Quando ouviram as palavras de Meg,
todos os presentes abriram a boca de espanto.
«Tolice!», rugiu o rei.
«Sou realmente amado pelo meu povo. Todos me dizem que assim é.»
Meg encolheu os ombros.
«Sinto muito, Majestade, mas mentiram-vos.
Sois temido, mas não amado.»
O rei semicerrou os olhos.
«Provar-te-ei que sou amado pelo meu povo e, depois de o fazer,
a tua cabeça decorará o portão do meu palácio.
Até lá, ficarás instalada nas minhas masmorras.»
E, com um aceno da mão real,
Meg foi arrastada para longe dali…
excerto de REI CORAÇÃO FECHADO
A infeção podia matar em dias, horas se o ferimento apodrecesse rapidamente.
Temperance não conseguia evitar o pensamento mórbido enquanto a carruagem de Lorde Caire trovejava pelas ruas escuras de Londres. Nem sequer sabia onde morava ou se a viagem seria longa ou duraria minutos. Talvez devesse ter insistido em que Lorde Caire ficasse na casa de Lady Beckinhall apesar do desejo óbvio de esconder a debilidade.
– Estais muito silenciosa, Mistress Dews – afirmou lentamente Lorde Caire do seu lugar. – Isso deixa-me nervoso. Que planos haveis urdido para mim nessa vossa mente puritana?
– Pensava apenas no tempo que faltará para chegarmos à vossa casa.
Lorde Caire moveu a cabeça, espreitando pela janela enquanto as luzes noturnas deslizavam diante dos seus olhos.
– Não percebo onde estamos. A meio caminho de Bath, tanto quanto sei. Mas não temais. O meu cocheiro é um homem desprovido de sentido de humor. Chegaremos em segu-rança.
– Claro.
– Também gostais de dançar? – perguntou de repente.
Deliraria?
– Não danço.
– Naturalmente que não – murmurou. – Os mártires dançam apenas pregados em cruzes. Surpreende-me que vos permitis apreciar algo tão inocente como música para piano.
– Na minha juventude tive uma espineta – afirmou sem pensar. Teriam de estar próximos, não?
– E tocáveis.
– Sim. – Recordou subitamente a sensação das teclas suaves sob os dedos e a alegria pura de produzir música. Esses momentos pareciam-lhe tão inocentes e distantes.
Os olhos dele pestanejaram lentamente.
– Mas já não tocais?
– Vendi a espineta depois da morte do meu marido. – Esperou que voltasse a fazer algum comentário desagradável acerca de Benjamin.
– Porquê?
A pergunta simples sobressaltou-a e olhou-o. Observava-a com olhos semicerrados. O azul das íris brilhava mesmo na carruagem escura.
– Porquê o quê?
– Porquê vender o instrumento que, obviamente, tanto apreciáveis. Receastes ser tentada pelo prazer singelo da música? Ou foi outra coisa?
Temperance uniu as mãos no colo, mas manteve a voz calma enquanto respondia com uma meia-verdade.
– Precisávamos de dinheiro para o lar.
– Claro que sim – murmurou ele –, mas não acredito que tenha sido por esse motivo que haveis vendido a espineta. Apreciais o castigo.
– Que coisa desagradável para dizer. – Afastou a cara, sentindo o calor na face. Esperou que não tivesse percebido no interior da carruagem escura.
– No entanto, não haveis negado a acusação. – Gemeu de dor enquanto a carruagem balouçava.
Olhou-o, sustendo a respiração quando os seus olhos se fixaram nos dele. Mesmo naquele estado de fraqueza, sentia-se encurralada por um predador.
– Por que pecado imaginário vos castigais? – perguntou com voz baixa. – Cobiçastes a touca de outra rapariga na infância? Abusastes dos doces? Sentistes um arrepio prazeroso quando um rapaz trapalhão se encostou a vós na rua?
Raiva intensa e inesperada dominou-a, fazendo-a tremer. Conseguiu impedir-se de responder. Ao invés, inspirou profundamente, olhando os punhos no colo. Falar naquele momento seria o cúmulo da estupidez. Diria demasiado. Revelaria demasiado. Estava já perigosamente próximo da sua vergonha se-creta.
– Ou – continuou a voz irritantemente calma de Lorde Caire – talvez o pecado seja mais grave do que estes que referi.
Recordou o prazer sentido sempre que avistara um determinado homem, a forma como o seu sorriso oblíquo lhe fazia palpitar o coração de forma tão insuportável. As memórias eram sombras de emoções e desejos antigos que permaneciam muito depois da morte de quem os provocara.
Ergueu a cabeça, enfrentando o escrutínio dos seus olhos azuis malvados e firmando o maxilar. Um ligeiro sorriso surgiu--lhe na boca larga, sensual e sedutor. Torturava-a por curiosidade? Apreciaria provocar-lhe dor?
A carruagem parou e os olhos de Lorde Caire move-ram-se.
– Ah. Chegámos. Obrigado por me ter acompanhado a casa, Mistress Dews. Depois de descer, o cocheiro levar-vos-á ao lar. Boas-noites.
Sentiu-se terrivelmente tentada a deixá-lo ir sem mais nada. Provocara-a atormentando-a como um rapazinho cruel com um pau um macaco enjaulado. Fizera-o apenas para se divertir. Quando se levantou, cambaleante, quase caindo contra a porta da carruagem, levantou-se também.
– Desprezo-vos, Lorde Caire – disse Temperance entre dentes cerrados enquanto lhe segurava o braço.
– Já me havíeis informado desse facto.
– Não terminei. – Cambaleou enquanto ele se apoiava pesadamente sobre o seu corpo. Um criado jovem abriu a porta da carruagem e segurou imediatamente no outro braço de Lorde Caire para o ajudar a descer. – Sois um homem insuportavelmente rude, desprovido de moral ou até de bons modos, tanto quanto vejo.
– Parai, suplico-vos, Mistress Dews – gemeu Lorde Caire. – Tanta lisonja subir-me-á à cabeça.
– E – continuou Temperance, ignorando o que dissera – o vosso comportamento para comigo foi abominável desde que nos conhecemos. Quando forçastes a entrada em minha casa, se bem vos lembrais.
Lorde Caire conseguiu chegar à rua, onde parou, ofegante, apoiando a mão no ombro do criado jovem que os olhava aos dois boquiaberto.
– A vossa diatribe serve algum propósito ou limitais-vos a destilar fel?
– Há um propósito – disse Temperance enquanto o ajudava a subir os degraus da sua imponente residência. – Apesar da forma como me haveis tratado e da vossa personalidade desprezível, pretendo ficar convosco até serdes visto por um médico.
– Por mais lisonjeado que me sinta pelos vossos impulsos de mártir, Mistress Dews, não necessito da vossa ajuda. A cama e um brande conseguirão, sem dúvida, assegurar a minha recuperação.
– Ah, sim? – Temperance olhou o idiota que balouçava à porta de casa. Pingava-lhe suor da face vermelha, o cabelo estava colado às têmporas e sentia-o tremer.
Com um movimento rápido, Temperance aplicou-lhe uma cotovelada no ombro ferido.
– Sangue de Deus! – Lorde Caire curvou-se para diante, lutando para recuperar o fôlego.
– Chame um médico – ordenou Temperance ao mordomo, que se erguia, de olhos muito abertos, junto à porta, ladeado por outro criado. – Lorde Caire está doente. E vocês – indicou os peões com a cabeça –, ajudem Lorde Caire a chegar ao seu quarto.
– Vós, minha senhora – gemeu Lorde Caire – sois uma harpia vingativa.
– Não precisais de agradecer – afirmou Temperance com doçura. – Limito-me a cumprir o meu dever cristão.
O som que Lorde Caire produziu ao ouvir aquelas palavras poderia ser uma gargalhada ou um gemido de dor. Era difícil perceber ao certo. De qualquer forma, não continuou a resistir enquanto os peões o ajudavam a subir as escadas até ao seu quarto
Temperance seguiu-os e, mesmo que os seus motivos para assegurar que Lorde Caire receberia os cuidados devidos fossem completamente altruístas, não conseguiu impedir-se de apreciar a casa. A escadaria que subiram era de mármore, mais grandiosa ainda que a casa de Lady Beckinhall. Curvava-se de forma elegante até ao piso superior. Enormes retratos de homens de armadura e de mulheres altivas cobriam as paredes e os seus olhos pareciam avaliar negativamente a intrusão dela no seu lar. Sob os pés, uma grossa carpete carmesim cobria os degraus, abafando os passos. No corredor do piso de cima, estátuas em mármore de tamanho natural espreitavam de nichos colocados na parede. Portas altas duplas foram sendo abertas enquanto o cortejo avançava. Um criado de meia-idade com compleição modesta esperava ansiosamente enquanto entravam nos aposentos de Lorde Caire.
Temperance voltou-se para ele enquanto os peões levavam Lorde Caire até à enorme cama no centro do quarto.
– Sois o criado pessoal de Lorde Caire?
– Sim, senhora. – Moveu o olhar entre ela e Lorde Caire. – Chamo-me Small.
– Muito bem. – Temperance voltou-se para os peões. – Tragam água tão quente quanto possível e panos limpos, por favor. E também uma garrafa de bebida forte.
Os peões partiram apressados.
– Deixa-me sossegado, homem! – A voz irritada de Lorde Caire ouviu-se na cama.
Temperance voltou-se para ver o criado afastando-se do seu senhor. Lorde Caire sentou-se na cama com a cabeça pendurada e o corpo apoiado curvando-se sobre os reposteiros bordados verdes e castanhos.
– Mas, milorde… – argumentou o pobre criado.
Temperance suspirou. Que cavalheiro exasperante era Lorde Caire!
Avançou para a cama com determinação.
– O vosso ferimento infetou, milorde. Devereis deixar que Small tome conta de vós.
Lorde Caire colocou a cabeça de lado e olhou-a pelo canto do olho como um animal selvagem.
– Deixarei que tomeis conta de mim, mas Small terá de sair do quarto. A não ser que aprecieis público.
– Não sejais nojento – disse ela com voz demasiado gentil enquanto lhe erguia o braço são para despir uma manga do casaco. Franziu a testa ao ver a mancha no ombro direito. – Receio que isto seja doloroso.
Lorde Caire tinha fechado os olhos, mas esboçou um sorriso enviesado.
– Qualquer toque me é doloroso. E, além disso, não duvido que a dor que me provocardes vos divertirá muitíssimo.
– Que coisa terrível para se dizer. – Temperance sentiu-se inegavelmente magoada. – A vossa dor não me provoca qualquer diversão.
Puxou cuidadosamente a manga do ombro, mas, apesar dos seus esforços, ouviu-o silvar.
– Lamento – sussurrou enquanto Small desabotoava habilmente o colete de Lorde Caire. Caire pareceu ter esquecido que ordenara ao criado que saísse e Temperance sentiu-se aliviada. Despi-lo era suficientemente difícil com duas pessoas a fazê-lo.
– Não lamenteis – murmurou Lorde Caire. – A dor sempre foi minha amiga. Recorda-me que me aproximo demasiado do limite da razão.
Parecia delirante. Temperance franziu a testa enquanto lhe examinava o ombro. O ferimento vertia e os fluidos venenosos tinham-lhe colado a camisa ao corpo. O seu olhar procurou o do criado. Pela sua expressão ansiosa, era óbvio que também tinha percebido o problema.
Os peões regressaram com a água quente e os panos nesse momento, seguidos pelo mordomo baixo e atarracado.
– Pousem aí – instruiu Temperance, apontando a mesa junto à cama. – Chamaram o médico?
– Sim, senhora – respondeu o mordomo com voz sonora.
Small pigarreou e, quando Temperance o olhou, ouviu-o sussurrar.
– Será melhor não esperarmos o médico, senhora. É pouco fiável depois das sete da noite.
Temperance olhou um relógio elegante em ouro na mesa de cabeceira. Eram quase oito.
– Porque não?
– Bebe – disse Lorde Caire na cama com voz arrastada. – E as mãos tremem-lhe. Façam o que fizerem, não sei se deixaria o biltre aproximar-se de mim nesse estado.
– Não há outro médico que possamos chamar? – perguntou Temperance. Santo Deus! Lorde Caire era rico. Devia ter muita gente a zelar pela sua saúde.
– Perguntarei, senhora – disse o mordomo, partindo.
Temperance ergueu um dos panos limpos, ensopou-o na água quase a ferver e cobriu gentilmente o ombro de Lorde Caire.
Estremeceu como se lhe tivesse encostado um atiçador em brasa à pele nua.
– Sangue de Deus, minha senhora. Pretendeis assar-me a carne sobre os ossos?
– De modo algum – replicou Temperance. – Precisamos de soltar a camisa do ferimento para que não abra os pontos quando a puxarmos.
Praguejou de forma bastante imunda.
Temperance optou por ignorar aquilo.
– É verdade o que dissestes antes?
– O quê?
– Que todo o toque vos provoca dor? – Era terrível aproveitar-se da sua condição para lhe fazer perguntas, mas estava curiosa.
Fechou os olhos.
– Sim.
Por um momento, Temperance olhou o aristocrata rico e influente. Como poderia o toque de outro ser humano magoá-lo? Talvez a dor de que falava não fosse puramente física.
Abanou a cabeça e olhou o criado.
– Há alguém que devamos chamar? Um parente ou amigo de Lorde Caire?
O criado murmurou entredentes e afastou o olhar dela.
– Ah… não sei ao certo…
– Diz-lhe, Small – afirmou Lorde Caire. Tinha os olhos fechados, mas, aparentemente a audição permanecia apurada.
Small engoliu em seco
– Não, senhora.
Temperance franziu o cenho, passando o pano por água e voltando a colocá-lo.
– Sei que não tendes relações cordiais com a vossa mãe…
– Não.
Suspirou.
– Haverá certamente alguém, Caire.
Os dois homens permaneceram em silêncio. Estranhamente, o criado parecia mais embaraçado que Lorde Caire. Este parecia apenas entediado.
– Então e… – Temperance manteve os olhos fixos no pano quente com que lhe cobria o ombro, sentindo o rubor alastrar-lhe pelas faces – uma… mulher de que sejais próximo?
Lorde Caire riu-se baixo e abriu os olhos. Estavam demasiado brilhantes.
– Small, quando foi a última vez que viste uma mulher que não fosse uma criada entrar nesta casa?
– Nunca. – Os olhos do criado fixavam-se nos seus sapatos.
– Sois a primeira senhora a passar a minha porta em dez anos, Mistress Dews – afirmou Lorde Caire. – A última foi a minha mãe, no dia em que a expulsei do meu lar. Penso que devereis sentir-vos lisonjeada, não?
LAZARUS VIU A FACE de Mrs. Dews tornar-se rosada. A cor assentava-lhe bem e, mesmo no seu estado de fraqueza, sentiu o corpo reagir com uma ânsia que não era apenas sexual. Por um momento, pareceu-lhe que sentia uma avidez no peito, um estranho desejo de que a sua vida, a sua pessoa, pudessem, de alguma forma, ser diferentes. De que pudesse, de algum modo, merecer uma mulher como ela.
Mrs. Dews afastou-lhe o pano do ombro, torceu-o e voltou a colocá-lo. A dor aguda arrancou-o à reflexão. Doía-lhe a cabeça, sentia o corpo fraco e quente e o ombro parecia estar em chamas. Desejou deitar-se e adormecer. E, se não voltasse a acordar… bom, seria uma grande perda para o mundo?
Mas Mrs. Dews não tinha qualquer intenção de o deixar fugir.
– Não tendes quem cuide de vós?
Tocou-lhe a mão, por acidente ou intencionalmente, fazendo-o sentir o ardor familiar. Manteve a sua mão imóvel com grande força de vontade. Talvez aplicações repetidas pudessem habituá-lo à dor do seu toque, como um cão tantas vezes golpeado deixará de se encolher com cada golpe. Talvez pudesse aprender mesmo a apreciar a sensação.
Lazarus riu-se ou, pelo menos, tentou rir-se. O som que produziu assemelhou-se mais a um gemido.
– Ninguém, Mistress Dews. Juro. Falo o menos possível com a minha mãe, considero apenas um homem como meu amigo e desentendemo-nos recentemente…
– Quem é?
Ignorou a pergunta. Maldito fosse se chamasse St. John naquela noite.
– E, apesar do idealismo dos vossos ideais, mesmo que tivesse substituído a minha amante, não a chamaria para o meu leito de convalescente. As senhoras que me servem têm outras… utilidades. Como disse antes, não as trago para casa.
Temperance pressionou os lábios ao ouvir aquela informação.
Lazarus fixou nela um olhar sardónico.
– Receio estar à mercê dos vossos ternos cuidados.
– Compreendo. – Olhou-o com a testa franzida enquanto afastava o pano e testava a camisa por baixo.
Lazarus silvou quando o tecido lhe foi puxado do ferimento.
– Terá de sair – murmurou ela a Small, como se Lazarus fosse uma criança por quem zelassem em conjunto.
O criado acenou com a cabeça e despiram-lhe a camisa (uma operação excruciante). Quando terminaram, Lazarus arfava. Não precisava de olhar o ombro nu para saber que estava infetado com gravidade. Palpitava e ardia.
– Minha senhora, o médico – disse um dos peões da porta.
Atrás dele, o médico balouçava, com a peruca cinzenta sebosa escorregando-lhe pela cabeça rapada.
– Milorde, vim com a máxima rapidez.
– Encantador – murmurou Lazarus.
O médico aproximou-se da cama com os passos demasiado irregulares de um bêbado.
– Que temos nós aqui?
– O ferimento… podeis ajudá-lo? – perguntou Mrs. Dews, mas o médico passou por ela para olhar o ferimento com aten-ção.
Lazarus sentiu o fedor a vinho barato. O médico endireitou-se abruptamente.
– Que fizestes, mulher?
Mrs. Dews arregalou os olhos.
– Eu… eu…
O médico arrancou-lhe dos dedos o pano que usara.
– Haveis interferido com o normal processo de cicatriza-ção!
– Mas o pus… – começou Mrs. Dews.
– Bonum et laudabile. Sabeis o que significa?
Mrs. Dews abanou a cabeça.
– Bom e louvável – murmurou Lazarus.
– Nem mais, milorde. Bom e louvável! – gritou o médico, com o vigor do gesto quase fazendo-o cair. – É sabido que é o pus que cicatriza a ferida. Ninguém deverá interferir.
– Mas está febril – protestou Mrs. Dews.
Lazarus fechou os olhos. Que importava qual a técnica médica desde que acabasse em breve. Deixaria que a sua mártir e o carniceiro discutissem à vontade.
– Verterei um pouco de sangue para assim reduzir o calor do corpo – declarou o médico.
Lazarus abriu os olhos, vendo o médico procurar alguma coisa na maleta. Retirou uma lanceta e voltou-se para Lazarus, segurando o instrumento afiado numa mão de mobilidade tolhida. Lazarus praguejou, esforçando-se debilmente para se levantar. Sangrias seriam uma coisa, mas permitir que um bêbado usasse uma faca na sua pessoa era suicida.
Maldição. O quarto girava à sua volta.
– Mandem-no embora.
Mrs. Dews mordeu o lábio.
– Mas…
– Será preferível lançarem-me aos leões em vez de me confiarem aos seus tratamentos extremosos!
– Não, milorde… – O tom de voz do médico tornou-se conciliador.
Mrs. Dews enfrentou o olhar de Lazarus com preocupação e incerteza.
– Por favor. – Estava demasiado fraco e febril para impor a sua vontade. Teria de ser ela a fazê-lo por ele. – Prefiro morrer pelas suas mãos do que pelas mãos de um carniceiro embria-gado.
Lazarus viu-a acenar com a cabeça de forma abrupta enquanto se apoiava contra a cama, aliviado. Mrs. Dews pegou no braço do médico e, com um misto de firmeza e doçura desarmante, levou-o para fora do quarto. Entregou-o ao mordomo e voltou para junto da cama de Lazarus.
– Espero que tenhais tomado a decisão certa – disse ela, baixando a voz. – Não tenho qualquer formação além dos conhecimentos de uma mulher que tem cuidado de muitas crian-ças.
Enquanto olhava aqueles extraordinários olhos salpicados de dourado, ocorreu a Lazarus que seria possível confiar a vida àquela mulher.
Deitou-se na cama, contorcendo os lábios. A ironia divertia-o.
– Deposito fé total em vós.
E, mesmo que as palavras tivessem sido ditas no seu habitual tom sarcástico, surpreendeu-se por descobrir que eram sinceras.
TEMPERANCE OLHOU O OMBRO infetado de Lorde Caire, percebendo que a sua afirmação de confiança fazia com que gotas de suor lhe escorressem pelas costas abaixo. O último homem que confiara nela tivera a sua fé horrivelmente traída.
Mas aquele não era o momento de pensar no passado. Recompôs-se. O ferimento estava vermelho e inchado, com as arestas inflamadas e marcadas por linhas vermelhas que dele partiam.
– Peça aos peões que tragam água limpa – murmurou ao criado enquanto voltava a torcer o pano. Daquela vez, colocou-o diretamente sobre o ferimento. Por vezes, a infeção podia ser debelada pelo calor.
Lorde Caire ficou hirto quando o tocou, mas, além disso, não deu qualquer sinal de sentir o que seria dor terrível.
– Porque vos provoca dor o toque alheio? – perguntou-lhe, baixando a voz.
– Será como perguntar a um pássaro o que o atrai no céu, minha senhora – balbuciou. – É a minha natureza.
– E quando tocais alguém?
Encolheu os ombros.
– Não há dor desde que a iniciativa seja minha.
– E sempre fostes assim? – Franziu a testa enquanto olhava o pano, pressionando-o sobre o ferimento. Apesar da filosofia do médico, Temperance seguia sempre os ensinamentos da sua mãe acerca da cicatrização de ferimentos. E a sua mãe não gostara de pus, fosse ele bonum ou não.
Caire gemeu e fechou os olhos.
– Sim.
Temperance olhou-lhe brevemente a face antes de pegar no pano para limpar o líquido que saíra do ferimento.
– Haveis dito que nunca houve ninguém que não vos provocasse dor.
Era uma afirmação, mas dissera aquilo como uma pergunta, recordando a ligeira hesitação que Lorde Caire antes demonstrara.
Manteve-se em silêncio enquanto passava o pano pela água morna, voltando a aplicá-lo. Por um momento, achou que não diria nada.
A seguir, suspirou.
– Menti. Houve Annelise.
Temperance ergueu a cabeça e olhou-o fixamente, sentindo uma pontada estranha de algo que poderia ser ciúme.
– Quem é Annelise?
– Quem foi.
– O quê?
Lorde Caire suspirou.
– Annelise era a minha irmã mais nova. Cinco anos mais nova. Herdou a aparência do meu pai. Era uma criatura de beleza modesta com cabelo castanho-claro e olhos entre o cinzento e o castanho. Costumava seguir-me para todo o lado mesmo que lhe dissesse… que lhe dissesse…
Calou-se enquanto Small substituía em silêncio a bacia de água por outra acabada de encher. Temperance lavou nela o pano. A água estava tão quente que lhe deixava as mãos vermelhas. Pousou o pano contra o ferimento e pressionou, mas, desta vez, pareceu nem notar.
– Que lhe haveis dito?
– Hmm? – murmurou Lorde Caire sem abrir os olhos.
Inclinou-se mais para ele, olhando o seu nariz longo, a sua boca determinada e quase cruel. Sem dúvida que um homem tão sarcástico e desagradável não poderia ser derrotado por algo tão mundano como uma ferida infetada.
O medo provocou-lhe um aperto doloroso no estômago.
– Caire!
– O que foi? – murmurou, irritado, entreabrindo os olhos.
Temperance engoliu em seco.
– O que haveis dito a Annelise?
Abanou a cabeça sobre as almofadas.
– Seguia-me, espiando-me quando acreditava que não a via, mas era muito mais nova que eu. Sempre soube. E pegava-me na mão, mesmo quando lhe dizia que não o fizesse. Dizia-lhe que não me tocasse. No entanto, o seu toque nunca magoava… nunca magoava…
Temperance ergueu uma mão e fez algo que nunca teria feito se Lorde Caire estivesse totalmente lúcido: acariciou delicadamente o seu belo cabelo prateado, afastando-lho da testa. Era macio, quase sedoso.
– E que lhe haveis dito?
Os seus olhos cor de safira abriram-se de repente, tão lúcidos e calmos como eram antes de ser ferido.
– Disse-lhe que se afastasse. E afastou-se. Contraiu uma febre pouco depois e morreu. Tinha cinco anos e eu dez. Não vejais em mim virtude romântica, Mistress Dews. Não tenho nada que se assemelhe.
Enfrentou-lhe o olhar por um momento, querendo argumentar, querendo consolar o rapazinho que perdera a sua irmã mais nova tantos anos antes. Mas, em vez disso, endireitou as costas, afastando-lhe a mão do cabelo.
– Vou lavar-vos o ferimento com álcool. Será muito doloroso.
Sorriu-lhe quase com doçura.
– Claro.
E, de alguma forma, com a ajuda de Small, conseguiu levar a cabo a terrível tarefa. Banhou-lhe o ferimento com brande, secou-o, voltou a cobri-lo com panos, sabendo em todos os instantes que lhe provocava dores dilacerantes. Quando terminou, Lorde Caire respirava ruidosamente sob as cobertas, inconsciente. Small parecia esgotado e Temperance lutava contra o sono.
– Está feito, finalmente – sussurrou, fatigada, enquanto ajudava o criado a recolher os panos sujos.
– Obrigado, senhora – disse o criado de pequena estatura. Fixou um olhar preocupado na cama e no seu ocupante. – Não sei o que teríamos feito sem vós esta noite.
– É um homem de trato difícil, não é?
– Com efeito, senhora. – As palavras do criado foram fervorosas. – Devo pedir às criadas que vos preparem um quarto?
– Devo voltar para casa. – Temperance olhou Lorde Caire. Ainda tinha a face vermelha e, apesar de lhe ter lavado a testa, estava novamente coberta de suor.
– Perdoai-me, senhora – começou Small. – Mas poderá precisar de vós durante a noite e, seja como for, é muito tarde para que uma senhora viaje sozinha.
– Sim, é verdade – murmurou, grata pela desculpa.
– Pedirei à cozinheira que vos prepare um tabuleiro – disse Small.
– Obrigada – replicou Temperance enquanto o criado saía do quarto. Deixou-se cair sobre uma cadeira alta puxada para perto da cama e apoiou a cabeça no punho, pretendendo apenas descansar os olhos enquanto o criado lhe trazia a ceia.
Quando acordou, a fogueira apagara-se. Uma única vela na mesa de cabeceira iluminava o quarto. Espreguiçou-se um pouco, sentindo a dor no pescoço e nos ombros por ter adormecido numa posição tão desconfortável, e olhou a cama. De alguma forma, não se surpreendeu por perceber que olhos azuis brilhantes a observavam.
– Como era ele? – perguntou Lorde Caire em voz baixa. – O vosso virtuoso marido?
Sabia que devia recusar responder-lhe, que a pergunta era demasiado pessoal, mas, de alguma forma, na noite profunda, parecia-lhe razoável e justa.
– Era alto e tinha cabelo escuro – sussurrou, recordando a face há muito perdida. Fora tão familiar, outrora, e tornara-se tão vaga. Fechou os olhos, concentrando-se. Parecia tão errado esquecer Benjamin e tudo o que era. – Os seus olhos eram de um castanho-escuro encantador. Tinha uma cicatriz no queixo como resultado de uma queda na infância e esticava os dedos e gesticulava com as mãos quando falava, de uma forma que me parecia elegante. Era muito inteligente, muito educado e muito bondoso.
– Que horror – disse ele. – Parece-me um enorme pedante.
– Não era.
– Fazia-vos rir? – perguntou, mantendo a voz baixa. As suas palavras eram roucas, como consequência do sono ou da dor. – Sussurrava-vos coisas que vos faziam corar? O seu toque provocava-vos arrepios?
As perguntas rudes e demasiado pessoais provocaram-lhe desagrado visível.
Mas continuou, com voz impossivelmente grave.
– Ficáveis molhada quando vos olhava?
– Parai! – gritou, com a voz ecoando pelo quarto. – Parai, por favor.
Caire limitou-se a fixar nela os olhos que sabiam demasiado. Como se soubesse que ficara molhada, mas pelo seu olhar e não pelas velhas memórias do seu marido.
Inspirou fundo.
– Era um bom homem. Um homem maravilhoso. E não o merecia.
Lorde Caire fechou os olhos e, por um momento, pareceu ter adormecido. A seguir, murmurou:
– Nunca casei, mas parece-me que seria terrível ter de merecer a pessoa com quem casasse.
Temperance afastou o olhar. Aquele assunto provocava-lhe dor no peito, arrastando para o seu cérebro uma melancolia deprimente.
– Estáveis apaixonada por ele? – perguntou Lorde Caire. – Por este marido que não merecíeis?
E, porque ainda não despertara completamente dos seus sonhos ou por se terem tornado estranhamente íntimos na escuridão quase total, respondeu com sinceridade:
– Não. Amei-o, mas nunca estive apaixonada por ele.
De repente, o quarto ficou mais claro, parecendo ter acontecido de um momento para o outro, e Temperance percebeu que o amanhecer chegara enquanto falavam.
– É um novo dia – afirmou estupidamente.
– É verdade – replicou Lorde Caire. E a satisfação na sua voz arrepiou-a.