Segunda-feira

I

 

— Coragem! — disse Miles Mollison, de pé na cozinha de um dos casarões da Church Row.

Esperou dar seis e meia da manhã para telefonar. A noite tinha sido terrível, cheia de longos períodos em claro pontuados por alguns momentos de um sono agitado. Às quatro da manhã, percebeu que a sua mulher também estava acordada e conversaram baixinho no escuro. Mesmo ali, enquanto os dois falavam sobre o que haviam sido obrigados a presenciar, cada qual tentando rechaçar vagos sentimentos de medo e choque, a simples ideia de dar a notícia ao seu pai provocava em Miles ondas de empolgação. Decidiu esperar até as sete horas, mas o medo de que alguém pudesse ser mais rápido o fez telefonar mais cedo.

— O que houve? — indagou Howard, com aquele seu vozeirão que tinha um leve toque áspero. Miles ligou o viva-voz para Samantha poder ouvir a conversa. A mulher, vestida num robe rosa-claro, havia aproveitado o fato de terem acordado cedo para passar mais um pouco de autobronzeador na pele de um moreno jambo, que já estava começando a recuperar a sua palidez habitual. A cozinha estava impregnada da mistura dos cheiros de café instantâneo e coco sintético.

— Fairbrother morreu. Foi ontem à noite, lá no clube de golfe. Sam e eu estávamos jantando no Birdie.

— Fairbrother morreu? — bradou Howard.

Pelo seu jeito de falar, dava para ver que ele esperava alguma mudança dramática no estado de Barry Fairbrother, mas que nem mesmo ele imaginara a sua morte.

— Ele caiu no estacionamento — disse Miles.

— Meu Deus! — exclamou Howard. — Ele tinha o quê, pouco mais de quarenta, não é? Meu Deus...

Miles e Samantha ouviam Howard respirar como um cavalo ofegante. Ele sempre tinha a respiração mais difícil pela manhã.

— O que foi? Coração?

— Parece que foi alguma coisa no cérebro. Acompanhamos Mary até o hospital e...

Mas Howard já não estava prestando atenção. Miles e Samantha ouviram-no dizer, afastando o fone:

— Barry Fairbrother morreu! É Miles!

Os dois então tomaram uns goles de café esperando que ele voltasse. Quando Samantha se sentou à mesa da cozinha, o seu robe se entreabriu revelando os contornos dos seios grandes apoiados nos seus antebraços. Assim pressionados, eles pareciam mais cheios e suaves que quando pendiam sem qualquer suporte. Da fenda entre eles, naquela pele crestada, surgiam umas linhas miúdas que já não desapareciam nem mesmo quando não havia pressão alguma. Mais jovem, ela fora usuária assídua das câmaras de bronzeamento artificial.

— O quê? — indagou Howard, voltando ao telefone. — O que você estava dizendo sobre o hospital?

— Sam e eu fomos na ambulância — disse Miles, falando com toda a clareza. — Com Mary e o corpo.

Samantha percebeu que a segunda versão de Miles enfatizava o que se poderia chamar de aspecto mais comercial da história. Mas não o culpava por isso. A única recompensa que teriam com aquela terrível experiência era o direito de contar a todos o que tinha acontecido. Ela mesma achava que jamais se esqueceria daquilo: Mary chorando; os olhos de Barry ainda entreabertos, surgindo acima da máscara que parecia uma focinheira; ela e Miles tentando ler a expressão do paramédico; os solavancos naquele espaço reduzido; as janelas escuras; o terror.

— Meu Deus! — exclamou Howard pela terceira vez, ignorando o interrogatório de Shirley, com a atenção inteiramente voltada para Miles. — Ele simplesmente caiu morto no estacionamento?

— Exatamente — replicou Miles. — Assim que o vi tive a certeza de que não havia mais nada a fazer.

Foi a sua primeira mentira, e ele evitou olhar para a esposa quando disse aquilo. Ela se lembrava muito bem do seu braço grande e protetor sobre os ombros trêmulos de Mary: Ele vai ficar bom... Ele vai ficar bom... 

Mas, afinal de contas, pensou Samantha, fazendo justiça ao marido, como saber se vai acontecer isso ou aquilo com aquela gente ali colocando máscaras e enfiando agulhas? Parecia que estavam tentando salvar Barry, e nenhum deles ficou sabendo que era tudo em vão até que a jovem médica veio andando na direção de Mary lá no hospital. Samantha ainda podia ver, com uma nitidez assustadora, o rosto vulnerável, petrificado de Mary e a expressão da moça de óculos, cabelo liso e jaleco branco: tranquila, embora um tanto cautelosa... Aquele tipo de coisa vive aparecendo nos seriados da televisão, mas quando é de verdade...

— De jeito nenhum — dizia Miles. — Gavin só jogava squash com ele às quintas-feiras.

— E, aparentemente, estava tudo bem com ele?

— Claro! Ele arrasou com Gavin!

— Meu Deus! Isso é para você ver, sabe? Para você ver... Espere um pouco, a sua mãe quer lhe dar uma palavrinha.

Depois de uma pancada e de um outro barulhinho, ouviu-se a voz suave de Shirley na linha.

— Que coisa horrível, Miles — disse ela. — Você está bem?

Samantha foi tomar um gole de café, mas se atrapalhou um pouco: a bebida lhe escorreu pelos cantos da boca e ela enxugou o rosto e o peito com a manga do robe. Miles já estava com aquela voz que geralmente usava quando falava com a mãe: mais profunda que de costume, uma voz do tipo nada-me-abala, vigorosa e pragmática. Às vezes, especialmente quando bebia, Samantha imitava as conversas entre mãe e filho. “Não se preocupe, mamãe. Miles está aqui. O seu soldadinho.” “Você é maravilhoso, querido: tão grande, tão corajoso, tão inteligente.” Recentemente, ela tinha feito essa imitação uma ou duas vezes na frente de outras pessoas, deixando o marido chateado e na defensiva, embora fingisse achar graça. Da última vez, tiveram até uma briga no carro, voltando para casa.

— Vocês foram junto com Mary para o hospital? — indagou Shirley ao telefone.

Não, pensou Samantha. No meio do caminho ficamos de saco cheio e pedimos para saltar. 

— Era o mínimo que podíamos fazer. Gostaria de poder ter feito mais.

Samantha se levantou e foi até onde estava a torradeira.

— Tenho certeza de que Mary ficou muito agradecida — disse Shirley. Samantha fez um barulhão pegando o pão e enfiando quatro pedaços nas fendas do aparelho. A voz de Miles já estava praticamente normal.

— Bom, quando os médicos vieram dizer... ou melhor, confirmar que ele estava morto, Mary quis chamar Colin e Tessa Wall. Sam ligou para eles. Esperamos até que chegassem e, só então, viemos embora.

— Que sorte a dela vocês estarem lá — disse Shirley. — Papai quer falar mais uma coisa, Miles. Vou passar o telefone para ele. Nos falamos mais tarde.

— Nos falamos mais tarde — murmurou Samantha, dirigindo-se à chaleira e balançando a cabeça. No reflexo distorcido, via o próprio rosto inchado, depois da noite em claro, e os olhos castanho-escuros estavam vermelhos. Na pressa de estar presente quando Miles desse a notícia a Howard, ela tinha se descuidado e passado a loção autobronzeadora nas pálpebras também.

— Por que você e Sam não vêm até aqui hoje à noite? — indagou Howard aos brados. — Não, espere aí... Mamãe está dizendo que vamos jogar bridge com os Bulgen. Amanhã, então. Venham jantar. Lá pelas sete.

— Pode ser — disse Miles, dando uma olhada para a mulher. — Tenho que ver se Sam já marcou alguma coisa.

Ela não deu qualquer sinal indicando se queria ir ou não. Uma estranha sensação de anticlímax se espalhou pela cozinha quando Miles desligou.

— Eles não conseguem acreditar — observou ele, como se Samantha não tivesse ouvido a conversa toda.

Comeram as torradas e tomaram uma caneca de café fresco em silêncio. Parte da irritabilidade de Samantha foi desaparecendo enquanto ela mastigava. Lembrou que tinha acordado sobressaltada, pulando da cama no quarto ainda escuro àquela hora da manhã, e que tinha se sentido absurdamente aliviada e agradecida por ver Miles ali ao seu lado, grandalhão e barrigudo, com cheiro de vetiver e ranço de suor. Depois, se imaginou contando aos fregueses da loja que um homem tinha caído morto bem na sua frente, e falando também da corrida desabalada na ambulância até o hospital. Pensou em várias maneiras de descrever os detalhes daquele trajeto e a cena apoteótica com a médica. A juventude daquela mulher tão segura de si fazia tudo aquilo parecer ainda pior. Eles tinham que encarregar alguém mais velho de dar uma notícia como aquela... Depois, para melhorar ainda mais o seu ânimo, lembrou que tinha um encontro com o representante de vendas da Champêtre no dia seguinte e que o sujeito tinha sido bem agradável, meio que flertando com ela por telefone.

— É melhor eu ir andando — disse Miles, tomando um último gole de café e com os olhos pregados no céu, que ia ficando mais claro do outro lado da vidraça. Soltou um profundo suspiro e deu uns tapinhas no ombro da mulher quando passou junto dela para levar a caneca e o prato vazios até a lava-louça. — Deus do céu! Isso faz a gente repensar um monte de coisas, não é mesmo? — disse ele. E saiu da cozinha balançando a cabeça com aquele cabelo curtinho que começava a ficar grisalho.

Às vezes, Samantha achava o marido absurdamente e cada vez mais idiota. De quando em quando, porém, gostava daquele seu ar pomposo exatamente como gostava, nas ocasiões mais formais, de usar chapéu. Afinal de contas, assumir um ar solene e um tanto nobre era a atitude mais adequada para aquela manhã. Terminou de comer a torrada e guardou as coisas do café da manhã aperfeiçoando mentalmente a história que pretendia contar à moça que trabalhava com ela.

 

II

 

— Barry Fairbrother morreu — exclamou Ruth Price, ofegante.

Tinha subido o gélido caminho do jardim quase correndo para ter mais alguns minutos com o marido antes de ele sair para o trabalho. Nem parou para tirar o casaco na varanda: ainda de luvas e cachecol, entrou na cozinha onde Simon e os filhos adolescentes estavam tomando café.

O marido ficou imóvel, com a torrada a caminho da boca, e, depois, tornou a botá-la no prato com uma lentidão teatral. Os dois garotos, ambos de uniforme, olharam para o pai e para a mãe, não muito interessados.

— Acham que foi aneurisma — disse Ruth, ainda meio sem fôlego, tirando as luvas dedo a dedo, desenrolando o cachecol do pescoço e desabotoando o casaco. Era uma mulher magra, de cabelo castanho-escuro, com uns olhos cansados e melancólicos. Aquele uniforme de enfermeira todo azul lhe caía muito bem. — Foi lá no estacionamento do clube de golfe. Sam e Miles Mollison o levaram para o hospital. Depois, Colin e Tessa Wall chegaram...

Às pressas, foi até a entrada da casa para pendurar as suas coisas e voltou bem a tempo de responder à pergunta que Simon tinha feito aos gritos.

— O que é uma aneurisma?

Um aneurisma. É o rompimento de uma artéria no cérebro.

Com movimentos sempre rápidos, aproximou-se da chaleira, ligou o fogo e começou a limpar os farelos de pão espalhados pela bancada da pia e em torno da torradeira, falando sem parar.

— Deve ter tido uma hemorragia cerebral fortíssima. Coitadinha da mulher dele... Está absolutamente arrasada...

Abalada, Ruth ficou olhando a brancura irregular do seu gramado coberto de geada, a abadia do outro lado do vale, aquele esqueleto que se erguia abrupto contra o céu de um rosa e de um cinza desbotados, a visão panorâmica que era a glória de Hilltop House e que se tinha da janela da sua cozinha. Pagford, que à noite não passava de um punhado de luzinhas piscando lá embaixo no escuro, estava agora emergindo à claridade gélida do sol. Ruth não via nada daquilo: a sua cabeça ainda estava no hospital, vendo Mary sair do quarto onde Barry estava deitado e de onde já haviam sido removidos todos aqueles aparelhos, tentativas inúteis de salvar a sua vida. A piedade de Ruth Price fluía mais espontânea e mais sincera com relação àqueles que acreditava serem como ela mesma. “Não, não, não, não”, gemia Mary, e aquela negação instintiva ecoou lá dentro de Ruth, porque a cena representava uma visão de si mesma em situação idêntica...

Mal conseguindo aguentar aquela lembrança, voltou os olhos para Simon. O cabelo castanho-claro do marido ainda era espesso, o seu porte era quase tão rijo quanto fora aos vinte anos, e as rugas nos cantos dos olhos ainda tinham lá o seu charme, mas, para Ruth, a retomada do trabalho como enfermeira depois de uma longa pausa voltou a confrontá-la com as mil e uma maneiras pelas quais o corpo humano pode deixar de funcionar direito. Envolvia-se menos quando era mais moça; agora compreendia a sorte que tinham de estar todos vivos.

— Não deu para fazer nada? — perguntou Simon. — Não podiam, sei lá, dar uns pontos?

Havia frustração na sua voz, como se achasse que a medicina tinha vindo, mais uma vez, atrapalhar tudo, recusando-se a fazer as coisas mais simples e óbvias.

Andrew estremeceu com um prazer selvagem. Ultimamente, vinha reparando que o pai estava com mania de contestar a mulher: sempre que ela usava termos médicos, lá vinha ele com sugestões broncas, ignorantes. Hemorragia cerebral. Dar uns pontos. A sua mãe não se dava conta do que o marido estava fazendo. Como sempre, aliás. E Andrew continuou a comer o seu cereal, morrendo de ódio.

— Quando ele deu entrada no hospital já era tarde demais — replicou Ruth, pondo uns saquinhos de chá dentro do bule. — Ele morreu na ambulância, pouco antes de chegarem.

— Que merda! — exclamou Simon. — Que idade ele tinha? Quarenta?

Mas Ruth não estava prestando atenção.

— Paul — disse ela —, o seu cabelo está todo embaraçado na parte de trás. Você se penteou?

Tirou uma escova da bolsa e a pôs na mão do filho caçula.

— Ele não teve nenhum sintoma? Nada? — perguntou Simon, enquanto Paul escovava o cabelo rebelde.

— Parece que vinha tendo dor de cabeça há uns dois dias.

— Ah! — exclamou Simon, mastigando uma torrada. — E não deu bola?

— Claro. Não achou que fosse nada grave.

Simon engoliu a torrada.

— Está vendo só? — disse ele, com ares de quem sabe das coisas. — Você precisa se cuidar.

Ah, quanta sabedoria, pensou Andrew com o maior desprezo, quanta profundidade. Quer dizer que a culpa era toda de Barry Fairbrother se o cérebro dele tinha estourado... Seu babaca pretensioso, disse ele, xingando o pai alto e bom som dentro da própria cabeça.

— Ah, e por falar nisso — acrescentou Simon, apontando com a faca para o filho mais velho —, ele vai começar a trabalhar. O nosso amigo Cara de Pizza.

Atônita, Ruth se voltou para o filho. As espinhas se destacavam, lívidas e lustrosas, no rosto todo vermelho do garoto, que olhava fixo para a tigela cheia daquela papa bege.

— É isso mesmo — prosseguiu Simon — Esse merdinha preguiçoso vai começar a ganhar algum dinheiro. Se quer fumar, tem que arcar com as próprias despesas. Acabou essa história de mesada.

Andrew! — exclamou Ruth em tom de lamento. — Você não andou...?

— Andou, sim. Peguei ele lá no galpão de lenha — disse Simon, com uma expressão que destilava desprezo.

Andrew!

— Da gente, ele não tem mais um tostão. Quer cigarro? Pois que compre... — provocou o pai.

— Mas tínhamos decidido... — principiou Ruth, chorosa. — Tínhamos decidido... Os exames estão chegando...

— Pelo jeito como ele se ferrou no simulado, já vai ser uma sorte se conseguir passar. Talvez seja melhor passar antes pelo McDonald’s, para ir ganhando experiência — disse Simon, levantando-se, empurrando a cadeira, deliciando-se com a visão do filho sentado ali de cabeça baixa, deixando ver apenas o contorno do rosto inchado pela acne. — Porque nós é que não vamos ficar sustentando um repetente, viu, cara? É agora ou nunca!

— Ah, Simon — disse Ruth, em tom de reprovação.

O que foi? — perguntou Simon, aproximando-se da mulher com passadas fortes. Ruth se encolheu de encontro à pia. A escova de plástico rosa caiu da mão de Paul. — Não vou ficar financiando o vício desse babaca! Que cara de pau, porra! Fumando lá na merda do meu galpão!

E bateu no próprio peito ao dizer a palavra “meu”. Ao ouvir o ruído surdo daquela pancada, Ruth fez uma careta.

— Quando tinha a idade desse merdinha, já trazia um salário para casa. Se ele quer fumar, que compre os seus próprios cigarros, certo? Certo?

O rosto de Simon estava agora a uns quinze centímetros do de Ruth.

— Certo, Simon — disse ela bem baixinho.

Parecia até que as entranhas de Andrew tinham se derretido. Menos de dez dias atrás, havia feito um juramento; será que tinha chegado a hora? Assim tão cedo? Mas o seu pai se afastou da sua mãe e saiu da cozinha, rumo à porta da rua. Ruth, Andrew e Paul ficaram ali, praticamente imóveis. Era como se tivessem prometido não se mexer na ausência dele.

— Encheu o tanque? — gritou Simon, como sempre fazia quando a mulher dava plantão no turno da noite.

— Enchi — respondeu ela, também gritando, louca por um pouco de leveza, de normalidade.

A porta da frente fez um barulho metálico e bateu.

Ruth tratou de se ocupar com o bule, esperando que aquele clima inflado murchasse até voltar às proporções normais. Só falou quando Andrew estava quase saindo da cozinha para ir escovar os dentes.

— Ele está preocupado com você, Andrew. Com a sua saúde.

Preocupado o cacete! Esse babaca! 

Mentalmente, Andrew rebatia com palavrões os palavrões que o pai dizia. Mentalmente, enfrentava Simon de igual para igual.

Em voz alta, para a mãe, disse:

— Claro...

 

III

 

O Evertree Crescent era uma meia-lua de chalés dos anos 1930, que ficava a dois minutos da praça principal de Pagford. No número trinta e seis, numa casa alugada há muito mais tempo que qualquer outra da rua, Shirley Mollison estava na cama, recostada nos travesseiros, tomando o chá que o marido havia lhe trazido. O reflexo que a encarava das portas espelhadas do armário embutido era um tanto esfumado, o que se devia em parte ao fato de ela não estar de óculos, em parte à claridade branda que penetrava no quarto através das cortinas com estampa floral. A essa luz lisonjeira, enevoada, o rosto enrugado, em tons de rosa e branco, que surgia sob o cabelo curto bem grisalho era como o de um querubim.

No quarto, mal cabiam a cama de solteiro de Shirley e a de casal de Howard, juntas, meio entulhadas, como gêmeas não idênticas. O colchão de Howard, que ainda trazia a vigorosa marca do seu corpo, estava vazio. Dava para ouvir o barulhinho do chuveiro dali de onde Shirley e o seu reflexo rosado estavam sentados, uma defronte do outro, saboreando a notícia que ainda parecia efervescer no ar como champanhe borbulhante.

Barry Fairbrother tinha morrido. Batido as botas. Acabado. Nenhum acontecimento de importância nacional, nem guerra, nem crise do mercado financeiro ou ataque terrorista teria sido capaz de deixar Shirley naquele estado de espanto, de ávido interesse e de especulação febril que agora a consumia.

Detestava Barry Fairbrother. Ela e o marido, que em geral concordavam inteiramente quanto a amizades e inimizades, divergiam um pouco nesse caso. Por vezes, Howard se confessou cativado pelo homenzinho barbudo que lhe fazia uma oposição tão ferrenha nas mesas compridas e arranhadas do salão da igreja. Ela, porém, não fazia diferença alguma entre o aspecto político e o pessoal. Barry tinha enfrentado Howard naquilo que o seu marido mais desejou na vida, o que bastou para fazer dele, aos olhos de Shirley, o pior dos inimigos.

A lealdade ao marido era o principal motivo daquela aversão apaixonada, mas não o único. Os instintos de Shirley com relação às pessoas eram apuradíssimos numa única direção, como um cachorro treinado para farejar drogas. Estava sempre pronta para detectar condescendência, e há muito havia sentido o seu cheiro nas atitudes de Barry Fairbrother e dos seus comparsas no Conselho. Os Fairbrother da vida partiam do pressuposto de que, por terem formação universitária, eram melhores que pessoas como ela e Howard; que as suas opiniões eram mais importantes. Pois bem, a sua arrogância tinha sofrido um duro golpe hoje. A morte súbita de Fairbrother veio reforçar uma convicção que Shirley nutria há tempos: independentemente do que ele e os seus seguidores pudessem pensar, Fairbrother sempre foi uma criatura inferior ao seu marido, e mais fraca, pois Howard, além de todas as outras virtudes que possuía, tinha conseguido sobreviver a um ataque cardíaco sete anos atrás.

(Em momento algum Shirley achou que Howard fosse morrer, nem mesmo quando ele estava na sala de cirurgia. Para ela, a presença de Howard neste mundo era um fato inquestionável, como a luz do sol e o oxigênio. Disse isso inúmeras vezes, depois desse episódio, quando amigos e vizinhos falavam de gente que escapava como que por milagre, da sorte que tinham por contar com uma unidade cardiológica assim tão pertinho, em Yarvil, e comentavam como ela devia ter ficado terrivelmente preocupada.

— Sempre soube que ele ia se safar — dizia ela, na maior tranquilidade. — Nunca duvidei disso.

E lá estava ele, tão saudável como sempre, ao passo que Fairbrother estava no necrotério. Dito e feito.)

No entusiasmo daquelas primeiras horas da manhã, Shirley se lembrou do dia seguinte ao nascimento do filho Miles. Tinha se sentado na cama, anos e anos atrás, exatamente como estava agora, com a luz entrando pela janela da enfermaria, segurando uma xícara de chá que alguém tinha preparado para ela, esperando que lhe trouxessem o seu lindo bebê para mamar. Nascimento e morte: era a mesma consciência de existência iluminada e do destaque da sua própria importância. A notícia da morte súbita de Barry Fairbrother jazia no seu colo como um recém-nascido rechonchudo a ser exibido para todos os seus conhecidos. E ela seria a fonte, por ter sido a primeira, ou quase, a ficar sabendo.

Nada daquele prazer que fervia e borbulhava dentro dela tinha se manifestado enquanto Howard estava no quarto. Antes de ele ir tomar banho, os dois se limitaram a fazer os comentários adequados nesses casos de morte súbita. É claro que, enquanto ficaram passando aquelas palavras e frases-padrão de um lado para o outro, como se fossem as contas de um ábaco, Shirley sabia perfeitamente que o marido devia estar tão perto do êxtase quanto ela própria. No entanto, expressar tais sentimentos em voz alta, quando a notícia da morte ainda estava fresquinha, pairando ali no ar, teria sido praticamente como dançar nu e gritar obscenidades, e tanto Howard quanto Shirley estavam sempre envergando uma camada invisível de decoro da qual nunca se desfaziam.

De repente, outra ideia feliz lhe passou pela cabeça. Shirley deixou a xícara e o pires na mesinha de cabeceira, levantou da cama, vestiu o robe de chenile, pôs os óculos e saiu descalça pelo corredor para bater à porta do banheiro.

— Howard?

A resposta foi um som interrogativo que suplantou o ruído regular do chuveiro.

— Acha que eu devia postar alguma coisa no site? Sobre Fairbrother?

— Boa ideia — gritou ele, lá de dentro, depois de refletir por um instante. — Excelente ideia.

E lá se foi a mulher para o escritório. O cômodo havia sido antes o menor quarto da casa e estava vazio há tempos, desde que a sua filha Patricia foi para Londres e raras vezes voltou a ser mencionada.

Shirley se orgulhava imensamente das suas habilidades na internet. Tinha feito um curso noturno em Yarvil, dez anos atrás, sendo uma das alunas mais velhas da turma e a mais lenta. Mesmo assim, perseverou, decidida a ser a administradora do novo site do Conselho Distrital de Pagford, que estava empolgando a todos. Fez o login e abriu a página da instituição.

A breve declaração saiu com tanta facilidade que parecia até que os seus dedos estavam redigindo aquilo por conta própria.

 

Conselheiro Barry Fairbrother

É com grande pesar que comunicamos o falecimento do conselheiro Barry Fairbrother. Voltamos os nossos pensamentos para a sua família nesse momento tão difícil.

 

Releu as poucas frases com todo o cuidado, teclou “Enter” e viu o texto aparecer na área de mensagens.

A Rainha mandou que a bandeira fosse hasteada a meio mastro no Palácio de Buckingham quando a princesa Diana morreu. Sua Majestade ocupava um lugar bem especial na vida interior de Shirley. Contemplando a mensagem ali na tela, ficou satisfeita e feliz por ter feito a coisa certa. Seguir o exemplo dos melhores...

Saiu da área de mensagens da página do Conselho e entrou no seu site de medicina favorito. Escrupulosamente, digitou as palavras “cérebro” e “morte” na caixa de pesquisa.

Havia inúmeras sugestões. Shirley foi passando aquelas diversas possibilidades, com os olhos plácidos percorrendo as páginas de alto a baixo, perguntando-se a qual daquelas condições fatais, algumas de nomes impronunciáveis, devia a felicidade que sentia agora. Tinha adquirido algum interesse por assuntos médicos desde que começou a trabalhar como voluntária no Hospital Geral South West e, às vezes, chegava mesmo a fazer diagnósticos para os amigos.

Mas hoje de manhã era impossível se concentrar naquelas palavras compridas e naqueles sintomas: a sua cabeça só pensava em continuar a espalhar a notícia, e, a essa altura, ela já estava reunindo e remanejando toda uma lista de números de telefone. Será que Aubrey e Julia já estavam sabendo? E o que diriam? Será que Howard deixaria que ela desse a notícia a Maureen ou ia querer ter ele mesmo esse prazer?

Tudo aquilo era imensamente empolgante.

 

IV

 

Andrew Price fechou a porta da casa, que era pequena e branca, e foi atrás do irmão, descendo a rampa do jardim, que hoje estalava por causa do gelo, e que ia dar no portão de metal gelado além do qual ficava a rua. Nenhum dos garotos se dignou a olhar para a vista já tão conhecida que se estendia mais abaixo: o minúsculo vilarejo de Pagford encravado no espaço contido entre três colinas, uma das quais encimada pelo que restava da abadia do século XII. Um riozinho estreito serpenteava ao pé da colina e cortava o vilarejo, onde era atravessado por uma ponte de pedra que parecia até de brinquedo. Aquilo tudo era tão sem graça quanto um cenário pintado para os dois irmãos. Andrew achava o fim do mundo o jeito como o seu pai, nas raras ocasiões em que recebiam visitas, parecia se vangloriar da paisagem, como se ele próprio a tivesse planejado e construído. Recentemente, o garoto percebera que preferiria mil vezes um cenário de asfalto, janelas quebradas e grafites. Sonhava com Londres e com uma vida que fizesse algum sentido.

Os dois irmãos foram andando até o fim da rua e pararam na esquina da estrada mais larga. Andrew enfiou a mão pelos arbustos da cerca viva, tateou por alguns instantes e tirou dali um maço de Benson & Hedges pela metade e uma caixa de fósforos ligeiramente úmida. Depois de algumas tentativas inúteis, já que a cabeça do fósforo se desmanchava sempre que ele riscava um, o garoto conseguiu acender o cigarro e deu duas ou três tragadas profundas. O ruído do motor do ônibus escolar veio romper aquela quietude. Com todo o cuidado, Andrew apagou o cigarro e enfiou o que tinha sobrado no maço.

Quando chegava àquela esquina de Hilltop House, o ônibus já vinha trazendo dois terços dos seus ocupantes, pois passava antes pelas fazendas e pelas casas dos arredores. Como sempre, os dois irmãos sentaram em lugares separados, cada um deles com um assento vago ao seu lado, e se viraram para olhar pela janela enquanto o veículo ia descendo, ruidoso e cambaleante, a caminho de Pagford.

Ao pé da colina onde moravam, havia uma casa com um jardim triangular. Em geral, os quatro Fairbrother ficavam esperando no portão da frente, mas hoje não tinha ninguém ali. Todas as cortinas estavam fechadas. Por que será que as pessoas têm o hábito de ficar sentadas no escuro quando alguém morre?, perguntou-se Andrew.

Umas semanas atrás, ele tinha saído com Niamh Fairbrother, uma das filhas gêmeas de Barry, para ir a uma festa no auditório da escola. Depois disso, a garota passou um tempo com a mania de andar atrás dele. Os pais de Andrew mal conheciam os Fairbrother. Aliás, Simon e Ruth praticamente não tinham amigos, mas pareciam simpatizar um pouquinho com Barry, que tinha sido gerente da minúscula filial do único banco que ainda resistia no vilarejo. Vira e mexe, o sobrenome Fairbrother aparecia ligado a coisas como o Conselho Distrital, peças encenadas no teatro local e a corrida anual da igreja. Mas Andrew não se interessava a mínima por esses assuntos, e os seus pais também não participavam de nada disso, a não ser comprando uma rifa vez por outra.

Quando o ônibus virou à esquerda e começou a descer a Church Row, passando pelos casarões vitorianos que iam formando uns patamares ladeira abaixo, Andrew se deu ao luxo de criar toda uma fantasia em que seu pai caía morto, atingido pelos disparos de um atirador invisível. O rapaz se via dando uns tapinhas nas costas da mãe, que soluçava, e telefonando para a funerária. Cigarro na boca, encomendava o caixão mais barato que existia.

Os três Jawanda — Jaswant, Sukhvinder e Rajpal — pegaram o ônibus no final da Church Row. Andrew tinha feito questão de escolher um lugar atrás de um banco vazio e torceu para que Sukhvinder viesse sentar à sua frente, não pela garota (Bola, o seu melhor amigo, a chamava de P&B, forma reduzida de “Peito & Bigode”), mas porque Ela quase sempre escolhia sentar ao lado de Sukhvinder. E fosse porque os seus poderes telepáticos estivessem particularmente afiados naquela manhã ou por qualquer outro motivo, Sukhvinder veio mesmo se sentar no banco da frente. Radiante, Andrew ficou olhando para o vidro sujo da janela e ajeitou bem a mochila no colo para esconder a ereção provocada pelos solavancos regulares do ônibus.

A sua ansiedade ia aumentando a cada novo sacolejar, enquanto o veículo grandalhão abria caminho pelas ruelas estreitas, fazendo curvas fechadas para contornar a praça do vilarejo e rumando para a esquina da rua Dela.

Andrew nunca tinha sentido um interesse assim tão grande por uma garota. Ela tinha acabado de chegar. Que hora estranha para mudar de escola: no último trimestre, já tão perto dos exames finais... Chamava-se Gaia, um nome perfeito, pois o garoto nunca o tinha ouvido antes, assim como nunca tinha visto alguém como ela. Pegou o ônibus, certa manhã, parecendo uma simples declaração dos píncaros sublimes que a natureza pode alcançar, e veio sentar dois bancos à sua frente. E ele ficou fascinado, olhando para a perfeição daqueles ombros e da parte de trás daquela cabeça.

O seu cabelo comprido, de um castanho-acobreado, descia em ondas largas e lhe batia pouco abaixo dos ombros; o nariz, absolutamente certinho, era pequeno e fino, destacando ainda mais a boca clara, de lábios cheios, provocadores; os olhos, bem separados, com cílios espessos, eram de um castanho-claro com umas manchinhas esverdeadas, lembrando uma daquelas maçãs golden. Andrew nunca a tinha visto maquiada, e a sua pele não tinha nenhuma mancha ou sarda. O rosto de Gaia era uma síntese de perfeita simetria e proporção fora do comum; podia passar horas e horas olhando para ela, tentando descobrir por que era tão fascinante... Ainda na semana passada, ele voltou para casa depois de dois tempos de aula de biologia, quando, por uma divina disposição aleatória de carteiras e de cabeças, conseguiu olhar para a garota quase o tempo todo. Mais tarde, a salvo no seu quarto, escreveu (depois de meia hora olhando para a parede e de um tempo se masturbando) “beleza é geometria”. Rasgou a folha de papel imediatamente e, sempre que se lembrava disso, sentia-se um idiota. Mesmo assim, não deixava de ser verdade. A beleza de Gaia era uma questão de pequenos ajustes com relação a um padrão, e dessa operação resultava uma harmonia de tirar o fôlego!

Ela ia entrar no ônibus a qualquer momento e, se viesse sentar ao lado daquela chata e mal-humorada da Sukhvinder, como geralmente fazia, ia ficar tão perto que poderia até sentir que ele cheirava a nicotina. Andrew gostava de ver objetos inanimados reagirem ao corpo dela; gostava de ver o assento do banco ceder um pouco quando Gaia atirava o seu peso sobre ele, e adorava ver aquela massa castanha-acobreada fazer uma curva ao encostar na barra de ferro do alto do banco.

O motorista reduziu a velocidade, e Andrew desviou os olhos da porta, fingindo estar perdido em pensamentos. Só ia olhar depois que ela entrasse, como se tivesse acabado de perceber que o ônibus havia parado. Aí, sim, olharia para ela; talvez até a cumprimentasse com um aceno de cabeça. Ficou esperando ouvir as portas se abrindo, mas a vibração suave do motor não foi interrompida por aquele barulho tão conhecido.

Andrew olhou então pela janela e não viu nada além da Hope Street, uma rua pequena e feiosa, com duas fileiras de casinhas geminadas. O motorista se inclinou para a frente, buscando ver se a garota estaria vindo. O garoto teve vontade de mandar que ele esperasse, já que, ainda na semana passada, ela saiu às pressas de uma daquelas casinhas e veio correndo pela calçada (pôde observar a cena sem problemas porque todos ali dentro também estavam olhando). A visão de Gaia correndo era o bastante para ocupar os seus pensamentos por horas a fio, mas o motorista manejou o grande volante e o ônibus seguiu o seu caminho. Andrew voltou a olhar o vidro sujo da janela, sentindo uma dor no coração e no saco.

 

V

 

No passado, a Hope Street havia sido uma vila operária. No banheiro da casa de número dez, Gavin Hughes se barbeava lentamente, com um cuidado desnecessário. Ele era tão claro e tinha uma barba tão rala que esse ritual só precisava mesmo ser feito duas vezes por semana. Mas aquele banheiro gelado e meio sujo era o seu único refúgio. Se ficasse enrolando ali dentro até as oito horas, poderia perfeitamente dizer que precisava sair correndo para o trabalho. Estava morrendo de medo de ter de conversar com Kay.

Ontem à noite, conseguiu evitar qualquer conversa começando a transa mais longa e criativa que os dois haviam tido desde os primeiríssimos dias da relação. Kay reagiu imediatamente e com um entusiasmo que chegava a dar nervoso: passava de uma posição a outra; abria as pernas fortes e roliças; contorcia-se como uma acrobata eslava, o que ela aliás bem poderia ser, com aquela pele dourada e o cabelo escuro cortado bem curtinho. Já era tarde demais quando Gavin percebeu que ela estava interpretando aquela sua atitude tão pouco usual como uma confissão tácita de tudo aquilo que ele estava decidido a não dizer. Ela o beijou com avidez. Quando começaram a ficar juntos, ele achou os seus beijos molhados e profundos muito eróticos; agora, achava-os levemente repulsivos. Demorou muito para chegar ao clímax, pois o horror que sentia pelo que havia começado estava sempre ameaçando atrapalhar a sua ereção. E até isso acabou conspirando contra ele: Kay pareceu considerar aquele vigor nada comum uma verdadeira demonstração de virtuosismo.

Quando enfim terminaram, ela se aninhou bem junto dele, no escuro, e acariciou os seus cabelos por alguns instantes. Infeliz, Gavin ficou só olhando para o nada, consciente de que, depois de fazer tantos planos vagos para afrouxar aquelas amarras, tinha acabado por reforçá-las involuntariamente. Kay adormeceu, e ele ficou ali deitado, com um dos braços preso sob o corpo dela, sentindo a desagradável sensação do lençol úmido grudando na sua coxa, naquele velho colchão de molas todo irregular. Tudo o que queria era ter coragem de ser um filho da puta, sair de fininho e nunca mais voltar.

O banheiro de Kay tinha cheiro de mofo e esponjas molhadas. Havia um bolinho de cabelos num dos cantos da pequena banheira. A tinta das paredes estava descascando.

— Isso está precisando de uma obra — disse ela.

Gavin teve o cuidado de não se oferecer para ajudar. As coisas que não tinha lhe dito eram o seu talismã, a sua salvaguarda. Armazenou todas elas na cabeça e vivia repassando aquilo tudo, como se desfiasse as contas de um rosário. Nunca tinha dito a palavra “amor”. Nunca tinha falado em casamento. Nunca tinha lhe pedido que fosse morar em Pagford. Apesar de tudo, porém, ela estava ali e, sabe-se lá como, fazia com que ele se sentisse responsável.

O seu rosto também o encarou do espelho manchado. Tinha umas sombras arroxeadas debaixo dos olhos, e o cabelo louro que começava a rarear estava quebradiço e ressecado. A lâmpada sem luminária que pendia do teto iluminava aquele rosto frágil e comprido com uma crueldade fria e meticulosa.

Trinta e quatro anos, pensou ele, e pareço ter no mínimo uns quarenta.

Ergueu a lâmina e, com todo o cuidado, raspou aqueles dois pelos mais grossos que nasciam de ambos os lados do seu proeminente pomo de adão.

Esmurraram a porta. A mão de Gavin escorregou, e o sangue começou a escorrer do seu pescoço magro, indo manchar a camisa branca limpinha.

— O seu namorado ainda tá no banheiro — berrou uma voz feminina. — Vou chegar atrasada!

— Já acabei! — gritou o rapaz.

O corte estava doendo, mas e daí? Agora tinha uma desculpa perfeita: Veja só o que a sua filha fez! Vou ter que dar um pulinho em casa para trocar de camisa antes de ir para o trabalho. Quase contente, passou a mão na gravata e no paletó que tinha pendurado no cabide atrás da porta e abriu o ferrolho.

Gaia entrou às pressas, bateu a porta e a trancou, visivelmente furiosa. Parado ali no minúsculo patamar, de onde se sentia um cheiro de borracha queimada, Gavin se lembrou da cabeceira da cama batendo na parede na noite anterior, dos rangidos do móvel de pinho vagabundo, dos gemidos e dos gritos de Kay. Às vezes chegava a esquecer que a filha dela estava em casa...

Desceu correndo. Kay disse que estava planejando mandar lixar e lustrar aquela escada sem carpete, mas ele duvidava muito que ela pusesse esse plano em prática... O apartamento dela em Londres era bem caído e em péssimo estado de conservação. De qualquer forma, Gavin estava convencido de que a moça pretendia ir morar com ele logo, logo, coisa que não ia permitir. Aquele era o último bastião, e nesse ponto, se preciso fosse, ia resistir com todas as suas forças.

— O que aconteceu? — gritou ela, vendo a mancha de sangue na camisa. Estava usando aquele quimono vermelho vagabundo que Gavin tanto detestava, mas que lhe caía muito bem.

— Gaia esmurrou a porta e me assustei. Tenho que passar em casa para trocar de camisa.

— Ah, mas já preparei o seu café! — replicou ela mais que depressa.

Gavin se deu conta de que o tal cheiro de borracha queimada vinha, na verdade, dos ovos mexidos. Eles pareciam anêmicos e cozidos demais.

— Não dá, Kay. Preciso trocar de camisa. Logo cedo, tenho...

Mas a moça já estava pondo aquela maçaroca nos pratos.

— Cinco minutos não vão fazer diferença...

No bolso do paletó, o celular tocou bem alto, e ele o pegou imediatamente perguntando-se se teria a sorte de poder alegar algum chamado urgente.

— Meu Deus! — exclamou, genuinamente horrorizado.

— O que foi?

— Barry. Barry Fairbrother! Ele... Que merda! Ele... morreu! É uma mensagem de Miles. Meu Deus! Que merda, meu Deus!

Kay soltou a colher de pau.

— Quem é Barry Fairbrother?

— Um cara com quem jogo squash. Ele só tinha quarenta e quatro anos! Meu Deus!

Leu mais uma vez a mensagem. Kay ficou olhando, sem entender nada. Sabia que Miles era sócio de Gavin no escritório de advocacia, mas ela nunca tinha sido apresentada a ele. Para ela, Barry Fairbrother era apenas um nome.

Ouviu-se um barulhão vindo lá da escada: era Gaia, descendo a toda.

— Ovos! — exclamou a garota, parada na porta da cozinha. — Toda manhã é a mesma coisa! Não, obrigada. E, graças a ele — acrescentou, lançando um olhar furioso para a nuca de Gavin —, com certeza já perdi a droga do ônibus.

— Bom, se não ficasse tanto tempo se penteando... — gritou Kay para a filha, que já estava indo embora. Gaia nem respondeu. Disparou pelo corredor, esbarrando nas paredes com a mochila, e saiu batendo a porta da frente.

— Tenho que ir, Kay — disse Gavin.

— Mas já está tudo pronto. Você pode tomar o seu café antes...

— Preciso trocar de camisa. E... Merda! Fui eu que preparei o testamento de Barry. Vou ter que cuidar disso. Não, sinto muito, mas preciso ir mesmo. Não dá para acreditar — acrescentou, relendo a mensagem de Miles. — Não dá para acreditar. Nós dois jogamos squash nessa quinta-feira agora! Não dá... Meu Deus!

Um homem tinha morrido. Não havia nada que ela pudesse dizer; não sem acabar se sentindo culpada. Gavin deu um beijo rápido naquela boca que não reagiu e foi embora, atravessando o corredor estreito e escuro.

— Vamos nos ver...?

— Ligo mais tarde — gritou ele, fingindo que não tinha ouvido nada.

Atravessou a rua correndo para pegar o carro, engolindo aquele ar gélido e levando na cabeça a ideia da morte de Barry como se fosse um frasco de algum líquido volátil que ele não ousava sacudir. Quando virou a chave na ignição, pensou nas gêmeas de Barry chorando, deitadas de bruços na cama-beliche. Já as tinha visto deitadas ali, uma em cima, a outra embaixo, jogando Nintendo DS, quando passou pela porta do quarto na última vez que tinha ido jantar lá.

Os Fairbrother eram o casal mais unido que jamais vira. Nunca voltaria a comer naquela casa. Vivia dizendo a Barry que ele era um homem de sorte. Mas, pelo visto, nem tanto...

Alguém vinha pela calçada na sua direção; apavorado, achando que fosse Gaia vindo brigar com ele ou lhe pedir carona, deu marcha a ré com tanta pressa que bateu no carro estacionado atrás: era o velho Vauxhall Corsa de Kay. Quando a tal pessoa chegou diante da janela do carro, Gavin viu que era uma velha esquálida e meio manca com uns chinelinhos de pano. Suando, girou o volante e saiu em disparada. Enquanto pisava no acelerador, deu uma olhada pelo retrovisor e viu Gaia entrando de volta na casa de Kay.

Não estava conseguindo pôr ar suficiente nos pulmões. Sentia um aperto no peito. Só então percebeu que Barry Fairbrother era o seu melhor amigo.

 

VI

 

O ônibus chegou a Fields, o bairro que crescia nos arredores da cidade de Yarvil. Eram umas casas de um cinza sujo, algumas com iniciais e obscenidades pichadas na fachada. Aqui e ali, uma janela vedada com tábuas; várias antenas parabólicas e mato crescido: nada que merecesse, por parte de Andrew, mais atenção do que ele dedicava às ruínas da abadia de Pagford reluzindo com os cristais de gelo. De início, o garoto havia ficado intrigado e intimidado por aquele bairro popular, mas há muito que a familiaridade tinha transformado tudo aquilo em algo banal.

As calçadas estavam repletas de crianças e adolescentes a caminho da escola, muitos usando só camisetas, apesar do frio. Andrew avistou Krystal Weedon. Lá ia ela, saltitante, dando gargalhadas escandalosas, no meio de um grupo de adolescentes de ambos os sexos. Tinha vários brincos em cada orelha, e, por cima do cós da calça de moletom usada bem abaixo da cintura, dava para ver perfeitamente o elástico da calcinha. Andrew conhecia Krystal desde a escola primária, a garota protagonizou várias das mais vivas lembranças da sua infância. Um dia, por exemplo, ela voltou do recreio com o uniforme molhado e os meninos começaram a gritar: “Krystal fez xixi! Krystal fez xixi!” Em vez de chorar, como fariam quase todas as meninas, a garotinha de cinco anos entrou na dança, rindo e gritando também: “Krystal fez xixi!” Então, baixou a calça, na frente da turma toda, e fingiu que estava fazendo mesmo. Andrew tinha a nítida lembrança daquela vulva rosada e sem pelos. Parecia até que o Papai Noel tinha se materializado no meio da turma. E ele também lembrava que a srta. Oates, vermelha como um pimentão, foi levando a menina para fora da sala.

Quando tinha uns doze anos e foi para a escola secundária, Krystal já era a garota mais desenvolvida da sua série. Um dia, ficou lá no fundo da sala, onde os alunos deviam deixar o exercício de matemática já feito e pegar a nova folha. Como tudo aquilo começou, Andrew (um dos últimos a acabar o exercício, como sempre) não fazia a mínima ideia, mas, quando chegou perto das pastas que continham as folhas de exercícios, cuidadosamente empilhadas em cima dos armários que ficavam lá atrás, viu que Rob Calder e Mark Richards estavam se revezando para segurar e apertar os seios da garota. A maioria dos outros garotos estava só olhando, eletrizada, com o rosto escondido atrás do livro posto de pé em cima da carteira; já as garotas, muitas delas vermelhas de vergonha, fingiam que não estavam vendo nada. Andrew percebeu que metade dos alunos da turma já tinha tido a sua vez e que todos esperavam que ele entrasse na brincadeira, coisa que queria e não queria fazer. Não eram os peitos de Krystal que o assustavam, mas o ar ousado, desafiador que havia no rosto da garota... Ficou morrendo de medo de fazer tudo errado. Quando o sr. Simmonds, o professor desligado e ineficaz, finalmente ergueu os olhos e disse “Vai ficar aí para sempre, Krystal? Pegue logo um exercício e volte para o seu lugar”, Andrew sentiu um alívio quase absoluto.

Embora andassem com pessoas diferentes há muito tempo, continuavam a ser da mesma turma na escola, portanto Andrew sabia que Krystal só aparecia nas aulas de vez em quando, faltava muito e estava quase sempre metida em alguma confusão. Não sabia o que era medo, como os garotos que chegavam à escola com tatuagens que eles próprios haviam feito, lábios cortados, cigarros e mil casos de drogas, de sexo fácil e de confrontos com a polícia.

A Escola Winterdown ficava bem no centro de Yarvil. Era um prédio grande e feio, de três andares, com uma fachada cheia de janelas intercaladas com painéis pintados de azul-turquesa. Quando as portas do ônibus se abriram, Andrew se juntou aos grupos cada vez maiores de gente usando blazers pretos e suéteres que cruzavam o estacionamento, dirigindo-se às duas entradas principais. Já chegando ao afunilamento que se formava para passar pela porta de duas folhas, reparou num Nissan Micra que vinha parando e se afastou daquela massa para esperar pelo melhor amigo.

Fofo, Elefa, Wally, Wallah, Gordo, Bolota, Bola: ninguém naquela escola tinha mais apelidos que Stuart Wall. O seu jeito de andar, com umas passadas bem largas, a sua magreza, o rosto fino e chupado, as orelhas avantajadas e um ar de eterno sofrimento já bastariam para fazer dele um sujeito bem diferente dos demais. Mas eram o seu humor sarcástico, o seu ar distante e a sua pose que faziam dele um caso à parte. Sabe-se lá como, Stuart sempre conseguia se desvincular de qualquer coisa que se poderia definir como um caráter menos flexível, desvencilhando-se do embaraço de ser filho de um vice-diretor muito impopular e ridicularizado, e de ter uma mãe que, além de gorda e cafona, era a orientadora educacional da escola. Stuart era acima de tudo e exclusivamente ele mesmo: Bola, celebridade e ponto de referência na Winterdown. Até os alunos lá de Fields riam das suas piadas e, diante da frieza e da crueldade com que o garoto retribuía qualquer deboche, raramente se davam o trabalho de fazer gozações com os seus infelizes laços familiares.

Nesta manhã, a confiança de Bola permaneceu intacta quando, na frente daquelas hordas libertas dos pais que passavam pelo pátio, teve de saltar do Nissan em companhia não apenas da mãe, mas também do pai, que, em geral, vinha para a escola em horário diferente. Enquanto Bola trotava na sua direção, Andrew voltou a se lembrar de Krystal Weedon com a calcinha aparecendo.

— Tudo certo, Arf? — perguntou o recém-chegado.

— Oi, Bola.

Foram se juntar à multidão, com as mochilas penduradas no ombro, dando uns encontrões nas crianças menores, abrindo algum espaço no seu rastro.

— Pombinho andou chorando — disse Bola, enquanto iam subindo as escadas abarrotadas de alunos.

— O quê?

— Barry Fairbrother morreu ontem à noite.

— É, fiquei sabendo — replicou Andrew.

Bola lhe deu aquela olhada de esguelha que adotava quando outras pessoas tentavam se mostrar, fingindo que sabiam mais do que efetivamente sabiam, que eram mais do que efetivamente eram.

— A minha mãe tava no hospital quando trouxeram ele — acrescentou Andrew, irritado. — Ela trabalha lá, lembra?

— Ah, claro — disse Bola, já sem aquele ar desconfiado. — Bom, sabe que Pombinho e ele tinham um caso... E é Pombinho que vai dar a notícia. A coisa vai ficar feia, Arf.

No alto da escada, os amigos se separaram, e cada um foi para uma sala. Quase todos os colegas de Andrew já estavam lá dentro, sentados nas carteiras, balançando as pernas, ou apoiados nos armários que ficavam nas paredes laterais. As mochilas estavam debaixo das cadeiras. Como sempre, nas segundas de manhã, o falatório era mais alto e descontraído que de costume, porque, quando desse o sinal, iam sair da sala e atravessar o pátio para chegar ao ginásio de esportes. A professora estava sentada à sua mesa, assinalando a presença de quem ia entrando. Ela nunca se dava o trabalho de fazer a chamada: esse era um dos tantos expedientes que usava para tentar cativar a turma, e os alunos a desprezavam por isso.

Krystal chegou quando o sinal tocou.

— Tô aqui, fessora! — gritou lá da porta e voltou a sumir. Todos a seguiram, falando sem parar. Andrew e Bola se encontraram no alto da escada e, no meio daquela multidão, saíram pela porta dos fundos e foram andando até o outro lado do imenso pátio de cimento cinza.

O ginásio de esportes cheirava a suor e a tênis usado. O tumulto provocado por mil e duzentos adolescentes que não paravam de falar ecoou pelas paredes caiadas. Um tapete grosso, cinza-chumbo, todo manchado, cobria o chão e trazia, em diferentes cores, os traçados das quadras de badminton e de tênis, os gols do hóquei e do futebol. Aquele troço esfolava a pele toda se alguém caísse ali sem estar de calça comprida para se proteger. Mas, para os traseiros, ainda era melhor que a madeira dura onde tinham que ficar sentados até o final da reunião de todas as turmas da escola. Andrew e Bola já tinham conquistado o privilégio das cadeiras de pés tubulares e encosto de plástico que ficavam no fundo do ginásio para os alunos das últimas séries.

Lá na frente, virado para os alunos, havia um daqueles velhos púlpitos de madeira e, junto dele, estava a diretora, a sra. Shawcross. O pai de Bola, Colin “Pombinho” Wall, veio ocupar o seu lugar ao lado dela. Era um sujeito muito alto, com uma testa larga, entradas pronunciadas e um andar que pedia para ser imitado: saltitando mais que o necessário para se deslocar para a frente, com os braços bem colados ao corpo. Todos o chamavam de Pombinho por causa da sua célebre mania de vigiar, esvoaçando feito um pombo, os escaninhos que ficavam junto à porta do seu escritório, zelando para que estivessem sempre na mais perfeita ordem. As folhas de chamada eram depositadas em alguns deles depois de prontas, enquanto outras eram remetidas a departamentos específicos. “Veja lá se não vai pôr isso no escaninho errado, Ailsa!” “Não deixe a folha pendurada desse jeito ou ela vai acabar caindo, Kevin!” “Cuidado, garota! Pegue isso do chão e me dê aqui. Essa folha tem que ficar nesse escaninho!”

E até os outros professores acabaram chamando os tais escaninhos de “pombal”. Todos achavam que eles faziam isso para deixar claro que não eram como Pombinho.

— Cheguem para lá, cheguem para lá — disse o sr. Meacher, professor de marcenaria. Isto porque Andrew e Bola tinham deixado uma cadeira vazia entre eles e Kevin Cooper.

Pombinho tomou o seu lugar atrás do púlpito. Os alunos não se aquietaram tão depressa quanto teriam feito se fosse a diretora. No exato momento em que a última voz se calou, uma das portas duplas do lado direito se abriu, e Gaia entrou no ginásio.

Deu uma olhada ao seu redor (Andrew se permitiu virar para vê-la, já que metade dos presentes estava fazendo o mesmo. Ela estava atrasada, não conhecia quase ninguém, era linda e, afinal, era apenas Pombinho que estava falando) e, com passos rápidos, mas sem correr (porque, como Bola, ela tinha o dom da confiança), foi para trás dos alunos já instalados. A essa altura, Andrew já não podia se virar para continuar olhando, mas uma ideia lhe passou pela cabeça com tamanha força que os seus ouvidos chegaram a zumbir: ao obedecer à ordem do sr. Meacher, ele tinha deixado um lugar vago bem ao seu lado.

Ouviu uns passos leves e rápidos que se aproximavam e, de repente, ali estava ela. Veio sentar exatamente ao seu lado. Empurrou um pouco a cadeira, o corpo esbarrando no dele. As narinas de Andrew captaram um ligeiro perfume. Todo o lado esquerdo do seu corpo ardia com a consciência da presença dela, e o garoto ficou feliz da vida porque justamente daquele lado o seu rosto tinha menos espinhas que do outro. Nunca tinha estado assim tão perto de Gaia e ficou se perguntando se teria coragem de olhar para ela, de dar algum sinal de que a reconhecia. Logo, porém, concluiu que tinha ficado paralisado por tanto tempo que já não dava para fazer isso de uma forma natural.

Coçou a têmpora esquerda para esconder o rosto. Revirou então os olhos e olhou para aquelas mãos juntas, pousadas no colo da garota. As unhas eram curtas, limpas e sem esmalte. Num dos dedos mindinhos, ela tinha um anelzinho de prata.

Discretamente, Bola lhe deu uma cotovelada.

— E por último... — disse Pombinho, e Andrew percebeu que já tinha ouvido o professor dizer aquelas palavras duas vezes. E que a quietude que reinava no ginásio tinha se tornado um sólido silêncio: todo o movimento havia cessado, e o ar ficou impregnado de curiosidade, animação e embaraço.

— E por último... — repetiu Pombinho, e a sua voz tremeu sem que ele pudesse controlá-la. — Tenho uma notícia... Uma notícia muito triste para lhes dar. O sr. Fairbrother... que foi treinador da nossa tão... vitoriosa equipe feminina de remo durante os últimos dois anos... — Nesse ponto, ele como que engasgou, e passou uma das mãos pelos olhos. —...morreu...

Pombinho Wall estava chorando diante de todos. A sua careca cheia de protuberâncias pendeu para a frente. Ouviram-se, simultaneamente, murmúrios de espanto e risinhos pela plateia, e muitos rostos se viraram para Bola, que continuou ali sentado, com um ar sublime de quem não tinha nada a ver com aquilo. Parecia um tanto intrigado, mas, a não ser por isso, estava impassível.

— ...morreu... — disse Pombinho, soluçando, e a diretora se levantou, parecendo aborrecida. — ...morreu... ontem à noite.

De repente, um som estridente brotou de algum lugar lá no meio das cadeiras do fundo do ginásio.

— Quem riu? — rosnou Pombinho, e o ar ali dentro chegou a estalar de tanta tensão. — COMO SE ATREVE?! Quem foi a menina que riu? Quem foi?

O sr. Meacher já estava de pé, gesticulando furioso para alguém no meio da fileira bem atrás de Andrew e Bola. A cadeira de Andrew balançou novamente porque Gaia tinha se virado, como todos os demais, para ver o que estava acontecendo. Andrew tinha a impressão de que o seu corpo inteiro era agora hipersensitivo: dava para sentir que o corpo de Gaia estava meio debruçado na sua direção. Caso se virasse para o outro lado, o seu peito esbarraria no dela.

Quem foi que riu? — repetiu Pombinho, erguendo-se absurdamente na ponta dos pés, como se pudesse descobrir o culpado lá do lugar onde estava. Meacher esbravejava e gesticulava febrilmente dirigindo-se à pessoa que decidira acusar.

— Quem é, sr. Meacher? — gritou Pombinho.

O professor pareceu relutar em responder. Não estava conseguindo convencer o culpado a se levantar da cadeira. Mas, como Pombinho já dava sinais de que ia sair lá da frente para investigar pessoalmente, Krystal Weedon se pôs de pé de um salto, inteiramente vermelha, e foi saindo da fileira de cadeiras onde estava.

— Passe no meu escritório assim que terminarmos aqui — gritou Pombinho. — É absolutamente lamentável! Uma completa falta de respeito! Saia já daqui!

Mas Krystal parou na ponta da fila de cadeiras, ergueu o dedo médio para Pombinho e berrou:

— FIZ NADA NÃO, SEU BABACA!

Por todo lado ouviram-se risos e murmúrios excitados. Os professores tentavam em vão impor silêncio aos alunos, e um ou dois deles chegaram mesmo a se levantar, procurando intimidar as turmas pelas quais eram responsáveis.

As portas duplas se fecharam atrás de Krystal e do sr. Meacher.

— Quietos! — gritou a diretora, e um silêncio precário, cheio de sussurros e movimentos, voltou a se instalar no ginásio. Bola olhava fixo para a frente, e, pela primeira vez, havia um quê de forçado naquela indiferença e um ligeiro rubor na sua pele.

Andrew sentiu Gaia se endireitando na cadeira. Armou-se de coragem, olhou para o lado esquerdo e sorriu. Ela retribuiu o seu sorriso.

 

VII

 

Embora a delicatéssen de Pagford só abrisse às nove e meia, Howard Mollison já tinha chegado ao local. Era um homem de sessenta e quatro anos, de uma obesidade extravagante. A barriga avantajada formava uma prega que lhe caía diante das coxas e, assim que batia os olhos nele, a maioria das pessoas logo pensava no seu pênis: quando o teria visto pela última vez, como conseguia lavá-lo, como conseguia realizar qualquer dos atos para os quais serve o pênis? Em parte porque o seu porte físico provocava esse tipo de pensamento, em parte por causa da sua baixa tolerância a brincadeiras, Howard conseguia deixar as pessoas sem jeito e desarmá-las quase na mesma medida. Talvez por isso fosse tão comum os fregueses comprarem mais do que pretendiam na primeira visita que faziam à loja. Trabalhando, Howard conversava o tempo todo, enquanto a mão de dedos curtos ia acionando o cortador de frios para lá e para cá, e as fatias fininhas e sedosas de presunto iam caindo no celofane colocado ali para recebê-las, com os olhos redondos e azuis sempre prontos para uma piscadela, a papada balançando com o riso fácil.

Ele tinha idealizado um uniforme de trabalho: camisa branca, avental de lona verde-escuro, calças de veludo e um daqueles chapéus estilo Sherlock Holmes no qual havia enfiado várias moscas de pescaria. Se algum dia o tal chapéu tinha sido uma brincadeira, há tempos que deixara de ser: toda manhã, antes de abrir a loja, ele o posicionava com a maior precisão sobre os bastos cachos grisalhos com o auxílio de um espelhinho instalado no banheiro dos funcionários.

Para Howard, era sempre um prazer abrir a delicatéssen de manhã. Adorava circular pela loja vazia, numa hora em que só se ouvia o barulhinho constante das geladeiras. Deliciava-se em ir trazendo tudo de volta à vida — acender as luzes, subir as persianas, tirar as tampas para deixar à mostra os tesouros do balcão-frigorífico: as pálidas alcachofras de um verde-acinzentado, as azeitonas pretas como ônix, os tomates secos enroscados como cavalos-marinhos vermelhos boiando naquele azeite temperado com ervas.

Hoje, porém, esse prazer vinha mesclado de impaciência. A sua sócia já estava atrasada e, como acontecera mais cedo com Miles, Howard temia que alguém pudesse passar à sua frente e contar primeiro aquela notícia sensacional, uma vez que Maureen não tinha celular.

Parou junto do arco recém-aberto na parede que separava a sua loja da velha sapataria que em breve ia se tornar o mais novo café do vilarejo, e verificou se estava tudo certo com o plástico grosso que fazia as vezes de cortina para proteger a delicatéssen da poeira da obra. Estavam planejando abrir o café antes da Semana Santa, a tempo de atrair turistas que seguiam todo ano para a região do West Country e cuja bagagem Howard enchia de sidra local, queijo e peças de artesanato em palha de milho.

A sineta tocou às suas costas. Howard se virou com o coração remendado e reforçado batendo mais forte de tanta empolgação.

Maureen, a viúva do sócio original de Howard, era uma mulher de sessenta e dois anos, magra e meio encurvada. A sua postura a fazia aparentar muito mais idade, embora ela fizesse os mais diversos esforços para manter um pé na juventude: pintava o cabelo de preto retinto, usava roupas coloridas e se equilibrava em cima de imprudentes saltos altos, que tirava ao chegar na loja para calçar uns tamancos Dr. Scholl.

— Bom dia, Mo — disse Howard.

Tinha decidido não estragar a revelação fazendo as coisas atabalhoadamente, mas logo, logo os clientes começariam a chegar, e ele tinha muito para contar.

— Já soube?

Maureen o encarou, franzindo as sobrancelhas, com um ar inquiridor.

— Barry Fairbrother morreu.

A mulher ficou de boca aberta.

— Não! — exclamou ela. — Como?

— Alguma coisa arrebentou — disse o seu sócio, dando um tapinha na lateral da cabeça. — Por aqui. Miles estava lá. Viu tudo. Foi no estacionamento do clube de golfe.

Não! — repetiu Maureen.

— Mortinho — disse Howard, como se houvesse graus diferentes de morte e Barry Fairbrother tivesse sido vítima de um particularmente sórdido.

A boca de Maureen, pintada com um batom forte, pendia frouxa. Ela fez o sinal da cruz. O seu catolicismo sempre dava um toque pitoresco a momentos como aquele.

— Miles estava lá? — indagou ela, e Howard percebeu, naquela voz meio rouca e profunda de ex-fumante, o desejo de saber de tudo, nos mínimos detalhes.

— Não quer pôr a chaleira no fogo, Mo?

Pelo menos podia prolongar a agonia da sua sócia por mais alguns instantes. Na pressa de voltar, Maureen respingou chá fervente na mão. Os dois então sentaram juntos, atrás do balcão, nos bancos altos de madeira que Howard havia posto ali para as horas de menos movimento, e Maureen apanhou um punhado de raspas de gelo da bandeja das azeitonas para aliviar a queimadura. Juntos, desfiaram todos os aspectos convencionais da tragédia: a viúva (“vai ficar perdida; ela vivia para Barry”); os filhos (“quatro adolescentes; não vai ser fácil criá-los sem um pai”); a relativa juventude do morto (“ele não era muito mais velho que Miles, não é mesmo?”); e, por fim, chegaram ao verdadeiro ponto de partida, com relação ao qual tudo o mais não passava de vagos rodeios.

— E agora? — indagou Maureen num tom ávido.

— Ah — replicou Howard. — Bom, e agora? Aí é que está! Temos uma vacância, Mo, e isso pode fazer toda a diferença.

— Temos uma o quê? — perguntou a mulher, temendo ter deixado passar algo absolutamente crucial.

— Vacância — repetiu Howard. — É o que acontece quando uma cadeira do Conselho fica vaga por morte do seu titular. É o termo legal — acrescentou ele, didaticamente.

Howard era o presidente do Conselho e o representante máximo de Pagford. Esta posição se fazia acompanhar de um colar com uma insígnia em ouro e esmalte que agora descansava no minúsculo cofre que Shirley e ele haviam mandado instalar no fundo do armário embutido feito sob medida. Se ao menos o distrito de Pagford houvesse sido elevado à categoria de município, ele poderia se intitular prefeito... Apesar de tudo, porém, para todos os efeitos, era isso que ele era. Shirley tinha deixado as coisas bem claras no site do Conselho, onde, sob uma reluzente foto colorida de Howard envergando o colar com a sua insígnia, lia-se com todas as letras que ele receberia de bom grado convites para participar de quaisquer eventos cívicos e comerciais do vilarejo. Poucas semanas atrás, ele tinha entregado os certificados de conclusão do curso de ciclismo da escola primária local.

— Veja bem, Mo, Fairbrother era um safado — disse Howard, tomando um gole do seu chá e esboçando um sorrisinho para atenuar a afirmação que fazia. — Ele sabia ser um grandessíssimo safado.

— Sei disso — replicou a mulher. — Sei disso.

— Eu ia ter que chamá-lo às falas se não tivesse morrido. Pergunte só a Shirley. Ele sabia ser um vigarista safado!

— Ah, eu sei.

— Bom, agora, veremos. Veremos. Isso deve pôr um ponto final nessa história. Veja bem, é claro que eu não queria vencer assim — prosseguiu Howard, com um profundo suspiro —, mas, pensando no bem de Pagford... na comunidade... até que não é nada mau... — E, olhando o relógio, acrescentou: — Já são quase nove e meia, Mo.

Aqueles dois nunca se atrasavam para abrir a loja e nunca fechavam mais cedo: administravam o seu comércio com a regularidade e os rituais de um templo.

Meio cambaleando, Maureen foi até a porta, subiu as persianas, e recortes do exterior foram se revelando progressivamente: uma praça pitoresca e bem-cuidada, graças, em boa parte, aos esforços coordenados daqueles cujas propriedades davam para o local. Por todo canto, viam-se jardineiras, cestos pendurados e vasos com flores coloridas que, por combinação dos moradores, variavam de ano para ano. O Black Canon (um dos pubs mais antigos da Inglaterra) ficava defronte da Mollison & Lowe, do outro lado da praça.

Howard se apressou a ir algumas vezes aos fundos da loja para buscar umas bandejas retangulares com patê fresco e depositá-las, com os seus adornos de rodelas de limão e frutas vermelhas reluzentes, no balcão envidraçado. Um tanto ofegante pelo esforço extra exigido por toda aquela conversa matinal, ele ajeitou o último patê e parou um pouquinho, observando o monumento aos mortos da guerra, que ficava bem no meio da praça.

Pagford estava linda como sempre assim pela manhã, e Howard experimentou um sublime instante de exultação tanto na própria existência quanto na daquela cidade à qual se sentia ligado como um coração pulsante. Estava ali para se impregnar de tudo aquilo — os bancos pretos luzidios, as flores vermelhas e roxas, o sol brilhando no alto da cruz de pedra —, e Barry Fairbrother tinha desaparecido. Era difícil não ter a sensação de estar diante de um desígnio maior, revelado por essa súbita alteração ocorrida no que Howard via como um campo de batalha em que ele e Barry haviam se enfrentado por tanto tempo.

— Howard — exclamou Maureen bruscamente. — Howard!

Alguém vinha atravessando a praça a passos largos. Era uma mulher magra, morena, de cabelos pretos, que usava uma gabardine e, com ar aborrecido, olhava as próprias botas enquanto andava.

— Acha que...? Será que ela já sabe? — sussurrou Maureen.

— Não faço ideia — respondeu Howard.

Maureen, que ainda não tinha tido tempo de calçar os tamancos Dr. Scholl, quase torceu o tornozelo ao recuar às pressas, afastando-se da janela e correndo para ficar atrás do balcão. Lentamente, com toda a majestade, como um canhoneiro dirigindo-se ao seu posto, Howard foi ocupar o seu lugar diante da caixa registradora.

A sineta soou, e a dra. Parminder Jawanda empurrou a porta da delicatéssen, sempre com aquele ar aborrecido. Agiu como se os donos não estivessem ali e foi direto para a prateleira dos azeites. Os olhos de Maureen a seguiram com o êxtase e a concentração de um falcão espreitando um rato-do-mato.

— Bom dia! — disse Howard, quando Parminder se aproximou do balcão segurando uma garrafa.

— Bom dia.

A dra. Jawanda raramente o encarava, fosse nas reuniões do Conselho, fosse quando se encontravam fora do salão da igreja. Howard achava engraçada a incapacidade que ela tinha de disfarçar o seu desagrado: aquilo o tornava jovial, extravagantemente galante e cortês.

— Não foi trabalhar hoje?

— Não — respondeu Parminder, remexendo na bolsa.

Maureen não conseguiu se conter.

— Que coisa horrível — disse, com aquela sua voz rouca. — Barry Fairbrother, não é?

— Hmmm — resmungou a outra, mas acabou perguntando: — O quê?

— Barry Fairbrother — repetiu Maureen.

— O que houve com ele?

Mesmo depois de dezesseis anos morando em Pagford, ela ainda tinha um forte sotaque de Birmingham. Uma linha vertical profunda entre as sobrancelhas lhe dava um ar eternamente tenso, parecendo às vezes raiva, às vezes concentração.

— Morreu — respondeu Maureen, olhando ávida para aquele rosto contraído. — Ontem à noite. Howard acabou de me contar.

Parminder ficou praticamente imóvel, com a mão enfiada na bolsa. Voltou então os olhos na direção do comerciante.

— Caiu morto no estacionamento do clube de golfe — disse ele. — Miles estava lá e presenciou tudo.

Mais alguns segundos se passaram.

— Por acaso isso é uma piada? — perguntou Parminder, e a sua voz soou dura e meio esganiçada.

— Claro que não — retrucou Maureen, saboreando a própria coragem. — Quem faria uma piada dessas?

Parminder botou a garrafa de azeite em cima do balcão de vidro com toda a força e saiu da loja.

— Ora, ora... — exclamou Maureen, num êxtase de desaprovação. — Isso é uma piada? Que simpatia!

— Choque! — replicou Howard com muita sensatez, observando Parminder, que atravessava a praça quase correndo, com a gabardine esvoaçando às suas costas. — Essa aí ficou tão transtornada quanto a viúva. Olhe, vai ser interessante... — acrescentou, coçando a prega da barriga que geralmente comichava — ver o que ela...

Deixou a frase inacabada, mas isso não tinha a mínima importância: Maureen sabia exatamente o que ele estava pensando. Vendo a conselheira Jawanda desaparecer numa esquina, ambos estavam contemplando a tal vacância, e, a seus olhos, ela não era um espaço vazio, mas a cartola de um mágico, cheinha de possibilidades.

 

VIII

 

A antiga casa paroquial era a última e a mais imponente das casas vitorianas da Church Row. Ficava bem na esquina, num grande jardim triangular, em frente à Igreja de São Miguel e Todos os Santos.

Parminder, que tinha feito os últimos metros correndo, teve alguma dificuldade em abrir o ferrolho da porta da frente e finalmente entrou. Não ia acreditar naquela história até ouvir a notícia dada pela boca de outra pessoa, qualquer uma. Mas o telefone já estava tocando furiosamente na cozinha.

— Alô?

— Sou eu, Vikram.

O marido de Parminder era cirurgião cardiovascular. Trabalhava no Hospital Geral South West, em Yarvil, e não costumava lhe telefonar do trabalho. A mulher segurou o fone com tanta força que os seus dedos chegaram a ficar doloridos.

— Fiquei sabendo por acaso. Parece que foi um aneurisma. Pedi a Huw Jeffries que passasse a autópsia dele na frente das outras. É melhor que Mary fique sabendo do que o marido morreu. Talvez estejam trabalhando nisso agora mesmo.

— Está certo — disse Parminder num sussurro.

— Tessa Wall estava lá — acrescentou o marido. — Ligue para ela.

— Está bem — replicou Parminder. — Vou fazer isso.

Mas, quando pôs o fone no gancho, deixou-se cair numa cadeira e ficou olhando pela janela da cozinha, sem ver o jardim dos fundos, apertando com os dedos a própria boca.

Tudo tinha desmoronado. As coisas continuavam ali — as paredes, as cadeiras, os retratos das crianças nas paredes —, mas isso não queria dizer absolutamente nada. Cada átomo de todas aquelas coisas tinha explodido e se reconstituído num instante, e a sua aparência de permanência e solidez era ridícula; aquilo se desmancharia ao mínimo toque, pois, de repente, tudo tinha se tornado quebradiço, fino como papel.

Parminder não tinha controle sobre os próprios pensamentos; eles também haviam se estilhaçado, e alguns fragmentos aleatórios de lembranças vinham à tona para, depois, voltar a afundar: ela dançando com Barry na festa de Ano-Novo dos Wall, e a conversa boba que os dois tiveram saindo da última reunião do Conselho.

— A sua casa parece uma cabeça de vaca — disse ela.

— Cabeça de vaca? O que quer dizer com isso?

— É mais estreita na frente que nos fundos. Isso é sinal de sorte. Mas ela dá para uma interseção em T. O que é sinal de azar.

— Então, somos neutros em termos de sorte — replicou Barry.

A tal artéria na cabeça dele talvez estivesse inflando perigosamente já naquela ocasião, e nenhum dos dois poderia desconfiar disso.

Às cegas, Parminder saiu da cozinha e entrou na sala de estar eternamente na penumbra, fizesse chuva ou fizesse sol, por causa do gigantesco pinheiro-da-escócia que havia no jardim. Detestava aquela árvore, mas ela continuava ali porque Parminder e o marido sabiam perfeitamente que iam arrumar briga com os vizinhos se mandassem derrubá-la.

Não conseguia parar quieta. Passou pelo corredor, voltou à cozinha, pegou o telefone e ligou para Tessa Wall, mas ninguém atendeu. Devia estar no trabalho. Trêmula, Parminder voltou a se sentar na cadeira da cozinha.

A dor que sentia era tão grande, tão selvagem que chegava a assustá-la, como se um monstro maligno tivesse surgido das tábuas do assoalho. Barry, baixinho, barbudo; Barry, seu amigo, seu aliado.

Foi exatamente assim que o seu pai morreu. Ela tinha quinze anos, e, ao voltarem da cidade, deram com ele caído de bruços no gramado, o cortador de grama ao seu lado, o sol quente lhe batendo na nuca. Parminder tinha horror de mortes súbitas. O definhar prolongado que muita gente tanto teme era, para ela, uma perspectiva reconfortante; ter tempo para arrumar e organizar as coisas, tempo para se despedir...

Continuava pressionando a boca com ambas as mãos. Observou o rosto doce e grave do Guru Nanak preso no quadro de cortiça.

(Vikram não gostava daquela foto.

— O que isso está fazendo aí?

— Gosto dela — respondeu, enfrentando-o.)

Barry, morto.

Reprimiu a terrível vontade de chorar com aquela ferocidade que a sua mãe sempre condenava, especialmente no dia seguinte à morte do seu pai, quando as outras filhas, bem como as tias e as primas, gemiam e batiam no peito. “Logo você, que era a favorita dele!” Mas Parminder guardou aquelas lágrimas não derramadas muito bem-trancadas dentro de si, e, aparentemente, elas sofreram uma transformação alquímica, voltando ao mundo exterior sob a forma de jorros de lava de raiva despejados periodicamente sobre os próprios filhos e as recepcionistas do trabalho.

Ainda podia ver Howard e Maureen atrás do balcão, ele, imenso, ela, magricela, e, na imagem mental que fazia, os dois a encaravam do alto ao lhe dizer que o seu amigo tinha morrido. Num ímpeto quase reconfortante de fúria e de ódio, Parminder pensou: Aqueles dois estão felizes da vida. Estão achando que, agora, vão vencer.

Mais uma vez, pulou da cadeira, foi até a sala de estar e tirou, lá da prateleira de cima, um volume dos Sainchis, o livro sagrado que acabara de comprar. Abrindo-o ao acaso, leu, não surpreendida, mas antes com a sensação de estar olhando num espelho o próprio rosto arrasado:

Ó mente, o mundo é um poço escuro e profundo. Por todo lado, a Morte lança a sua rede.

 

IX

 

A sala destinada ao serviço de orientação educacional da Winterdown dava para a biblioteca da escola. Não tinha janelas e era iluminada por uma única daquelas lâmpadas fluorescentes bem compridas.

Tessa Wall, chefe do setor e esposa do vice-diretor, entrou na sala às dez e meia, atordoada de tanto cansaço e trazendo na mão uma xícara de café bem forte que tinha apanhado no refeitório dos funcionários. Era baixinha e gorda, com um rosto largo sem atrativos e uma franja quase sempre meio torta, já que ela cortava o próprio cabelo, que estava começando a embranquecer. Usava umas roupas que davam a impressão de serem feitas em casa e adorava bijuterias de contas e madeira. Hoje estava com uma saia comprida que mais parecia de juta, combinando com um casaquinho verde-claro, largo e grosso. Raramente se olhava num espelho de corpo inteiro e boicotava as lojas em que isso fosse inevitável.

Tessa havia tentado amenizar a semelhança daquela sala com uma cela pendurando na parede um panô do Nepal que tinha desde os seus tempos de estudante: sobre um fundo com as cores do arco-íris, um reluzente sol amarelo e uma lua estilizados emitiam os seus raios ondulantes. De resto, o que se via ali eram cartazes contendo dicas para estimular a autoestima ou telefones de grupos anônimos de apoio para diversas questões de saúde física ou emocional. Na última vez que entrou naquela sala, a diretora havia feito uma observação ligeiramente sarcástica a respeito desses cartazes.

— Pelo que estou vendo, se nada disso funcionar é só ligar para a Fundação de Amparo à Criança e ao Adolescente — disse ela, apontando para o mais destacado deles, que continha o nome e o telefone de uma organização.

Tessa afundou na cadeira com um gemido abafado, tirou o relógio de pulso que estava beliscando o seu braço e o deixou em cima da mesa, junto de vários formulários e notas. Duvidava que conseguisse dar conta do que havia sido previsto para aquele dia; duvidava até que Krystal Weedon fosse aparecer por lá. Em geral, a garota ia embora da escola quando ficava chateada, zangada ou aborrecida. Às vezes, era apanhada antes de cruzar o portão e trazida de volta à força, xingando e gritando, mas também acontecia de ela conseguir driblar a vigilância, escapar dali e passar dias matando aula. Já eram dez e quarenta. A sineta tocou, e Tessa ficou esperando.

Às dez e cinquenta e um, Krystal entrou feito uma bala, batendo a porta atrás de si. Jogou-se na cadeira diante de Tessa, com os braços cruzados sobre os seios avantajados e os brincos vagabundos balançando nas orelhas.

— Diz pro seu marido — principiou ela, com voz trêmula — que eu não ri porra nenhuma, viu?

— Por favor, Krystal, nada de palavrões na minha frente — replicou a orientadora.

Eu não ri coisa nenhuma... ok? — gritou a garota.

Um grupo de alunos do último ano entrou na biblioteca carregando umas pastas. Todos espiaram pela vidraça da porta. Um deles sorriu ao ver a cabeça de Krystal ali dentro. Tessa se levantou, baixou a persiana e voltou para o seu lugar, defronte do sol e da lua.

— Tudo bem, Krystal. Por que não me conta o que aconteceu?

— O seu marido disse alguma coisa sobre o sr. Fairbrother, ok? E eu não ouvi o que ele disse, entendeu? Aí, Nikki me contou, e eu não consegui acreditar na merda que...

— Krystal!

— Não dava para acreditar naquilo, tá? Aí eu gritei. Mas não ri porra nenhuma!

— Krystal!

Eu não ri, entendeu? — repetiu a garota, aos berros, com os braços cruzados diante do peito e as pernas também cruzadas.

— Está certo, Krystal.

Tessa estava acostumada à raiva dos alunos que vinham com mais frequência à sua sala. Muitos não tinham a mínima educação: quase sempre mentiam, faziam bagunça e colavam nas provas. Mesmo assim, quando injustamente acusados, a sua fúria era infinita e genuína. A orientadora se julgava capaz de distinguir essa atitude autêntica daquela outra, fingida, que Krystal era perita em adotar. De todo modo, o que ouviu lá no ginásio tinha lhe parecido mais um grito de espanto e tristeza que uma gozação, e tomou um susto quando o marido identificou aquilo como uma risada.

— Tava vendo Pombinho...

— Krystal!

— Disse pra porra do seu marido...

— Krystal, pela última vez: nada de palavrões...

— Eu disse pra ele que eu não ri coisa nenhuma. Eu disse! E, mesmo assim, ele me ferrou com uma detenção!

Os olhos pintadíssimos da garota brilhavam com lágrimas de raiva. O sangue lhe subiu ao rosto e, vermelha como um pimentão, ela ficou encarando a orientadora, pronta para fugir, xingar, exibir também para Tessa o dedo médio. Uma confiança muito tênue, laboriosamente construída entre as duas durante quase dois anos, estava agora tão esgarçada que podia arrebentar a qualquer momento.

— Acredito em você, Krystal. Acredito que não riu, mas, por favor, não diga palavrões quando fala comigo.

De repente, uns dedos curtinhos estavam esfregando aqueles olhos já borrados. Tessa tirou da gaveta da escrivaninha um punhado de lenços de papel e os ofereceu à garota, que, sem dizer obrigada, se apoderou deles, enxugou os olhos e assoou o nariz. As mãos de Krystal eram o que havia nela de mais tocante: as unhas, malpintadas, eram curtas e largas, e todos os gestos que aquelas mãos faziam eram ingênuos e diretos como os de uma criança pequena.

Tessa esperou até Krystal parar de fungar.

— Dá para perceber que você ficou chateada com a notícia da morte do sr. Fairbrother...

— Fiquei, sim! — replicou a garota, com boa dose de agressividade. — E daí?

Sem mais nem menos, passou pela cabeça de Tessa a ideia de Barry ouvindo aquela conversa. Podia até ver o seu sorriso tristonho; podia ouvi-lo dizer, bem nitidamente, “ela é uma garota bacana”. Incapaz de falar, a orientadora fechou os olhos, que lhe ardiam. Percebeu que Krystal se remexia na cadeira; contou até dez e voltou a abrir os olhos. A garota a estava encarando, sempre de braços cruzados, com o rosto vermelho e aquele ar desafiador.

— Também fiquei muito triste — disse Tessa. — Na verdade, ele era um velho amigo da família. É por isso que o sr. Wall está meio...

— Eu disse pra ele que não...

— Deixe eu acabar, Krystal. O sr. Wall está muito chateado hoje. Provavelmente, foi por isso que... interpretou mal o que você fez. Vou conversar com ele.

— Ele não vai desistir da porra da...

Krystal!

— Tá, mas ele não vai, não — disse ela. E começou a chutar o pé da escrivaninha num ritmo acelerado.

Tessa tirou os cotovelos da mesa, para não sentir a vibração do móvel, e repetiu:

— Vou conversar com o sr. Wall.

Assumiu o que julgava ser uma expressão neutra e, com toda a paciência, ficou esperando que a garota fizesse alguma coisa. Krystal, porém, continuava sentada ali, mergulhada num silêncio truculento, chutando o pé da escrivaninha, engolindo em seco com alguma regularidade.

— Que que aconteceu com o sr. Fairbrother? — perguntou ela enfim.

— Acham que uma artéria do cérebro dele se rompeu — respondeu Tessa.

— Por quê?

— Ele nasceu com um problema, mas não sabia disso — foi a resposta da orientadora.

Tessa sabia que Krystal estava muito mais familiarizada com mortes súbitas do que ela própria. Os seus parentes por parte de mãe morriam assim com tanta frequência que parecia até que estavam envolvidos numa guerra que o resto do mundo ignorava por completo. Uma vez Krystal lhe contou que, quando tinha seis anos, encontrou o cadáver de um rapaz desconhecido no banheiro da mãe. Foi o que precipitou uma das suas tantas remoções para viver sob os cuidados da avó Cath. A velha senhora era uma presença constante em várias das histórias que Krystal contava sobre a sua infância; um estranho misto de carrasco e tábua de salvação.

— Agora, a nossa equipe vai se foder — disse a garota.

— Não vai, não — replicou Tessa. — E, por favor, Krystal, sem palavrões.

— Vai, sim.

Tessa teve vontade de contradizê-la, mas esse impulso foi vencido pelo cansaço. De certa forma, a garota tinha razão, dizia uma parte racional, uma parte independente do seu cérebro. A equipe não ia sobreviver. Ninguém, a não ser Barry, conseguiria integrar Krystal Weedon a qualquer grupo que fosse e mantê-la ali. Ela ia largar tudo, como Tessa bem sabia; e provavelmente Krystal também sabia disso. Ficaram sentadas por alguns instantes, em silêncio. A orientadora estava cansada demais para encontrar palavras que talvez pudessem alterar o clima que se instalara entre as duas. Sentia-se trêmula, exposta, inteiramente desprotegida. Fazia vinte e quatro horas que não dormia.

(Samantha Mollison tinha ligado às dez da noite, exatamente quando Tessa estava saindo de um banho demorado e ia ver o noticiário da BBC. Voltou a se vestir, às pressas, enquanto o marido fazia uns ruídos incompreensíveis e tropeçava nos móveis. Do térreo, gritaram avisando ao filho que estavam indo para o hospital e correram para o carro. Colin dirigiu a toda até Yarvil, como se pudesse trazer Barry de volta se conseguisse fazer o trajeto em tempo recorde, passar à frente da realidade e convencê-la a se modificar.)

— Se não vai falar comigo, vou embora — disse Krystal.

— Não seja grosseira, por favor — replicou Tessa. — Estou muito cansada hoje. O sr. Wall e eu passamos a noite inteira no hospital com a esposa do sr. Fairbrother. Somos muito amigos.

(Mary desmontou completamente quando a viu chegar. Abraçou-a e enterrou o rosto no seu pescoço, com um choro agudo e assustador. Mesmo quando as suas próprias lágrimas começaram a escorrer pelas costas estreitas de Mary, Tessa continuou pensando muito claramente que o barulho que a outra estava fazendo era o que se chamaria de carpir. O corpo mignon e esguio que Tessa tantas vezes invejara tremia nos seus braços, sem conseguir conter a dor que lhe havia sido imposta.

Não se lembrava de ter visto Miles e Samantha irem embora. Não os conhecia muito bem. Com certeza ficaram bem contentes por poder sair dali.)

— Já vi a mulher dele — disse Krystal. — Uma loura. Ela veio ver a gente competir.

— Isso mesmo.

Krystal estava mordendo as pontas dos dedos.

— Ele disse que era pra eu falar com o jornal — disse ela, abruptamente.

— Fazer o quê? — perguntou Tessa, sem entender nada.

— O sr. Fairbrother disse que era pra eu dar uma entrevista. Falando sobre mim.

Uma vez, saiu uma matéria no jornal local sobre o oito com timoneiro da Escola Winterdown, que tinha se classificado em primeiro lugar para a final regional. Krystal, que lia mal e porcamente, trouxe o exemplar do periódico para mostrar à orientadora, e Tessa leu o texto em voz alta, introduzindo exclamações de contentamento e admiração. Tinha sido a melhor sessão de orientação que já havia feito na vida.

— Iam fazer uma entrevista com você por causa do remo? — perguntou Tessa. — A equipe toda?

— Não — respondeu a garota. — Era outra coisa. O enterro vai ser quando?

— Ainda não sabemos.

Krystal ficou roendo as unhas, e Tessa não conseguiu encontrar forças para romper o silêncio que tinha se instalado à sua volta.

 

X

 

A notícia da morte de Barry no site do Conselho Distrital não chegou exatamente a provocar alguma comoção, mais parecendo uma pedrinha atirada no oceano imenso. Mesmo assim, nessa segunda-feira, as linhas telefônicas de Pagford ficaram mais ocupadas que de costume, e grupinhos de transeuntes se formavam nas calçadas estreitas para conferir, com ar chocado, a exatidão das próprias informações.

À medida que a notícia foi se espalhando, ocorreu uma estranha transmutação. A assinatura de Barry, que estava nos documentos do escritório e nos e-mails que enchiam a caixa de entrada da imensa quantidade de gente que ele conhecia, assumiu o caráter patético da trilha de migalhas de pão deixada por um menino perdido na floresta. Aqueles rabiscos apressados, os pixels combinados por dedos que, de agora em diante, nunca mais voltariam a se mexer, adquiriram o macabro aspecto de cascas ocas. Gavin já estava sentindo certa repugnância pelas mensagens de texto que o amigo morto havia enviado para o seu celular, e uma das garotas da equipe de remo, que vinha voltando do ginásio ainda chorando, quase teve um ataque histérico quando encontrou na mochila um formulário assinado por Barry.

A jornalista de vinte e três anos que trabalhava na Gazeta de Yarvil e Adjacências nem desconfiava que o cérebro outrora tão ativo de Barry era agora um punhado de tecido esponjoso dentro de uma gaveta metálica no Hospital Geral South West. Leu o texto que ele tinha lhe mandado por e-mail uma hora antes de morrer e ligou para o seu celular, mas ninguém atendeu. O aparelho, que Barry tinha desligado, a pedido da mulher, antes de sair para o clube, estava agora na cozinha, em silêncio, ao lado do micro-ondas, junto com o restante das coisas que o hospital tinha entregado para Mary levar para casa. Ninguém tocou em nada. Aqueles objetos tão conhecidos — o chaveiro, o celular, a velha carteira bem usada — pareciam pedaços do próprio morto; poderiam perfeitamente ser os seus dedos, os seus pulmões...

Pelos quatro cantos, a notícia da morte de Barry foi se espalhando, irradiando-se como um halo a partir daqueles que estiveram no hospital. Pelos quatro cantos, inclusive em Yarvil, onde chegou aos ouvidos de quem só o conhecia de vista, de nome ou de ouvir falar. Pouco a pouco, os fatos foram perdendo forma e foco; em certos casos, acabaram distorcidos. Em alguns lugares, o próprio Barry desapareceu por trás da natureza do seu fim, tornando-se apenas uma irrupção de vômito e urina, uma pilha contorcida de catástrofe, e parecia absurdo, até mesmo grotescamente cômico, que um homem pudesse morrer de uma morte assim tão nojenta naquele pequeno clube de golfe tão elegante.

Foi assim que Simon Price, um dos primeiros a saber da morte de Barry, ainda na sua casa construída no topo da colina de onde se via toda Pagford, deparou com uma outra versão da história na Gráfica Harcourt-Walsh, em Yarvil, onde trabalhava desde que saiu da escola. Ela lhe chegou pela boca de um rapazinho que mascava chicletes e dirigia uma empilhadeira. Simon topou com ele matando trabalho perto da porta da sua sala quando voltava do banheiro, já mais para o fim da tarde. E, diga-se de passagem, o tal garoto nem estava ali para falar de Barry.

— Aquele negócio que você disse que talvez interessasse... — balbuciou o jovem, entrando no escritório atrás de Simon e vendo que o outro tinha fechado a porta. — Posso ver isso na quarta, se você ainda tiver a fim.

— É mesmo? — indagou Simon, sentando diante da escrivaninha. — Achei que você tinha dito que já estava tudo em cima.

— E tá mesmo, mas não dá pra conseguir marcar a entrega pra antes da quarta.

— Quanto mesmo que você disse que era?

— Oitentinha. Em dinheiro.

O garoto mastigava com tanta força que Simon podia ouvir a sua saliva em ação. Mascar chicletes era uma das tantas coisas com que ele implicava loucamente.

— Mas é coisa boa, não é? — perguntou ele. — Não é uma dessas porcarias pirateadas.

— Vem direto do depósito — respondeu o outro, mexendo um pouco o pé e o ombro. — Coisa fina. Na embalagem.

— Então está combinado — disse Simon. — Pode trazer na quarta.

— O quê?! Pra cá? — exclamou o garoto, revirando os olhos. — De jeito nenhum, cara! Pro trabalho, não... Onde é que você mora?

— Em Pagford.

— Mas onde em Pagford?

Simon detestava a ideia de falar da própria casa: era uma aversão que beirava a superstição. Além de não gostar de visitantes — invasores da sua privacidade e possíveis saqueadores da sua propriedade —, via Hilltop House como algo inviolado, imaculado, um mundo à parte com relação a Yarvil e àquelas máquinas de impressão incansáveis e barulhentas.

— Passo então para pegar depois do trabalho — disse Simon, ignorando a pergunta do rapaz. — Onde é?

O outro não pareceu gostar nada da ideia. Simon o encarou.

— Vou precisar da grana adiantada — retrucou ele então.

— Dou o dinheiro quando receber a mercadoria.

— Não é assim que a gente trabalha, cara!

Simon achou que estava começando a ficar com dor de cabeça. Não conseguia se livrar da terrível ideia sugerida hoje de manhã por aquela descuidada da sua mulher: que uma minúscula bomba pode passar muito tempo armada no cérebro de um homem sem que ninguém saiba da sua existência. O bate que bate das máquinas do outro lado da porta decerto não ajudava em nada; aquela barulheira incessante devia vir afinando as paredes das suas artérias há anos.

— Está bem — resmungou e se virou na cadeira para apanhar a carteira, que estava no bolso de trás da calça. O menino chegou mais perto, com a mão estendida.

— Você mora perto do clube de golfe de Pagford? — perguntou, enquanto Simon ia botando as notas de dez libras na palma daquela mão. — Um amigo meu tava por lá ontem à noite e viu um sujeito cair duro. Do nada, o cara começou a vomitar, desabou no chão e morreu no estacionamento.

— É, ouvi dizer... — disse Simon, passando os dedos pela última das notas antes de entregá-la, para ter certeza de que não havia ali duas delas grudadas.

— Sujeito corrupto, o tal conselheiro que morreu. Andava levando propina. Os Gray tavam pagando uma grana pra ele pra continuarem como fornecedores.

— Ah, é? — disse Simon, como quem não quer nada. Mas, no fundo, estava interessadíssimo.

Barry Fairbrother, hein? Quem diria? 

— Então eu passo aqui, falou? — disse o rapaz, enfiando as oitenta libras bem no fundo do bolso da calça. — E nós dois vamos lá na quarta.

A porta do escritório se fechou. De tão fascinado pela revelação da vigarice de Barry Fairbrother, Simon chegou a esquecer a dor de cabeça, que, na verdade, não passava de um ligeiro incômodo. Barry Fairbrother, sempre tão ocupado e sociável, tão popular e entusiasmado: e, o tempo todo, só embolsando as propinas que levava dos Gray...

Aquela notícia não deixou Simon tão abalado quanto deixaria praticamente qualquer outro que conhecesse Barry, nem desmereceu o conselheiro a seus olhos; muito pelo contrário, ele passou a respeitar ainda mais o falecido. Sabia perfeitamente que qualquer pessoa com um mínimo de inteligência vivia batalhando, por baixo dos panos, para abocanhar o máximo que pudesse conseguir. Ficou parado ali, com os olhos fixos na planilha aberta na tela do computador, mas sem a enxergar, e, mais uma vez, deixou de ouvir o barulho das máquinas do outro lado da vidraça empoeirada.

Quando se tem família, não há outra opção senão trabalhar das nove às cinco, mas Simon sempre soube que existiam alternativas melhores que esta. Sempre soube que uma vida de conforto e fartura pairava sobre a sua cabeça como uma daquelas imensas pinhatas das festas infantis, repleta de boas surpresas, e que ele poderia arrebentar desde que conseguisse um bastão grande o bastante e soubesse exatamente em que ponto devia bater. Como uma criança, Simon acreditava que o resto do mundo existia como palco para o desenrolar da sua própria história pessoal; que o destino estava sempre planando ao seu redor, lançando pistas e indícios no seu caminho, e tinha a nítida sensação de haver sido aquinhoado com um sinal, com uma piscadela celestial.

Essas dicas sobrenaturais estavam por trás de várias decisões aparentemente quixotescas que Simon tomou no passado. Há alguns anos, quando ainda era um simples aprendiz na gráfica, estava às voltas com uma hipoteca que mal podia pagar e uma esposa que acabava de engravidar, apostou cem libras em “Bebê de Ruthie”, um cavalo muito bem-cotado para vencer o Grande Prêmio Nacional, mas que acabou perdendo na reta final. Pouco depois de comprar Hilltop House, Simon aplicou mil e duzentas libras — dinheiro que Ruth tinha esperanças de usar para comprar tapetes e cortinas — numa espécie de fundo de investimento administrado por um sujeito que conhecia lá de Yarvil. O tal dinheiro sumiu juntamente com o diretor da empresa, mas, apesar de ter esbravejado, xingado e chutado o filho caçula escada abaixo só porque ele estava no caminho, Simon não procurou a polícia. Afinal, antes mesmo de investir o seu dinheiro, tinha ficado sabendo de certas irregularidades nas operações da firma e previu a possibilidade de algumas perguntas embaraçosas.

Em contraste com essas calamidades, porém, havia golpes de sorte, expedientes lucrativos, palpites que davam certo, e era a eles que Simon acabava atribuindo um peso maior sempre que fazia um balanço dos prós e dos contras. Era graças a eles que mantinha a fé na boa estrela, que reforçava a sua convicção de que o universo lhe havia reservado muito mais do que aquela história de ficar trabalhando para ganhar um salário modesto até se aposentar ou morrer. Golpes ou jeitinhos, uma mãozinha aqui, um favorzinho ali: era o que todos faziam, até mesmo, como tinha acabado de descobrir, o baixinho Barry Fairbrother.

Ali, naquele minúsculo escritório, Simon Price vislumbrava com olhos cobiçosos a possibilidade de vir a integrar um espaço onde o dinheiro estava sendo agora despejado em cima de uma cadeira vazia, sem que houvesse um colo para recebê-lo.