Uma vez por ano era hábito do Rei Coração Fechado
discursar ao seu povo.
Mas, porque era um homem mais habituado
a manusear a espada que a caneta, costumava ensaiar os discursos. Assim, numa manhã, o Rei Coração Fechado
caminhou para trás e para diante na varanda
do seu palácio magnífico, declamando o seu discurso
com o pássaro azul engaiolado como único público.
«Meu povo», declarou o rei.
«Orgulho-me de ser o vosso líder e sei que vos orgulhais de viver sob minha administração.
Com efeito, sei que me amais.»
Mas, desgraçadamente, o Rei Coração Fechado
foi interrompido… por um risinho…
excerto de REI CORAÇÃO FECHADO
O tiro veio de trás. Uma fúria descontrolada encheu o peito de Lazarus ao ouvir o som. Não podiam. Não tinham o direito de ferir a pequena mártir. Era o seu brinquedo.
Avançou com ferocidade contra o atacante à sua direita, cravando-lhe a espada no ventre. Viu os olhos do homem arregalarem-se em surpresa chocada e, ao mesmo tempo, sentiu que alguém se aproximava pela esquerda. Virou-se, abandonando a espada, e golpeou com a bengala o punho do ladrão. Este uivou de dor, protegendo o punho ferido contra o peito e deixando escapar a faca da mão. Desarmado, percebeu a sua vulnerabilidade. Praguejou e recuou, correndo pela viela fora. Desapareceu tão depressa como tinha aparecido. Lazarus voltou-se para o terceiro homem, mas também ele tinha desaparecido. De repente, a noite ficava silenciosa.
Só então olhou para trás, vendo a pequena mártir. A sua Mistress Dews.
Estava completamente imóvel, segurando uma pistola na mão caída.
Não estava ferida. Não estava morta. «Graças a Deus.»
– Porque não haveis fugido? – perguntou com voz muito gentil.
Viu-a erguer o queixo com dignidade obstinada de mártir. Estava bastante composta, sem um único cabelo desalinhado, com os lábios vermelhos e convidativos.
– Não podia deixar-vos.
– Sim – disse ele, avançando para ela. – Poderíeis e deveríeis tê-lo feito. Ordenei-vos que fugísseis.
Pareceu completamente indiferente à sua ira, olhando para baixo enquanto enfiava a pistola enorme num saco patético.
– Talvez não aceite ordens vossas, milorde.
– Não aceitais ordens – repetiu, parecendo uma velha demasiado alvoroçada. Uma parte da sua mente divertia-se por ver como agia como um idiota diante dela enquanto a outra parte considerava ser muito, muito importante que a mulher soubesse que tinha de lhe obedecer. – Deixai que vos diga…
Avançou para lhe segurar um braço, mas Mistress Dews esquivou-se. Sentiu uma dor intensa no ombro.
– Sangue de Deus!
Viu que franzia a testa.
– O que foi?
A sua preocupação repelira-a, mas a fraqueza aproximava-a. Criatura invertida.
– Nada.
– Então porque haveis gritado de dor?
Espreitou o que a capa escondia e ergueu a face com impaciência.
– Porque, Mistress Dews, parece-me que fui esfaqueado. – Sentiu sangue quente ensopando-lhe a casaca.
Abriu a boca de espanto, empalidecendo visivelmente.
– Santo Deus. Uma facada está muito longe de não ser nada. Porque não dissestes algo? Talvez seja melhor que vos senteis e…
– Quem está aí?
Voltaram-se os dois e viram uma mulher pequena e curvada atravessada na porta do sapateiro. Semicerrou as pálpebras e inclinou a cabeça.
– Ouvi um tiro.
Lazarus avançou para ela, mas, quando o fez, a mulher dirigiu-se para o interior. Não lho permitiria. Moveu um braço e fechou rapidamente a porta atrás dela, impedindo-lhe a fuga.
– Procuramos Martha Swan.
A mulher encolheu-se ao ouvir o nome.
– Quem sois – gritou, olhando para um lado e para o outro. Era evidente que seria cega ou quase cega. – Não quero envolver-me com…
Mistress Dews pegou-lhe numa mão.
– Não queremos fazer-vos mal. Disseram-nos que Martha Swan vive aqui.
O toque pareceu acalmá-la, mas mantinha a respiração acelerada como se pretendesse fugir logo que pudesse.
– Sim, Martha viveu aqui.
Mrs. Dews pareceu desiludida.
– Foi-se embora?
– Morreu. – A mulher inclinou a cabeça. – Foi encontrada morta esta manhã.
– Como? – Lazarus semicerrou os olhos. Tinha o braço ensopado em sangue, mas precisava daquela informação.
– Dizem que foi aberta – sussurrou a mulher. – Aberta de alto a baixo, com as entranhas espalhadas.
– Santo Deus – exclamou Mrs. Dews. Perdeu a força nos dedos com que segurava a mão da velha. A mulherzinha virou-se e abriu a porta, regressando rapidamente para dentro de casa.
– Esperai! – gritou Mrs. Dews.
– Deixai-a ir – disse Lazarus. – Disse-nos o que precisávamos de saber.
Mrs. Dews abriu a boca como se pretendesse argumentar, mas voltou a fechá-la, formando uma linha reta com os lábios. Lazarus esperou um momento para perceber se a ira dela ganharia o duelo contra a contenção. Mas limitou-se a olhá-lo.
– Um dia, acabareis por quebrar – murmurou ele. – E rezo a Deus para estar presente quando acontecer.
– Não faço qualquer ideia do que pretendeis dizer.
– Fazeis, sim. – Virou-se e apoiou deliberadamente a bota no peito do homem em quem cravara a espada. Com um gemido de dor, puxou a espada curta do corpo. O homem estava deitado de costas, com a luz de uma janela próxima refletida por olhos abertos que nada viam. Tinha uma cobertura de couro sobre o nariz que lhe faltava. Teria pensado que seria possível chegar ao fim do dia morto sobre a imundície de uma viela? Era pouco provável.
Mas só um tolo choraria a morte do seu próprio assassino.
Lazarus curvou-se para limpar a lâmina no casaco do homem antes de a embainhar na bengala negra. Olhou Mrs.Dews. Observava os seus movimentos com preocupação bem visível nos olhos arregalados.
– Será melhor que regresseis à segurança relativa do vosso lar, senhora.
Mrs. Dews acenou com a cabeça, caminhando ao lado dele. Lazarus andava rapidamente, com a bengala bem segura na mão direita. Não pretendia ser um alvo fácil se os seus atacantes voltassem. Tal como não pretendia ser um alvo fácil para quaisquer outros predadores que vagueassem pelas ruas de St. Giles. A noite estava escura como breu, com nuvens ocultando a Lua. Seguiu em frente por instinto, aproveitando a luz inconstante dos edifícios pelos quais passavam. Mrs. Dews era um vulto sombrio a seu lado e o seu avanço mais lento não o abrandava. Sentia por ela uma admiração relutante. Podia ter recusado a sua ordem anteriormente, mas não vacilara durante o confronto ou depois de saber que tinha sido ferido. Com efeito, fora precavida a ponto de trazer uma pistola, mesmo que tivesse sido inútil.
– Tereis de praticar se pretendeis trazer uma arma para vossa defesa – disse-lhe. Sentiu-a ficar hirta a seu lado.
– Parece-me que fui bastante capaz quando disparei.
– Falhastes.
Virou a cara para ele e, mesmo com a escuridão, conseguiu captar a sua indignação.
– Disparei para o ar!
– O quê? – Parou, segurando-a pelo braço.
Voltou a tentar escapar-se até ao momento em que pareceu recordar o ferimento. Os lábios estreitaram-se com a irrita-ção.
– Disparei para o ar porque receei atingir-vos se tentasse mirar os bandidos.
– Tola – silvou ele, sentindo o coração acelerar de medo. – Pequena mártir tonta.
– O quê?
– Na próxima ocasião… se houver uma próxima ocasião, mirai o atacante e não vos preocupeis com as consequências.
– Mas…
Sacudiu-lhe o braço.
– Fazeis ideia do que vos teriam feito se não tivesse conseguido repeli-los?
Mrs. Dews inclinou a cabeça, incrédula.
– Preferíeis que tivesse disparado, possivelmente atingindo-vos e matando-vos?
– Sim. – Soltou-a e seguiu caminho pela viela. A dor fazia-lhe palpitar o ombro e o sangue que lhe ensopava a camisa começava a arrefecer.
Mrs. Dews acelerou para ficar a seu lado.
– Não vos compreendo.
– Não há muitos que compreendam.
– A minha vida não poderá valer mais que a vossa.
– Que vos faz pensar que a minha vida valerá alguma coisa? – perguntou, delicadamente.
Aquilo pareceu calá-la, pelo menos temporariamente. Percorreram a viela até alcançarem uma rua mais larga.
– É muito estranho – murmurou Mrs. Dews.
– O quê? – Lazarus teve o cuidado de manter a cabeça erguida e o olhar alerta.
– Que Martha Swan tenha tido exatamente a mesma morte que a vossa amante.
– Não é nada estranho se tiverem sido mortas pela mesma pessoa. – O olhar rápido que Mrs. Dews lhe dirigiu foi mais sentido que visto.
– Acreditais que foi o mesmo assassino?
Encolheu os ombros e teve de conter um gemido quando a dor lhe dilacerou o ombro.
– Não sei, mas seria muito bizarro se houvesse mais de um assassino em Saint Giles com esse método particular de matar mulheres.
Pareceu pensativa durante vários minutos e acabou por dizer lentamente:
– A minha criada, Nell Jones, diz que o Fantasma de Saint Giles esventra as suas vítimas.
Lazarus riu-se, mesmo com a dor crescente no ombro.
– Haveis visto esse fantasma, Mistress Dews?
– Não, mas…
– Nesse caso, parece-me que o fantasma será apenas uma história para assustar crianças em noites escuras. O homem que procuro é de carne e osso.
Caminharam em silêncio durante o que pareceu muito tempo antes de verem a porta do lar de órfãos.
Lazarus gemeu, sentindo-se aliviado e zonzo em simultâneo.
– Aí está. Não vos esqueceis de trancar a porta depois de entrardes.
– Não. Nem pensar. – Segurou-lhe o braço são.
Estacou por um momento. A manga impedia que a mão dela lhe tocasse a pele, mas ninguém o tocava sem permissão. Habitualmente, reagia com sarcasmo, violência ou rejeição. Com ela, não sabia o que fazer.
Enquanto se erguia ali, atordoado, Mrs. Dews pousou o saco, ergueu uma chave que escondera algures sob a capa e destrancou a porta do lar.
– Teremos de examinar o ferimento.
– Não é necessário – afirmou, secamente.
– Agora – disse ela. E, de alguma forma, Lazarus deu consigo dentro da velha cozinha. Atravessara-a na noite da sua primeira visita a caminho da saleta. Estava vazia e a única luz provinha dos carvões incandescentes na lareira. Naquele momento, o fogo era vivo e havia um bando de crianças de várias idades.
E um homem.
– Chegastes, senhora! – exclamou a rapariga mais velha.
Ao mesmo tempo, o homem ergueu-se da mesa da cozinha, parecendo intrigado.
– Temperance?
– Winter, vieste mais cedo – afirmou, aparentemente despreocupada. – Sim, cheguei, Mary Whitsun, sã e salva. Mas receio que o mesmo não se aplique a Sua Senhoria. Podes encher uma tigela com água quente? Joseph Tinbox, traz-me o saco dos trapos. Mary Evening, podes libertar espaço na mesa? E vós, sentai-vos aqui. – A última ordem foi dirigida a Lazarus. Decidiu ser cauteloso e sentar-se obedientemente na cadeira que lhe foi indicada. O irmão de Mrs. Dews fixava nele um olhar intenso e Lazarus tentou parecer débil, ferido e indefeso, apesar de sentir que não conseguia convencê-lo.
A cozinha estava quente e o teto baixo estucado refletia o calor da fogueira. Via que as crianças estariam a meio de uma refeição de algum tipo. Havia uma enorme chaleira sobre o fogo que uma das raparigas mais velhas supervisionava e havia algum tipo de massa sobre a mesa. Todas as crianças estavam ocupadas exceto um rapaz pequeno que se equilibrava sobre um pé, olhando-o fixamente com um gato preto pendurado sobre o braço.
Lazarus arqueou uma sobrancelha ao rapaz e fê-lo esconder-se atrás das saias de Mrs. Dews, levando o gato con-sigo.
– Quem é este cavalheiro, Temperance? – perguntou Winter Makepeace delicadamente.
– Lorde Caire – respondeu Mrs. Dews enquanto ajudava a criança chamada Mary Evening a retirar um alguidar de farinha da mesa. O rapaz imitou-lhe os movimentos sem deixar o seu esconderijo atrás das saias. – Está ferido.
– Deveras? – perguntou Makepeace, elevando muito ligeiramente a voz. – E como aconteceu isso?
Hesitou uma fração de segundo (foi tão breve que talvez Lazarus tivesse sido o único a perceber), olhando-o logo a seguir.
Lazarus sorriu, mostrando os dentes. Não tinha qualquer vontade de a ajudar a sair do embaraço óbvio, já que a explicação que desse seria muito mais interessante.
Mrs. Dews uniu os lábios por um momento antes de falar.
– Lorde Caire foi atacado a menos de quinhentos metros daqui.
– Sim? – Makepeace inclinou a cabeça num gesto familiar, esperando o resto da explicação da sua irmã.
– E trouxe-o para casa para podermos tratá-lo. – Esboçou um sorriso pronto e ofuscante ao seu irmão.
Mas o homem estava mais habituado que Lazarus às suas manhas. Limitou-se a arquear as sobrancelhas.
– Encontraste Lorde Caire? Sem mais nem menos?
– Bom… não…
Mrs. Dews seria certamente uma preferida de Deus. O rapazinho que mandara trazer o «saco dos trapos» voltou nesse momento, salvando-a da necessidade de dar uma explicação.
– Muito bem, Joseph Tinbox. Obrigada. – Aceitou o saco e colocou-o na mesa, junto à tigela de água fumegante que a rapariga chamada Mary Whitsun enchera. A seguir, fixou nele um olhar severo. – Despi-vos.
Lazarus arqueou as sobrancelhas, imitando o seu irmão.
– Perdão?
Os deuses puni-lo-iam pelo deleite que sentia. As faces dela ficaram aprazivelmente rosadas.
– Retirai… hmm… as vossas vestes da cintura para cima, milorde – disse, entredentes.
Lazarus escondeu o sorriso enquanto tirava o chapéu e se curvava para abrir o fecho da capa. Deixou-a cair e precisou de conter uma praga com a dor que o movimento lhe provocara no ombro.
– Deixa-me ajudar. – Subitamente, estava a seu lado, ajudando-o a despir a casaca e o colete. Senti-la tão próxima distraía-o e era estranhamente aprazível. Deu consigo a inclinar-se para ela, talvez atraído pela curva terna do seu pescoço ou pelo cheiro subtil a lavanda e a fêmea.
Ergueu os braços com relutância, permitindo-lhe que puxasse a camisa e ficando em tronco nu. Quando ergueu o olhar, estava rodeado por um círculo de crianças curiosas. Até o rapazinho abandonara o seu esconderijo.
Segurava o gato abaixo da cabeça, com as patas traseiras penduradas. Pareceria morto se não ronronasse.
– Chama-se Fuligem.
– Fascinante – replicou Lazarus. Odiava gatos.
– Mary Whitsun – disse Makepeace –, por favor, leva as crianças mais pequenas para a sala de jantar. Ouvirás enquanto recitam os seus salmos.
– Sim, senhor – respondeu a criança, conduzindo as restantes para fora.
Mrs. Dews pigarreou.
– Talvez seja melhor ires com elas, Winter. Conseguirei lidar com isto sozinha.
O homem esboçou um sorriso demasiado benevolente.
– Creio que Mary Whitsun conseguirá fazê-lo suficientemente bem sozinha, irmã.
Makepeace voltou a sentar-se do outro lado da mesa, mas, quando a irmã voltou costas para procurar algo num armário, fixou um olhar em Lazarus, um olhar que não lhe custou interpretar. Winter Makepeace poderia ser dez anos mais novo e parecer um monge ascético, mas, se Lazarus magoasse a sua irmã, faria tudo o que estivesse ao seu alcance para o enviar para o inferno.
TEMPERANCE VOLTOU DO ARMÁRIO com o frasco de unguento nas mãos. Tentou evitar um esgar de repulsa ao ver o ferimento de Lorde Caire. O sangue tingira-lhe o ombro e pingara até ao pulso, parecendo surpreendentemente carmesim contra a pele clara. Sangue fresco pingava-lhe pelo peito abaixo depois de ter reaberto o ferimento enquanto despia a camisa. Seguiu com o olhar o rasto ensanguentado, pelo peito inesperadamente musculado e mal semeado de pelos pretos, sobre o castanho chocante do mamilo nu, até uma linha de pelo escuro que lhe começava no umbigo e desaparecia no cós das calças.
Santo Deus.
Voltou a erguer rapidamente o olhar e virou-se, tentando recordar o que fazia. Havia um frasco de unguento nas suas mãos. O ferimento. Claro. Precisava de o limpar e tratar.
Temperance engoliu em seco e regressou à mesa com o unguento, vendo que Winter olhava fixamente o aristocrata. Moveu rapidamente o olhar entre os dois homens, semicerrando as pálpebras. Winter retomou a expressão de inocência paciente enquanto Lorde Caire retribuía o olhar fixo que Temperance lhe dirigia, inclinando um canto da boca larga com um brilho diabolicamente divertido nos olhos. Tê-la-ia visto a olhar-lhe o corpo nu?
Maldição. Não era o momento de se sentir envergonhada por disposições feminis.
Temperance inspirou fundo para se acalmar, dando-se ao trabalho de afastar cuidadosamente o olhar do peito hipnótico de Lorde Caire.
– Gostaríeis de um pouco de vinho, milorde? O procedimento poderá ser doloroso.
– Por favor. Não quero ficar fraco e desmaiar. – As palavras eram inocentes, mas havia ironia no tom.
Censurou-o com um olhar enquanto Winter se erguia para ir buscar a única garrafa de vinho que tinham, guardada para uma ocasião especial. Prestar cuidados de enfermagem na cozinha do lar era certamente especial.
Temperance encontrou um trapo limpo no saco e humedeceu-o com a água quente. Voltou-se para Lorde Caire com determinação. Winter voltara e puxou a rolha da garrafa. Encheu um copo e passou-o a Lorde Caire. Temperance limpava o sangue à volta do ferimento enquanto o lorde bebia um gole de vinho. A pele de Lorde Caire era quente e macia. Sentiu-o hirto sob os dedos e viu que pousava o copo de forma abrupta. Olhou-lhe a face. Viu que mantinha o olhar fixo no vazio.
– Magoo-vos? – perguntou, preocupada. Ainda nem sequer tocara o ferimento, mas havia pessoas mais sensíveis à dor que outras. Talvez não troçasse quando falara em desmaiar.
Houve uma pausa, quase como se não a tivesse ouvido. A seguir, pestanejou.
– Não. Não sinto qualquer dor.
A sua voz era fria e não havia qualquer humor nos seus olhos. Havia um problema qualquer, mas não conseguia perceber o que era.
Voltou a concentrar-se no ferimento. Teve uma sensação estranha. Pareceu-lhe que Lorde Caire precisava de grande esforço para se impedir de a empurrar para longe de si. Pressionou o trapo sobre o ferimento, quase esperando que reagisse com violência. Ao invés, a dor provocada pareceu descontraí-lo um pouco.
Que peculiar.
Ergueu o trapo e examinou o ferimento limpo. Tinha apenas alguns centímetros de largura, mas a profundidade era obviamente muito maior. Sangue fresco jorrava constantemente e mantinha-se aberto.
– Terei de coser isto – disse, erguendo o olhar.
Estava tão próximo, com a face a meros centímetros da sua. Conseguia ver um pequeno músculo palpitando junto à boca. O movimento involuntário contrastava profundamente com o porte estático. Algo se agitou nas profundezas dos olhos azuis brilhantes. Algo que se assemelhava a sofrimento.
Temperance susteve a respiração, chocada.
– Vou buscar o teu estojo – disse Winter do outro lado da mesa.
Temperance ergueu a face. O irmão levantava-se já, mantendo a expressão serena. Teria notado a dor nos olhos de Lorde Caire? Ou o olhar que tinham partilhado?
Obviamente não.
Expirou, procurando algo no saco de trapos para ocupar as mãos que tremiam. Cosera inúmeros pequenos cortes, tratando arranhões, galos e febres, mas nunca tinha provocado o tipo de dor que se via nos olhos de Lorde Caire. Nem sequer percebia se conseguiria continuar.
– Fazei-o – murmurou Lorde Caire.
Olhou-o, sobressaltada. Teria conseguido ler-lhe os pensamentos de alguma forma?
Olhava-a com expressão receosa.
– Cosei-me depressa para poder partir.
Olhou o outro lado da cozinha, mas Winter continuava a procurar o seu estojo num armário. Olhou novamente Lorde Caire.
– Não quero magoar-vos.
A sua boca larga estremeceu, mas foi difícil perceber se teria sido uma reação dorida ou um sorriso.
– Asseguro-vos, Mistress Dews, que, independentemente do que possais fazer, não conseguireis agravar a minha dor.
Olhou-o fixamente e percebeu que a dor de que falava não tinha nada a ver com o ferimento no ombro. O que teria…?
– Creio que está tudo aqui – disse Winter, pousando o seu estojo na mesa. – Temperance?
– Sim? – Olhou-o, esboçando um sorriso automático. – Sim. Obrigada, irmão.
Winter transferiu o olhar dela para Lorde Caire, mas sentou-se sem dizer mais nada.
Temperance suspirou de alívio. A última coisa de que precisava era que Winter questionasse as suas ações naquele momento. Abriu o estojo, uma pequena caixa de lata onde guardava agulhas grandes, fio de intestino de gato, uma pinça afiada, uma tesoura e outros instrumentos úteis para tratar ferimentos em crianças pequenas que caíam com frequência. Agradava-lhe ver que os seus dedos tinham deixado de tremer.
Introduzindo o fio numa agulha resistente, voltou-se novamente para o ombro de Lorde Caire e fechou o ferimento com os dedos. Deu o primeiro ponto. Era frequente que as crianças tivessem de ser imobilizadas quando fazia aquilo. Algumas gritavam, choravam ou ficavam histéricas, mas era óbvio que Lorde Caire era mais resistente. Ouviu-o inspirar quando lhe furou a pele, mas não deu qualquer outro sinal de dor. Com efeito, parecia mais descontraído do que quando lhe limpara o ferimento.
Mas não conseguia pensar naquele momento. Temperance aproximou-se um pouco mais, assegurando que os pontos eram pequenos, meticulosos e firmes. Teriam de manter a carne unida para sarar adequadamente, mas pontos mal colocados poderiam deixar uma cicatriz mais visível.
Suspirou de alívio quando cortou o fio depois do último ponto.
– Pronto. Está quase – murmurou, tanto para si como para o homem que tratava.
Não lhe respondeu, continuando tão imóvel como uma estátua enquanto abria o frasco de unguento gorduroso. Mas quando cobriu com ele o ferimento, levemente e usando apenas um dedo, sentiu-o estremecer. Tirou a mão, sobressaltada, e afastou-lhe o olhar da cara.
A sua testa brilhava com gotículas de suor.
– Terminai.
Hesitou, mas não podia deixar o ferimento como estava. Mordendo o lábio, espalhou o unguento tão rapidamente quanto conseguia, percebendo que a respiração de Lorde Caire acelerara. Puxou um pano do saco e dobrou-o, começando a rodear-lhe o peito. Exigia que ficasse próxima dele, rodeando-lhe o tronco com os braços. Lorde Caire inspirou e pareceu suster a respiração, afastando a cara como se a proximidade dela o repelisse.
O seu incómodo evidente deveria ter feito esmorecer a reação do corpo dela à sua proximidade, mas não aconteceu. O calor da sua pele, a pulsação cardíaca que lhe sentia no pescoço e até o seu odor masculino combinavam-se para despertar nela os seus velhos demónios. Temperance tremia outra vez quando acabou de atar a ligadura.
Assim que lhe virou as costas, Lorde Caire levantou-se da cadeira.
– Obrigado, Mistress Dews.
Olhou-o fixamente.
– Mas… a vossa camisa…
– Passou a ser mais um trapo para o vosso saco. – Cobriu os ombros nus com a capa sem conseguir evitar um esgar e pegou no tricórnio. – Tal como o meu colete e a casaca. Mais uma vez, Mistress Dews, obrigado e boa noite, Mister Makepeace.
Cumprimentou-os aos dois com breves movimentos da cabeça antes de se dirigir para a porta das traseiras.
Temperance endireitou-se, sentindo um pânico estranho na garganta. Não podia querer voltar para casa a meio da noite.
– Estais ferido, milorde. E sozinho. Talvez fosse recomendável que ponderásseis passar a noite connosco.
Voltou-se, com a capa negra abrindo-se com o movimento e tocando a aba do chapéu com a extremidade da bengala negra. Pela primeira vez, Temperance notou que o castão de prata da bengala tinha a forma de um falcão pousado.
– A vossa preocupação é lisonjeira, minha senhora, mas asseguro-vos que conseguirei chegar a casa e à minha cama em segurança.
E, com aquilo, partiu.
Temperance suspirou, sentindo-se estranhamente desiludida.
Até Winter se mover lentamente na cadeira, fazendo-a chiar.
– Penso que me deverás uma explicação, irmã, quanto à forma como travaste conhecimento com o infame Lorde Caire.
ERA UMA CRIATURA DA NOITE, imprópria para ter companhia humana.
A noite de St. Giles envolvia Lazarus enquanto se afastava de Maiden Lane e do inocente lar de Mrs. Dews. Adequava-se tanto ao sítio como um falcão a um pombal. Saltou sobre o canal fedorento que corria no meio da rua e virou para uma rua mais pequena, dirigindo-se para oeste. Que pensaria ela dele, um animal miserável e retorcido que nem sequer conseguia suportar o toque dos seus semelhantes? Uma sombra moveu-se num vão de porta à frente e correu para ela, acolhendo a possibilidade de violência. Mas a sombra destacou-se da escuridão que a envolvia e uma figura esguia fugiu pela noite fora.
Lazarus abrandou novamente o passo, amaldiçoando a perda de uma distração. Sentiu um pingo escorrendo-lhe pelo flanco. Voltara a abrir o ferimento com o esforço. Mas não era por esse motivo que procurava distração.
Sentia-se túrgido e palpitante desde que Mrs. Dews lhe tocara a pele nua com as mãos delicadas e pálidas. Além de provocar dor mental desesperante, o seu toque motivara também uma luxúria tão intensa que se prolongara até ao frio noturno. Riu-se sem produzir qualquer som. A pequena mártir ter-se-ia sentido certamente enojada se soubesse o que lhe fizera. Ficaria ainda mais chocada se soubesse qual era o seu método preferido para saciar tais ânsias corporais. Se o sangue não lhe ensopasse as calças, encontraria uma mulher que acedesse às suas exigências. Levaria a escolhida para um quarto próximo e…
A recordação da sua última amante entrou-lhe à força na cabeça. Marie. Marie estava morta. O seu corpo tinha sido transformado num grotesco monte de carniça. Fora assassinada no quarto que lhe alugara em St. Giles. Fora ela a exigi-lo e, com o tempo (tinham passado já dois anos), passou a ver o local apenas como sendo bastante inconveniente. Mas tornava--se claro que St. Giles guardava a chave do seu homicídio. Não foi apenas o seu ferimento a impedi-lo de aliviar a luxúria que Mrs. Dews provocara. Tornara-se um alvo naquela noite. O assassino sem nariz estivera na taberna de Mãe Coração--Tranquilo na noite anterior. Talvez fosse apenas um salteador ansioso por uma bolsa, mas Lazarus não acreditava nessa possibilidade.
Alguém não queria que encontrasse o assassino de Marie.
– CONHECES LORDE CAIRE? – Temperance olhou fixamente o seu irmão.
Arqueou-lhe uma sobrancelha antes de responder.
– Posso ser um simples mestre-escola, irmã, mas também ouço os rumores que circulam por Saint Giles.
– Ah. – Baixou o olhar para as mãos enquanto limpava e guardava automaticamente a agulha e a tesoura. A única coisa em que pensava era no facto de, aparentemente, ser a única a não ter ouvido falar de Lorde Caire.
Winter suspirou e levantou-se. Dirigiu-se a um armário e tirou dois copos pequenos. Eram objetos frágeis que, outrora, tinham pertencido à sua mãe. Pertenciam a um conjunto que originalmente tivera seis. Trouxe-os para a mesa e encheu-os cuidadosamente com vinho tinto.
A seguir, sentou-se e bebeu, fechando os olhos enquanto engolia. Inclinou a cabeça para trás, aprofundando as rugas à volta da boca.
– Este vinho é atroz. Surpreende-me que Lorde Caire não tenha atirado o copo à parede.
Temperance estendeu a mão para o seu copo e provou. O líquido doce e ácido aqueceu-lhe o estômago. O vinho podia ser barato, mas não se importou. Sempre achara bizarro que Winter, habitualmente um homem ascético, fosse tão exigente com o vinho.
– Dizes-me onde conheceste o infame Lorde Caire? – perguntou Winter em voz baixa, mantendo os olhos fechados.
Temperance suspirou.
– Veio visitar-me há duas noites.
Abriu os olhos nesse instante.
– Aqui?
– Sim. – Temperance torceu o nariz, pousando cuidadosamente o copo de vinho na mesa da cozinha.
– Porque não fui informado dessa visita?
Encolheu os ombros, evitando-lhe o olhar.
– Dormias quando veio. – Susteve a respiração, pensando se teria de explicar como Lorde Caire viera.
Mas Winter tinha outras preocupações.
– Porque não me acordaste, Temperance?
– Sabia que não aprovarias. – Suspirou e sentou-se na cadeira que Lorde Caire ocupara. Tinha arrefecido. Soubera que teria de ter aquela conversa com Winter nalgum momento, mas adiara-a cobardemente. – Não sei ao certo porque é infame, como dizes, mas soube que não te agradaria que me associasse a ele.
– Mentiste-me.
– Sim. – Ergueu o queixo, ignorando a pontada de culpa. – Fiz um acordo com ele. Ajudar-me-á a encontrar um patrono para o lar e, em troca, ajudá-lo-ei a encontrar o assassino da sua amante.
– Ah sim?
Temperance inspirou fundo.
– Já paguei a renda com o dinheiro que me facultou.
Seguiu-se um silêncio chocado. Temperance engoliu em seco e olhou para baixo, evitando a expressão de mágoa terrível na face de Winter. Fazia aquilo por ele, recordou a si mesma. Por Winter e pelo lar.
Após um momento, ouviu um suspiro longo ao irmão.
– Receio que não compreendas aquilo em que te envol-veste.
– Não sejas condescendente. – Ergueu o olhar com determinação. – Compreendo que o lar fechará mesmo que te mates a trabalhar. Compreendo que não posso limitar-me a assistir e a permitir que aconteça. Compreendo que posso ajudar. Compreendo…
– Lorde Caire é célebre pelas suas perversões sexuais – disse Winter. As palavras secas e precisas interromperam o discurso inflamado.
Temperance olhou-o fixamente, fechando a boca. Se fosse uma boa mulher, uma mulher casta e devota, as palavras ter--lhe-iam causado repulsa. Ao invés, sentiu uma ânsia intensa e profunda pelo que era proibido. Santo Deus.
Winter prosseguiu.
– Tem cuidado, irmã. Não posso impedir-te e, por isso, não tentarei fazê-lo. Mas, se algum dia acreditar que corres perigo, informarei Concord deste assunto.
Temperance encheu os pulmões e não disse nada.
Os olhos castanhos de Winter, habitualmente tão calmos e ternos, tinham-se tornado duros e determinados.
– E atenta nas minhas palavras: Concord conseguirá impedir-te.