-la para longe, para a outra margem do barranco. Assombrada por tudo aquilo, Samantha ficou olhando em silêncio enquanto a cabeça cortava o ar, espalhando pequenas gotas de sangue.
Então ela se virou para Rupert e disse: ─ Está tudo acabado.
Ele sorriu-lhe com o canto do lábio, mas afastou-se dela.
─ Que é? O que foi? ─ ela perguntou.
Ele se ergueu, tremendo de frio sob o ar glacial da montanha, os braços abertos num gesto de derrotismo e disse: ─ Matei meu pai. Sou um amaldiçoado.
─ Você não o matou ─ disse Samantha dando um passo à frente ─ ele já estava morto. Você o libertou.
Então, como Rupert seguia contemplando-a com olhos atônitos, ela o abraçou dizendo: ─ Amo você ─ e ficou nas pontinhas dos pés para beijá-lo.
O cheiro que ela tinha era delicioso. Ele quase podia sentir o gosto da gordura por baixo da pele e, por um instante, só por um instante, ele pensou: Seria correto se eu desse um beijo especial nela? Apenas um. Só para ter um gostinho? Mas logo rejeitou o desejo e teve de lidar com outras questões, quando sua mãe se juntou ao abraço, empurrando Samantha para o lado e apertando-o com tanta força que ele mal conseguia respirar.
─ Voltaremos amanhã ─ disse Rafa ─ para dar a ele um enterro digno. Agora temos de ir embora. Não é seguro ficarmos na montanha à noite.
Ele escolheu o jovem Rafa para ser o guia, pôs o mais novo dos filhos para ficar no meio do grupo e decidiu que ficaria no fim. ─ Todos de mãos dadas ─ ele ordenou. É fácil se perder na escuridão.
E, em fila, desceram lentamente a montanha.
~*~
Horas depois, Samantha mal conseguia se lembrar do longo caminho de volta da montanha. Algumas lembranças confusas de ter esbarrado em arbustos pontiagudos e dar topadas em pedras e outros obstáculos pelo caminho. Recordava-se vagamente de que, mais de uma vez, Rupert teria segurado seu braço para ajudá-la a ficar em pé. Mas não se lembrava de ter conversado muito com ele. Afinal já era difícil respirar mesmo sem tentar conversar.
Sua primeira lembrança real de disso tudo foi a de sentar no bar do Rafa com um cobertor em volta dos ombros, ainda tiritando de frio. O jovem Rafa, aparentemente não afetado pela excitação e pela caminhada cansativa, entrou saltitante no restaurante, carregando uma garrafa e começou a encher o copo de todos.
─ O que é isso? ─ perguntou Samantha, olhando com desconfiança para o líquido escuro.
─ Brandy ─ disse Rafa. ─ pode beber!
Ela olhou para Alison, que assentiu com um curto aceno de cabeça. Bem, se a Sra. Winton achava que tudo bem...
─ À montanha ─ brindou Rafa.
Samantha deu uma provinha, ainda hesitante. O gosto era horrível, parecido com remédio contra tosse. Achava difícil de acreditar que as pessoas bebiam isso por prazer. Mas depois de o liquido descer garganta abaixo e aquecê-la por dentro, os calafrios foram cedendo.
─ Isso que você fez, filho, demandou muito coragem de sua parte ─ disse Rafa, erguendo o copo em saudação a Rupert.
Rupert devolveu-lhe um leve sorriso, depois ergueu o copo e disse: ─ e da sua parte também.
─ Verdade ─ disse Rafa ─ e esvaziou seu copo.
A cena avança para um quarto banhado pelo luar. Ela não conseguia enxergar quem dormia na cama ao lado, mas sabia que era a Patsy. Rupert devia estar sozinho em outro quarto. Ela ainda não tinha pegado no sono, pois sua mente continuava ocupada com os eventos dos últimos dias. Só Deus sabe como Rupert deve estar se sentindo depois do que foi obrigado a fazer. Chegou apensar em entrar de mansinho no quarto dele para ver se ele estava bem, mas não teve coragem suficiente. E se por engano entrar no quarto em que estão a Sra.Winton e a mãe de Rupert? Certamente interpretariam mal suas razões para vagar de camisola pelos corredores, no meio da noite. O jeito foi ficar se revirando na cama até o dia amanhecer e ouvir uns ruídos que vinham da cozinha.
Para evitar correr riscos, tomou uma chuveirada e se vestiu, antes de sair à procura de Rupert. Não queria entrar no quarto dele de roupa de dormir, nem fazer nada que pudesse resultar em serem proibidos de se ver.
Mas ela não tinha sido rápida o bastante: a mãe de Rupert já estava no quarto, sentada na cadeira ao lado da cama de Rupert que, tanto quanto pôde ver, dormia um sono profundo.
─ Ele está bem? ─ ela sussurrou.
A cabeça de Heather ergueu-se de súbito, e Samantha percebeu que a mãe de Rupert também dormia.
─ Sim, acho que sim ─ ela respondeu num murmúrio ─ um sono tranquilo, quase não se mexeu.
─ Melhor do que eu ─ disse Samantha com um sorrisinho triste.
Heather devolveu-lhe um sorriso ─ foi muito assustador, não é? Espero que tudo tenha chegado ao fim.
Rupert se remexeu ainda na cama e abriu os olhos. Ele franziu a testa e olhou em volta por um instante, sem saber onde estava, e depois fixou o olhar em Samantha e em sua mãe.
─ Então, dormiu bem? ─ indagou Heather.
Ele sorriu e respondeu ─ Sim, dormi bem.
~*~
─ E os sonhos?
Eles estavam sentados ao redor da mesinha na parte externa da casa de veraneio, ouvindo Heather preparar o café da manhã.
─ Sem sonhos ─ disse Rupert com um longo bocejo que terminou com um sorriso ─ e também não ouço nada. Acho que terminou ─ ele segurou a mão de Samantha, acariciou-a lenta e pensativamente e disse ─ você tem a pele mais incrível do mundo, sabia? Tão lisa e sedosa.
Samantha se inclinou e deu-lhe um beijo na bochecha.
─ Tem uma coisa que estou querendo te perguntar ─ ela disse.
Rupert fez cara de preocupado, e ela sorriu e explicou: ─ Não, não tem nada a ver com você. Afinal, não penso em você o tempo todo... mas quase todo. O que estou querendo saber é o que aconteceu com o marido da Sra.Winton. Ela é uma pessoa tão bacana... não consigo imaginar que alguém quisesse se separar dela. Ou foi ela quem quis?
Rupert sorriu ─ meio que os dois ─ ele disse ─ Gene, o marido, concluiu que era gay. Não sei bem se foi mesmo uma grande surpresa para a tia Alison. Presumo que tenha havido sinais... ─ ele interrompeu o que ia dizer, olhando para o pomar que ficava para além da piscina. ─ de qualquer forma, ele só percebeu sua homossexualidade ao se apaixonar por outro cara. Tudo aconteceu de forma bem amigável. Eles continuam sendo grandes amigos.
Samantha ergueu as sobrancelhas ─ e o outro cara?
─ Oh, ele foi embora faz um tempão. Mas tenho para mim que quando você se dá conta de sua opção sexual, não há caminho de volta. De qualquer forma, seria ridículo continuarem a viver juntos. Então venderam a casa e a tia Alison foi morar com a Patsy. Tenho certeza de que um dia desses você vai conhecer o Gene e vai gostar dele. Ele é muito divertido.
Samantha refletiu a respeito por alguns instantes. Enfim, o divórcio não foi o dramalhão que era de se esperar, considerando-se as circunstâncias. Mas sem dúvida deve ter sido um bocado doloroso.
Seus pensamentos foram interrompidos por Rupert puxando-a para si e beijando-a.
Ele enterrou o rosto em seu esplêndido cabelo. Nunca... jamais pensei que faria isso na vida, ele pensou. A sensação foi igual àquela com que sempre sonhara: como seda, com cheiro de shampoo e perfume de flores. Ele inspirou forte o aroma que a pele dela exalava e foi intensamente dominado pela felicidade.
No quarto de Rupert, debaixo da cama, estava um saco de couro preto. Tinha mais de um bilhão de anos e tinha tido muitos donos. Agora teria mais um. Estava faminto, mas teve de ser paciente. Ao longo dos séculos tinha aprendido a esperar.
––––––––
FIM