Capítulo 6

 

 

 

 

 

O Rei Coração Fechado chamou os guardas,

ordenando que lhe trouxessem quem tinha a ousadia de se rir dele. Segundos depois, Meg foi arrastada até ao rei, esfarrapada e suja.

«Como te chamas?», trovejou o Rei Coração Fechado.

«Meg, Majestade.»

Olhou-a com desagrado.

«Que te pareceu tão divertido no meu discurso?»

Os guardas e os cortesãos, atraídos pelo alarido,

esperaram que a criada diminuta se atirasse aos pés do rei,

suplicando pela vida.

Mas Meg esfregou a ponta do nariz enegrecido e decidiu que, estando já condenada, o melhor seria dizer a verdade.

«Apenas que acreditais ser amado pelo vosso povo, Majestade.» …

excerto de REI CORAÇÃO FECHADO

 

 

 

Era a tentação personificada.

Temperance fitou Lorde Caire, sentindo o batimento acelerado do coração e a ânsia dolorosa entre as coxas. Evitara homens durante os nove anos anteriores precisamente pelos seus desejos pecaminosos. Apesar disso, ali estava ela, sentada diante de um homem mais sedutor que qualquer outro que alguma vez tivesse conhecido. Sabia exatamente como despertar os seus demónios, como provocar e excitar até ficar num frenesim febril. E o mais horrível era que parte dela queria… precisava… de ceder. De se submeter ao encanto dos seus olhos azuis. De se ajoelhar diante dele e de tocar a parte mais terrena de um homem. De fazer o que era proibido e recebê-lo na boca num ato que não podia ter qualquer fim reprodutivo.

Um ato puramente carnal.

«Não.»

Temperance afastou os olhos do olhar hipnótico, enchendo os pulmões com uma inspiração forçada.

– Deixai-me sair.

Por um momento, Lorde Caire não se moveu, limitando-se a fitá-la com os olhos cor de safira que pareciam queimar-lhe a pele exposta. Susteve a respiração ao pensar na possibilidade de não a deixar ir, de a obrigar a fazer as coisas pérfidas que enumerava com aquela voz grave.

A seguir, suspirou.

– Muito bem, Mistress Dews.

Ergueu-se e abriu a porta da carruagem, descendo em primeiro lugar e estendendo uma mão para a ajudar a descer. Temperance colocou-lhe os dedos trémulos na mão e, durante um longo segundo, a mão dele fechou-se sobre a sua, quente e possessiva, mesmo dentro da luva. A seguir, os pés dela tocaram o chão e Lorde Caire soltou-a, oferecendo-lhe o braço. Aceitou-o, inspirando para se equilibrar e percebendo que estremeceu quando o tocou. Em redor, mulheres bem vestidas desciam de carruagens brasonadas. O vestido cor de cereja em que Nell trabalhara arduamente durante toda a tarde parecia velho e demasiado óbvio, com a fita no cabelo parecendo decididamente imprópria. Engoliu com trepidação repentina. Não pertencia ali. Era um pardal entre pavões.

Lorde Caire inclinou-se para ela.

– Estais preparada?

Inclinou o queixo.

– Sim, claro.

– Corajosa mesmo entrando num covil de leões – murmurou.

No interior, a casa de Lady Beckinhall cintilava com o brilho de mármore branco, talha dourada e cristal. No alto, um candelabro ostentava centenas de velas. Temperance entregou distraidamente o seu velho xaile de lã cinzenta a um criado, não se importando quando o viu fazer uma careta e pegar-lhe com o polegar e o indicador. A casa era como um castelo de conto de fadas. Passou os dedos pelo corrimão de mármore enquanto Lorde Caire a acompanhava pelas escadas acima. Quantos criados precisavam de passar dias ajoelhados para manter o mármore branco limpo?

No topo da escadaria, seguiram a corrente de gente faustosamente vestida até um salão longo com espelhos cobrindo uma parede inteira, criando a ilusão de milhares de mulheres de belos vestidos acompanhadas por incontáveis cavalheiros elegantes. Se estivesse sozinha, Temperance poderia ter fugido, mas sentia o braço de Lorde Caire sólido e quente sob os dedos.

– Coragem – murmurou-lhe ele.

– O meu vestido – disse ela entredentes.

– Não há problema algum com o vosso vestido – respondeu ele com um sussurro. – Não vos teria deixado entrar se assim não fosse. Além disso, não tendes qualquer motivo para sentir vergonha entre esta multidão. Sois tão eloquente e sagaz como estas senhoras. E tendes algo que lhes falta: sabeis desenvencilhar-vos no mundo.

– Habitualmente, esse não é um traço de que alguém deva orgulhar-se – respondeu Temperance.

Lorde Caire olhou-a.

– Talvez devesse ser. Erguei bem a cabeça.

Uma das senhoras sofisticadas voltou-se quando entraram e aproximou-se lentamente. O seu vestido era de um azul intenso e, quando se aproximou mais, Temperance percebeu que o que inicialmente julgara serem flores bordadas na saia eram, na verdade, rubis e esmeraldas presos ao tecido.

Santo Deus.

– Lazarus – disse a criatura etérea –, que inesperado encontrar-te aqui.

Tinha uma beleza notável, como uma deusa descida à Terra para se divertir à custa dos mortais. Àquela distância, Temperance via que tinha dois alfinetes encantadores no cabelo: diamantes, esmeraldas e rubis formando pássaros. Pequenos diamantes na extremidade de fios delicados tremiam sempre que movia a cabeça.

Precisou de esforço para não abrir a boca de espanto, mas era evidente que Lorde Caire não sentia o mesmo assombro diante da mulher. Baixou a cabeça numa vénia tão breve que se tornava insultuosa.

Os lábios magníficos dela estreitaram-se e voltou o olhar para Temperance

– E quem é esta… pessoa?

– Apresento-vos Mistress Dews – afirmou Lorde Caire sem rodeios.

Temperance notou que não lhe apresentava a outra mulher.

Aparentemente, também ela notou. Ficou hirta.

– Se tiveres trazido uma das tuas rameiras para a casa de Lady Beckinhall…

Lorde Caire arqueou uma sobrancelha.

– A vossa imaginação assenta-vos mal, minha senhora. Asseguro-vos que Mistress Dews será provavelmente a pessoa mais respeitável aqui presente.

A mulher semicerrou os olhos.

– Cautela, Lazarus. Estás muito perto de passar os limites do aceitável.

– Estou?

– Que te é esta mulher?

Temperance sentiu a face aquecer como consequência da forma como a mulher manifestava de forma tão óbvia o desprezo que por ela sentia. Falava como se Temperance fosse um cão ou um gato, um animal irracional incapaz de comu-nicar.

– Uma amiga – explicou Temperance.

– Que disseste? – A mulher pestanejou como se fosse surpreendente ouvi-la falar.

– Disse que sou amiga de Lorde Caire – explicou Temperance com firmeza. – E vós sois…?

– Lazarus, diz-me que é uma brincadeira. – Voltou-se novamente para Lorde Caire, ignorando Temperance de forma tão completa como faria certamente a uma criada.

– Não é uma brincadeira. – Lorde Caire esboçou um sorriso ligeiro. – Pensei que ficaríeis feliz por ter escolhido uma senhora respeitável para me acompanhar nesta ocasião.

– Respeitável! – A mulher fechou os olhos como se a palavra a enojasse. A seguir, os seus olhos cor de safira arregalaram-se. – Manda-a embora e permite-me que te apresente alguém do teu estatuto. Há várias jovens solteiras que…

Mas Lorde Caire começara já a afastar-se com Temperance.

– Lazarus! – silvou a mulher. – Sou a tua mãe.

Lorde Caire voltou-se com um movimento rígido e um sorriso cruel nos lábios.

– Fui informado desse facto, minha senhora.

Curvou-se. Uma expressão fugaz surgiu na face da mulher enquanto se voltavam novamente. Algo vulnerável e pouco comum. Dor, talvez? A seguir, a sua expressão voltou a ficar controlada e fria e deixaram-na para trás.

Temperance olhou Lorde Caire, sabendo que tinha corado.

– Era a vossa mãe?

– Para mal dos meus pecados – replicou ele, usando um punho elegante para cobrir um bocejo.

– Santo Deus. – Nunca teria adivinhado qual era o seu parentesco partindo da hostilidade declarada que Lorde Caire por ela demonstrara. Odiaria a sua própria mãe? Franziu a testa ao recordar outra coisa.

– Acreditava realmente que era a vossa…

– Sim – interrompeu. Olhou-a e a sua voz tornou-se mais delicada. – Não permitais que vos preocupe. Qualquer outra pessoa precisará apenas de vos olhar para perceber que nunca deixaríeis que vos corrompesse.

Temperance afastou o olhar, não conseguindo perceber se gracejava ou não. E foi nesse momento que aconteceu. Quando pousou um pé no chão, sentiu algo prender e ouviu um ras-gão.

– Oh, não.

– O que foi?

Temperance olhou o vestido, esperando não ter sido demasiado óbvia.

– Rasguei a bainha. – Ergueu o olhar para ele. – Há algum local onde possa repará-la?

Acenou afirmativamente e, imediatamente, pediu a um criado que lhe indicasse onde ficava a sala de retoques das senhoras. Ficava ao fundo de um corredor curto e Temperance ergueu cuidadosamente as saias enquanto se dirigiam para lá. Temperance olhou em redor quando entrou. A sala estava bem iluminada e fora mobilada com gosto, contendo cadeiras baixas onde as senhoras poderiam sentar-se. Mas não havia ninguém em redor. Ergueu-se, momentaneamente perplexa. Não era suposto haver criadas para auxiliar as senhoras?

Encolheu os ombros e sentou-se para examinar a bainha.

– Posso ajudar?

Temperance ergueu a cabeça, esperando ver uma criada, mas viu apenas uma mulher que tinha entrado. Era alta e pálida, com postura tão correta como a de uma rainha, e o cabelo encantadoramente ruivo. Envergava um vestido esplêndido com uma cor verde-acinzentada notável e bordado a prata.

Temperance pestanejou.

A mulher pareceu incomodada.

– Não pretendia intrometer-me…

– Não – apressou-se a dizer Temperance. – Esperava uma criada ou… bem… não uma senhora, seja como for. Tenho a bainha rasgada.

A mulher torceu o nariz reto.

– Odeio quando isso acontece. – Olhou sobre o ombro. – Lady Kitchen sofreu um ataque histérico ou nervoso. Sem dúvida que todas as criadas se ocuparão dela.

– Ah. – Temperance olhou novamente o folho negro na bainha. Pendia de forma bastante triste.

Mas a mulher ajoelhou-se à sua frente, com as saias verdes e prateadas espalhadas à sua volta como uma nuvem brilhante.

– Não, por favor – disse Temperance de forma indistinta. Aquela mulher era obviamente uma aristocrata. Que faria se soubesse que Temperance era filha de um cervejeiro?

– Não vos preocupeis – disse a mulher, baixando a voz. Não se ofendera pela exclamação súbita de Temperance. – Tenho alguns alfinetes…

Com destreza, virou a bainha para cima, recolocou o folho no sítio certo e voltou a dobrá-lo. Os alfinetes nem sequer se viam.

– Espantoso! Que perfeição! – exclamou Temperance.

A mulher ergueu-se e esboçou um sorriso tímido.

– Tive prática. As mulheres deverão manter-se juntas em eventos sociais como este, não vos parece?

Temperance retribuiu o sorriso, sentindo-se confiante pela primeira vez desde que recebera o convite de Lorde Caire.

– Sois tão amável. Obrigada. Não sei se…

A porta abriu-se de rompante e várias mulheres entraram, cercadas por criadas. Aparentemente, rodeavam Lady Kitchen e os seus ataques de histeria. Na confusão, Temperance foi separada da sua nova amiga e, quando voltou ao corredor, não viu a outra mulher em parte alguma.

Mesmo assim, regressou para junto de Lorde Caire com um peso retirado das costas, sentindo-se apoiada pela bondade de uma desconhecida. Encontrou-o encostado a uma parede, olhando os presentes com cinismo notório.

Endireitou-se quando a viu.

– Melhor?

Sorriu-lhe.

– Sim. Muito melhor.

Os cantos dos seus lábios ergueram-se em resposta.

– Nesse caso, procuremos a vossa presa.

Caminharam até ao extremo oposto do salão, onde cadeiras douradas tinham sido colocadas em filas, voltadas para um piano magnificamente pintado. Ainda ninguém se sentara. Lorde Caire conduziu-a até um trio de cavalheiros.

– Caire. – Um cavalheiro tão magro que era quase esquelético, com uma peruca comprida branca, acenou com a cabeça quando se aproximaram. – Não me parecia que este fosse o vosso tipo de entretenimento.

– Os meus gostos são muito diversos. – Surgiu algo que se assemelhava a um sorriso nos lábios de Lorde Caire. – Posso apresentar-vos Mistress Dews? Mistress Dews, este é Sir Henry Easton.

Sir. – Temperance fez a sua melhor vénia enquanto o cavalheiro mais velho curvava a cabeça.

– E estes são o comandante Christopher Lambert e Mister Godric St. John. Cavalheiros, Mistress Dews, juntamente com o seu irmão, Mister Winter Makepeace, administra o Lar para Crianças Desventuradas e Abandonadas no East End, uma instituição profundamente cristã e caridosa.

– Deveras? – Sir Henry ergueu as sobrancelhas grossas, olhando-a com interesse. O comandante Lambert também voltara o olhar para ela. Em contraste evidente, Mr. St. John, um homem alto de peruca cinzenta, arqueou uma sobrancelha sobre as lentes de meia-lua enquanto olhava Lorde Caire.

Por um momento, Temperance pensou na ligação que existiria entre Lorde Caire e Mr. St. John.

A seguir, Sir Henry perguntou:

– Quantas crianças alberga a vossa instituição, Mistress Dews?

Temperance esboçou o seu sorriso mais encantador, determinada em capturar um daqueles cavalheiros para bem do lar.

 

 

– QUE PRETENDES, CAIRE? – silvou St. John pelo canto da boca.

Lazarus manteve os olhos na sua pequena mártir enquanto esta usava todo o seu charme cristão para seduzir Lambert e Easton, levando-os a apoiar o seu lar de órfãos.

– Não compreendo a que te referes.

St. John respondeu com um grunhido baixo e virou-se para ser ouvido apenas por Lazarus.

– É obviamente tão respeitável como afirmas, o que significará que a usas para fins próprios ou que o teu deboche desceu ao patamar da violação de inocentes.

– Feris-me, senhor – disse Lazarus, cobrindo o coração com as pontas dos dedos. Sabia que parecia ironia ou até indiferença, mas, estranhamente, sentia dentro do peito uma pontada de algo que poderia realmente ser dor.

St. John aproximou-se para sussurrar:

– Que queres dela?

Lazarus estreitou os olhos.

– Porquê? Serás o seu cavaleiro andante e salvá-la-ás dos meus braços pérfidos?

St. John inclinou a cabeça. Os olhos cinzentos habitualmente serenos endureceram como granito.

– Se for necessário.

– Acreditas que permitiria realmente que me levasses algo que desejo?

– Falas de Mistress Dews como se fosse um brinquedo. – A expressão de St. John tornara-se analítica. – Parti-la-ias num acesso de fúria mimada?

Lazarus esboçou um pequeno sorriso.

– Se desejasse.

– Vamos – murmurou St. John. – Não estás assim tão afastado da humanidade como por vezes gostas de dar a enten-der.

– Não estou?

Lazarus deixou de sorrir. Olhou Mrs. Dews, vendo-a discutir o seu lar com entusiasmo genuíno. Se tivesse manifestado a sua anuência de alguma forma mínima na carruagem, poderia receber naquele preciso momento o seu membro na boca doce e santa. A degradação de um santo não era obra de um demónio? Olhou novamente St. John, o único homem no mundo que poderia considerar um amigo. O salão tornara-se insuportavelmente quente e o ombro provocava-lhe espasmos dolorosos que desciam pelo braço.

– Um conselho: não faças apostas acerca da minha proximidade da humanidade.

St. John arqueou uma sobrancelha.

– Não me limitarei a assistir enquanto magoas uma inocente. Levá-la-ei para longe de ti se acreditar que precisará da minha ajuda.

A raiva que o percorreu foi tão súbita que Lazarus nem percebeu que arreganhava os dentes.

St. John teria visto o brilho homicida no seu olhar. Deu um passo atrás.

– Caire?

– Não o faças – silvou Lazarus. – Nem como brincadeira, St. John. Cuida da tua senhora. Mistress é minha e farei com ela o que bem entender.

O olhar do outro homem moveu-se entre ele e a Mrs. Dews.

– E não tem opinião na matéria?

– Não – rosnou Lazarus, percebendo que parecia um cão a defender um osso.

St. John ergueu as sobrancelhas.

– Conhece o teu intuito?

– Conhecerá. – E voltou-se para dar o braço a Mrs. Dews, interrompendo-a a meio do discurso. – Com a vossa licença, cavalheiros. Desejo oferecer a Mistress Dews o melhor lugar possível.

– Com certeza – murmurou Sir Henry, enquanto Lazarus se afastava já com ela.

– Que fazeis? – Mrs. Dews não parecia agradada com ele. – Tinha acabado de começar a discutir a quantidade de verduras frescas que compramos todos os meses para o lar.

– Um assunto muito interessante, sem dúvida. – Precisava de se sentar e descansar um pouco. Maldito ferimento no om-bro.

Viu-a franzindo a testa.

– Aborrecia-os? Foi esse o motivo da vossa intervenção?

A boca dele contorceu-se num esgar divertido.

– Não. Pareceu-me que ficariam muito satisfeitos por ouvirem durante o resto da noite a vossa palestra sobre como vestir e alimentar órfãos.

Hmpf. Então porque me haveis afastado?

– Porque é sempre melhor deixar o comprador a querer mais – segredou-lhe, aproximando a boca do cabelo escuro sobre a sua orelha. A fita vermelha ridícula serpenteava entre as madeixas brilhantes e, por um momento, quis puxá-la. Ver o seu cabelo soltando-se e caindo-lhe sobre os ombros.

Mrs. Dews voltou-se e ergueu a face, tão próxima que eram visíveis as partículas douradas nos seus olhos castanho-cla-ros.

– Haveis vendido muitas coisas, Lorde Caire?

Provocava-o. Aquela cristã devota. Não o temia? Não sentia a escuridão que se acumulava dentro dele?

– Não tanto coisas, mas… ideias – respondeu.

A resposta fê-la inclinar a cabeça.

– Haveis vendido ideias?

– De certa forma – disse, conduzindo-a para duas cadeiras no extremo oposto de uma das primeiras filas. – Pertenço a várias sociedades filosóficas e científicas. – Sentou-a e ergueu as abas da casaca para se sentar a seu lado. – Quando alguém defende um ponto de vista, o que faz é vendê-lo a quem tem opinião contrária. Compreendeis?

Não referiu o outro tipo de «venda» que fazia: atrair parceiras sexuais e convencê-las a fazer coisas que, noutras circunstâncias, nunca pensariam em fazer.

– Creio que compreendo o que pretendeis dizer. – Os olhos de Mrs. Dews iluminaram-se, divertidos. – Confesso que nunca vos vi como mercador de ideias, Lorde Caire. É assim que ocupais os vossos dias? Discutis com outros cavalheiros eruditos?

– E traduzo vários textos gregos e latinos.

– Tais como?

– Poesia, sobretudo. – Olhou-a. Estaria realmente interessada naquilo?

Mas os seus olhos dourados brilharam enquanto inclinava a cabeça.

– Escreveis poesia?

– Traduzo-a. É bastante diferente.

– Na verdade, julgo que será algo semelhante.

– De que forma?

Encolheu os ombros.

– Os poetas não têm de se preocupar com métrica, rima e com a escolha das palavras certas?

– Sim. Tanto quanto sei.

Olhou-o e sorriu, fazendo-o suster a respiração.

– Parece-me que o tradutor terá de se preocupar também com esses elementos.

Fitou-a. Como poderia aquela mulher simples, vinda de outro mundo, saber aquilo? Como tinha conseguido articular numa frase a paixão que encontrava nas suas traduções?

– Suponho que estareis certa.

– Escondeis bem uma alma de poeta – disse ela. – Nunca teria adivinhado.

Era evidente que dizia aquilo como provocação.

– Ah. – Esticou as pernas à sua frente. – Mas há muito que não sabeis a meu respeito, Mistress Dews.

– Há? – Olhou um ponto além do seu ombro e percebeu que olharia a sua mãe, vendo-a conversar com Lady Beckinhall no canto do salão. – Tais como?

– Tenho um apreço desregrado por doces de maçapão.

O riso dela foi mais sentido que ouvido e o som inocente provocou nele um frisson caloroso. Mrs. Dews costumava esconder bem as suas emoções, mesmo as emoções positivas.

– Não recordo a última vez que comi doces de maçapão – murmurou.

Lazarus sentiu um ímpeto repentino de lhe comprar uma caixa apenas para a ver comê-los. Os seus lábios vermelhos ficariam salpicados com açúcar e teria de o limpar com a língua. Sentiu um aperto entre as pernas só de pensar.

– Dizei-me algo a vosso respeito. Algo que seja verdadeiro. – Olhou-o com aqueles olhos castanho-claros misteriosos. – Onde nascestes?

– Em Shropshire. – Afastou o olhar, vendo a sua mãe fazer um qualquer comentário a outra senhora. As joias no cabelo branco cintilavam quando mexia a cabeça. – As origens da minha família situam-se perto de Shrewsbury. Nasci na Casa Caire, o nosso lar ancestral. Disseram-me que era um bebé choroso e débil e o meu pai entregou-me a uma ama de leite com poucas esperanças de que sobrevivesse uma semana.

– Ao que parece, os vossos pais recearam por vós.

– Não – disse secamente, recordando algo que sabia desde sempre. – Passei cinco anos com a minha ama e, durante esse tempo, os meus pais viam-me apenas uma vez por ano, no Domingo de Páscoa. Recordo-o pelo medo que sentia do meu pai.

Não percebeu porque lhe contara aquilo. Dificilmente o faria parecer heroico.

– E a vossa mãe? – perguntou ela em voz baixa.

Olhou-a com curiosidade.

– Manteve-se ao lado do meu pai, claro.

– Mas… – voltou a franzir a testa como se tentasse perceber alguma coisa. – Era afetuosa?

Olhou-a. Afeto? Viu a sua mãe procurando um lugar para se sentar. Movia-se com graciosidade. Era a personificação da elegância fria. Imaginá-la a demonstrar afeto por alguém, muito menos por ele, era absurdo.

– Não – respondeu pacientemente, como se explicasse as minúcias do sistema monetário inglês a um chinês. – Não me visitavam para expressar afeto. Vinham ver se o seu herdeiro era adequadamente alimentado e alojado.

– Ah! – disse ela, baixando a voz. – E a vossa ama? Era afetuosa convosco?

A pergunta provocou nele uma dor medonha, uma sensação notavelmente horrível. Sentiu o ombro palpitar.

– Não me recordo – mentiu.

Mrs. Dews abriu a boca para fazer mais perguntas, mas estava farto.

– E vós, Mistress Dews? Como haveis sido criada?

Uniu os lábios por um momento como se não quisesse permitir-lhe conduzir a conversa por outro rumo. Suspirou.

– Nasci aqui em Londres, não muito longe do lar de órfãos, na verdade. O meu pai era cervejeiro. Havia seis crianças na família: Verity, Concord, que gere a cervejaria agora, Asa, eu própria, Winter e a minha irmã mais nova, Silence. O meu pai conheceu Sir Stanley Gilpin quando era muito pequena e, com o seu apadrinhamento, fundou o lar de órfãos.

– Uma bela história – considerou Lazarus, olhando-lhe a face. Recitara a história quase de cor. – No entanto, não me diz muito a vosso respeito.

Pareceu sobressaltada.

– Mas não há muito mais para contar além disto.

– Creio que haverá – murmurou ele em voz baixa. As cadeiras em redor começavam a encher-se, mas não desistiria tão cedo daquela discussão.

– Fazíeis trabalhos domésticos em criança? Recebestes instrução escolar? Quando e onde conhecestes o vosso marido?

– Passei a maior parte da minha infância em casa – explicou, lentamente. – A minha mãe educou-me até morrer, quando tinha treze anos de idade. Depois disso, a minha irmã mais velha, Verity, ocupou-se de educar os irmãos mais novos. Os rapazes foram enviados para a escola, claro, mas não havia dinheiro suficiente para enviar as raparigas. Apesar disso, considero que tivemos educação bastante adequada.

– Sem dúvida – disse ele. – Mas não falastes no falecido Mister Dews. Na verdade, nunca vos ouvi falar do vosso marido.

Afastou o olhar, empalidecendo. Era uma reação que Lazarus considerava infinitamente fascinante.

– Mister Dews, Benjamin, era um protegido do meu pai – disse, baixando a voz. – Estudou para a vida sacerdotal, mas, em vez disso, decidiu juntar-se ao meu pai no trabalho de prestar auxílio aos órfãos de Saint Giles. Conheci-o quando tinha dezassete anos e casámos pouco depois.

– Parece-me ser um autêntico santo – disse Lazarus com palavras carregadas de ironia.

Mas Mrs. Dews manteve-se severa.

– Sim, era. Trabalhava muito no lar. Sempre foi bondoso e paciente com as crianças. Era bondoso com todos os que conhecia. Certa vez, vi-o despir a casaca para oferecer a um mendigo com frio.

Lazarus cerrou os dentes, aproximando-se e silvando-lhe:

– Dizei-me, Mistress Dews, tendes um altar no vosso quarto honrando o vosso santo falecido?

– O quê? – Voltou para ele uma expressão chocada.

Conseguiu apenas inflamar o ímpeto de a magoar mais ainda. De a fazer sentir que as emoções que despertava o deleitavam.

– Ajoelhais-vos diante do altar? A sua memória aquece--vos a cama à noite? Ou tendes de recorrer a outras formas de satisfação menos espirituais?

– Como ousais? – Havia nos seus olhos um brilho intenso motivado pela insinuação grosseira.

O coração corrompido de Lazarus congratulou-se ao ver a raiva provocada pelas suas palavras. Tentou levantar-se, mas Lazarus segurou-lhe o braço com força, forçando-a a permanecer sentada.

– Silêncio – disse-lhe. – A música está prestes a começar. Não desejareis certamente sair daqui disparada e destruir o progresso conseguido anteriormente com o comandante Lambert e com Sir Henry, não é assim? Poderão achar-vos uma criatura inconstante.

– Desprezo-vos. – Uniu os lábios com força, virando a cara como se a enojasse olhá-lo.

Mas, apesar do que dissera, permaneceu a seu lado e isso era tudo o que importava, afinal. Era-lhe indiferente que o desprezasse ou que o quisesse ver morto, desde que sentisse alguma coisa por ele. Desde que conseguisse mantê-la perto.

 

 

COMO SE ATREVIA?

Temperance olhou as mãos fechadas no colo e esforçou--se para camuflar a raiva. O que provocara o ataque nojento de Lorde Caire contra ela e contra a memória de Benjamin? Conversavam sobre coisas corriqueiras e transformara-se de repente. Seria louco? Ou sentir-se-ia tão ciumento de um homem normal, de um homem capaz de gentileza e simpatia, que bastava pensar nisso para o descontrolar.

A mão de Lorde Caire continuava no seu cotovelo, quente e dura, e apertou-a quando a sentiu estremecer.

– É escusado.

Não se deu ao trabalho de lhe responder. A verdade era que parte da raiva que sentia se dissipara quando pensou na sua infância desprovida de amor.

Mesmo que não pretendesse dizer-lhe isso.

Afastou o olhar, vendo os convidados ocuparem os seus lugares. Lady Caire sentou-se ao lado de um cavalheiro atraente com peruca vistosa. O homem era obviamente mais jovem que ela, mas conversavam de forma bastante terna. De repente, Temperance deu consigo a pensar se seriam amantes. Como era estranha a moral da aristocracia. Viu Sir Henry sentado ao lado de uma senhora volumosa com idade respeitável e que era obviamente a sua mulher. Parecia uma senhora afável.

Captou um vislumbre prateado pelo canto do olho e virou a cabeça para a origem do movimento. Susteve a respiração. A jovem elegante da sala de retoques avançava entre as cadeiras. Parecia estar sozinha. O seu vestido verde e prateado complementava na perfeição o cabelo ruivo e o pescoço alto e branco. Todos os olhares se fixaram nela enquanto se aproximava, mas pareceu alheada quando se sentou.

– Quem é? – sussurrou Temperance, esquecendo por um momento que não falava com Lorde Caire.

– Quem? – perguntou o homem insuportável.

Como podia não saber? Metade do salão olhava-a fixamente.

– A senhora de verde e prata.

Lorde Caire torceu o pescoço para olhar e inclinou-se mais do que era necessário. O seu corpo parecia irradiar calor.

– Aquela, minha cara Mistress Dews, é Lady Hero, irmã do duque de Wakefield.

– A irmã de um duque? – repetiu Temperance. Santo Deus! Felizmente não o soubera quando a senhora a ajudara.

Certa vez, erguera-se numa esquina durante três horas apenas para captar um vislumbre da carruagem de Sua Majestade num cortejo, mas isso acontecera anos antes. Tudo o que tinha visto fora um pedaço de peruca branca que poderia ou não ser a cabeça do rei. Agora, encontrava-se no mesmo salão que Lady Hero.

– Sim. – Lorde Caire pareceu divertido. – E não esqueçais que é também filha de um duque.

Temperance virou-se e abriu a boca para lhe responder, mas Lorde Caire cobriu-lhe os lábios com um dedo quente.

– Silêncio. Estão prestes a começar.

Viu que estava certo. Um cavalheiro de peruca branca esplêndida e casaca bordada a ouro sentara-se diante do piano. Um homem mais jovem erguia-se a seu lado para virar as páginas da pauta.

Lady Beckinhall ergueu-se no extremo do salão e fez uma introdução de algum tipo, sem dúvida apresentando o pianista, mas Temperance quase não a ouviu. Mantinha o olhar fixo no cavalheiro ao piano. Estava sentado em silêncio, sem sorrir enquanto Lady Beckinhall o apontava. Limitou-se a baixar a cabeça numa vénia superficial, esperando que também ela se sentasse. Olhou as teclas do piano à sua frente, parecendo indiferente aos convidados que continuavam a trocar sussurros atrás dele. Depois, de forma abrupta, começou a tocar.

Temperance susteve a respiração, inclinando-se ligeiramente para diante. Desconhecia a peça, mas os acordes notáveis e as notas soltas despertaram algo dentro dela. Fechou os olhos, saboreando a leve ondulação no seu peito. Sentiu os olhos húmidos. Há tanto tempo que não ouvia música assim.

Há tanto tempo.

Deixou-se levar, concentrando-se totalmente na música até a peça chegar ao fim. Só então abriu os olhos e suspirou.

– Agradou-vos – disse uma voz a seu lado.

Olhou Lorde Caire, pestanejando, e percebeu que a mão dele envolvia a sua. Baixou o olhar para os dedos entrelaçados, intrigada. Teria aceitado a sua mão ou teria sido ele a procurar-lha? Não se lembrava.

Puxou-a delicadamente.

– Vinde. Passeai comigo.

– Oh, mas…

Olhou o piano, mas o pianista partira já. Em redor, os outros convidados erguiam-se ou afastavam-se, nenhum deles parecendo minimamente afetado pela música.

Virou-se novamente para Lorde Caire.

Os seus olhos azuis mantinham-se atentos e as maçãs do rosto pareciam avermelhadas.

– Vinde.

Ergueu-se e seguiu-o em silêncio, não pensando no sítio para onde iriam até a fazer entrar numa pequena sala iluminada por uma fogueira.

Temperance franziu a testa.

– O que…?

Mas Lorde Caire fechou a porta atrás de si e avançou na sua direção.

– Apreciastes a música.

Olhou-o, confusa.

– Sim, claro.

– Nada é claro. – Os seus olhos cor de safira pareciam refletir a luz das chamas. – A maioria dos que vieram ao recital tem pouco ou nenhum interesse na música. Mas vós… haveis ficado em transe.

Avançava com tal determinação que Temperance recuou um passo e percebeu que ficava encostada a um sofá.

Mesmo assim, Lorde Caire continuou a avançar, irradiando calor como uma fornalha.

– Que ouvistes? Que vos fez sentir a música?

– Eu… não sei – gaguejou. Que queria dela?

Segurou-a pelos ombros.

– Sim, sabeis. Contai-me. Descrevei as vossas emoções.

– Senti-me livre – sussurrou, sentindo o coração acelerado. – Senti-me viva.

– E? – Inclinava a cara, olhando-a atentamente.

– Não sei! – Colocou as mãos sobre o peito dele, pressionando, mas, apesar de o sentir ficar hirto, não recuou. – Como poderá alguém descrever música? É uma tarefa impossível. Ou se sente o maravilhamento ou não se sente.

– E sois alguém que o sente, não é?

– Que quereis de mim? – sussurrou ela.

– Tudo.

A boca dele cobriu a sua. Quente, insistente, movendo-se como se pretendesse arrancar-lhe fisicamente o que não conseguia arrancar com palavras. Segurou-lhe os braços, incapaz de se defender daquele avanço tão pouco tempo após o êxtase da música.

Abriu a boca ansiosamente, querendo saborear, querendo sentir sem culpa, só daquela vez. Lorde Caire introduziu-lhe a língua na boca, retirando-a e voltando a avançar até a fazer gemer, até a fazer prender-lhe a língua com os lábios, sugando-a, saboreando vinho, saboreando-o a ele. Quis despir-lhe a casaca, rasgar-lhe a camisa e sentir a pele macia por baixo. Quis colocar a boca sobre o seu mamilo e lambê-lo.

Santo Deus. Perdera a cabeça. Perdera o equilíbrio e a moral e deixava de se importar. Queria voltar a ser livre, queria sentir sem pensamentos ou memórias terríveis. Queria nascer outra vez, pura e sem pecado. Passou as mãos pelos braços dele, apertando, pressionando os músculos duros por baixo até alcançar os ombros. Então…

– Maldição! – A palavra foi gemida enquanto Lorde Caire afastava a boca dela.

– Oh! – Tinha esquecido o ombro ferido. – Sinto muito. Magoei-vos.

Ergueu as mãos para ele, sem saber o que podia fazer, talvez querendo apenas oferecer consolo.

Mas viu-o abanar a cabeça, com gotas de suor no lábio superior.

– Não vos preocupeis, Mistress Dews.

Endireitou-se depois de se encostar ao sofá, mas vacilou.

– Sentai-vos – disse Temperance.

– Não é necessário – murmurou ele, irritado, mas a sua voz era débil. Algo escuro manchava o ombro da casaca.

Temperance sentiu um arrepio de medo. Tinha a cara demasiado vermelha e o corpo demasiado quente. Engoliu em seco, mantendo a voz calma. A sua experiência dizia-lhe que os cavalheiros nunca queriam admitir fraqueza.

– Estou… estou cansada. Incomodar-vos-ia que partíssemos?

Para seu alívio, não discutiu, apesar de perceber o estratagema. Ao invés, Lorde Caire endireitou-se e ofereceu-lhe o braço. Levou-a de volta ao salão. Aí, avançou com despreocupação ostensiva entre os convidados, parando para trocar algumas palavras com outros cavalheiros antes de se desculpar à anfitriã por partir cedo. Enquanto isso, Temperance olhava-o ansiosamente, percebendo o suor que lhe cobria a testa. Quando foram buscar o xaile, apoiava-se pesadamente nela. Nem sequer percebia se estaria ou não totalmente consciente.

– Diga ao cocheiro que siga para a casa de Lorde Caire – disse Temperance ao peão enquanto ajudava Lorde Caire a subir para o interior da carruagem. – Diga-lhe que se apresse.

– Sim, senhora – respondeu o peão, fechando a porta da carruagem.

– Tanto dramatismo, Mistress Dews – disse Lorde Caire. A sua cabeça ondulava contra as almofadas de olhos fechados. – Não quereis regressar ao vosso lar?

– Penso que o melhor será levar-vos para a casa sem demora.

– Preocupais-vos em demasia.

– Sim. – Temperance apoiou-se enquanto a carruagem contornava uma esquina a grande velocidade. – É verdade.

Mordeu o lábio. Apesar da ligeireza das suas palavra, sabia que a preocupação era justificada. Receava que o ferimento de Lorde Caire tivesse infetado.

E a infeção podia ser fatal.