Capítulo 9

 

 

 

 

 

Bem cedo, na manhã seguinte, Meg foi acordada

por quatro guardas corpulentos.

Levaram-na por uma escadaria em espiral

acima até estar novamente na sala do trono.

O rei instalava-se num trono dourado,

com a barba e o cabelo escuros brilhando com o sol da manhã. Diante dele, havia várias dúzias de guardas em sentido,

formando fileiras aprumadas.

«Aí estás tu!», disse o rei. «Muito bem.

Provar-te-ei o amor do meu povo.»

Voltou-se para os guardas reunidos. «Meus guardas, amais-me?»

«Sim, senhor!», gritaram os guardas com voz forte.

O Rei Coração Fechado sorriu a Meg.

«Vês? Admite agora que foste tola e poderei poupar-te a vida…»

excerto de REI CORAÇÃO FECHADO

 

 

 

Temperance sentiu as faces corarem enquanto caminhava. Conhecia a maior parte das casas de má reputação de St. Giles (a maioria das crianças a seu cargo vinha de lá), mas nunca entrara numa depois do anoitecer. A casa de Mrs. Whiteside era bastante célebre pelos tipos de diversão que os clientes aí poderiam encontrar.

– Ah! – murmurou Lorde Caire atrás dela. – Creio que conheço este sítio.

Mordeu o lábio.

– Nesse caso, talvez não preciseis de mim esta noite.

Segurou-a de repente, fazendo-a suster a respiração.

– Jurastes que não renegaríeis o nosso contrato, Mistress Dews.

Franziu a testa, verdadeiramente intrigada.

– E não o farei, mas…

– Então segui em frente.

Temperance apertou mais a capa e fez o que lhe pedia. O vento era cortante naquela noite, deixando-lhe a face dormente. Deixara de saber o que pensar daquele homem. Provocara-a e beijara-a, sondara o seu segredo mais vergonhoso e apertara-a contra o seu corpo quente para a proteger. Continuava a tremer quando recordava o cheiro do seu pescoço, o aço dos seus braços.

Chegaram a outra viela mais pequena. Havia tabuletas ondulando no alto, chiando com o vento. Ouviu risos súbitos e próximos, afastando-se em seguida. Passaram por uma mulher magra com uma capa gasta, levando algo num balde. A mulher evitou os seus olhares enquanto passava por eles com passo apressado. A viela alargou abruptamente, alcançando um largo rodeado por edifícios com varandas, fazendo o espaço quadrangular parecer apertado. Luz tremeluzia atrás das portadas em cada piso e sons estranhos e abafados chegavam até eles: uma gargalhada suspensa, uma palavra murmurada, estrondos ritmados e o que parecia uma sucessão de gemidos.

Temperance estremeceu.

– O estabelecimento de Mistress Whiteside é aqui.

– Ficai perto de mim – murmurou Lorde Caire antes de erguer a bengala para bater na única porta do largo.

Foi aberta, revelando um guarda corpulento com a face larga e sisuda marcada por cicatrizes de bexigas. Os seus olhos pequenos e estreitos não traíam qualquer emoção.

– Rapaz ou rapariga?

– Nenhum dos dois – afirmou Lorde Caire sem hesitar. – Desejo falar com Tommy Pett.

O homem começou a fechar a porta.

Lorde Caire enfiou a bengala no vão com uma mão e pressionou com a outra. A porta parou, deixando o guarda vagamente surpreendido.

– Por favor – disse Lorde Caire com um sorriso duro.

– Jacky – disse uma voz grave atrás do guarda. – Deixa-me ver o nosso visitante.

O guarda deu um passo ao lado. Lorde Caire entrou imediatamente, puxando Temperance atrás de si. Esta espreitava, protegida pelo seu corpo.

O vestíbulo do outro lado da porta era um espaço pequeno e quadrado, dificilmente parecendo suficientemente grande para as escadas que conduziam aos pisos superiores. Imediatamente à direita, havia uma porta aberta que abria para uma sala de estar aprumada. Atravessada na porta, via-se uma mulher com vestido de cetim rosa decorado com fitas e laços. A sua cabeça mal passava acima da cintura de Caire e o seu corpo era baixo e atarracado, com a testa saliente e deformada.

Fixou os olhos em Caire.

– Lorde Caire. Muitas vezes me questionei quando visitaríeis a nossa casa.

Lorde Caire fez uma vénia.

– Tenho o prazer de me dirigir a Mistress Whiteside?

A anã atirou a cabeça para trás e riu-se com voz tão grave como a de um homem.

– Não, por Deus. Sou apenas uma criada da senhora. Podeis chamar-me Pansy.

Lorde Caire acenou com a cabeça.

– Mistress Pansy, ficaria muito grato se pudesse conversar por um momento com Tommy Pett.

– Posso perguntar porquê?

– Tem informação de que preciso.

Pansy uniu os lábios e inclinou a cabeça.

– Porque não? Jacky, vai ver se Tommy está livre.

O guarda afastou-se e Pansy indicou a sala de estar atrás dela.

– Sentai-vos, milorde.

– Obrigado.

Entraram na pequena sala de estar e Lorde Caire deixou-se cair sobre uma poltrona de veludo gasto enquanto Temperance se instalava a seu lado. À sua frente, havia uma cadeira baixa e larga com sumptuoso estofo roxo e rosa. Pansy ergueu uma anca e saltou de costas para a cadeira. Os seus pés, calçados com elegância, ficavam pendurados centímetros acima do chão.

Colocou as mãos sapudas sobre os braços da cadeira e olhou Caire com um sorriso nos lábios.

– Deveríeis passar algum tempo connosco, milorde. Depois de terminardes o que tiverdes para discutir com Tommy. Posso oferecer-vos um preço especial.

– Obrigado, mas não – disse Caire com voz inexpressiva.

Pansy inclinou a cabeça.

– Somos especialistas em satisfazer os… hmm… pedidos mais invulgares de cavalheiros como vós. E, claro, a vossa amiga também poderá participar.

Temperance arregalou os olhos enquanto Pansy a apontava com o queixo. Não fazia ideia de quais seriam os «pedidos invulgares» de Caire, mas sabia que deveria sentir-se enojada pela simples possibilidade de fazer alguma coisa com aquele homem. Ainda tentava perceber quais eram os seus verdadeiros sentimentos quando um jovem bonito entrou na sala. Era magro e tinha cabelo dourado que caía em ondas sedosas sobre os seus ombros. Hesitou à porta, olhando Lorde Caire com apreensão.

Pansy sorriu-lhe.

– Tommy, este é Lorde Caire. Creio que…

O que Pansy estivesse prestes a dizer foi interrompido pela partida de Tommy da sala, correndo. Lorde Caire ergueu-se em silêncio, avançando para o rapaz sem dizer nada. Ouviu-se uma escaramuça no vestíbulo, um estrondo, uma praga, e Lorde Caire regressou, trazendo Tommy firmemente seguro pelo cola-rinho.

– Está bem! Está bem! – ofegou o rapaz. – Apanhastes-me bem. Soltai-me e falo.

– Não me parece – disse Lorde Caire. – Prefiro segurar-te com firmeza enquanto falas.

Pansy assistiu ao desenrolar dos acontecimentos com olhos semicerrados onde não havia qualquer surpresa. Moveu-se naquele momento.

– A noite de Tommy ainda não chegou ao fim, milorde. Espero que o recordeis quando lidares com ele. O seu preço baixa se tiver nódoas negras.

– Não tenho qualquer intenção de magoar o seu empregado desde que aceite dizer-me o que pretendo saber – disse Lorde Caire.

– E que pretendeis saber? – perguntou a anã com delicadeza.

– Marie Hume – disse Lorde Caire. – Que sabes sobre a sua morte?

Para um rapaz que ganhava a vida num bordel de St. Giles, Tommy era um péssimo mentiroso. Afastou o olhar, humedeceu os lábios com a língua e disse:

– Nada.

Temperance suspirou. Até ela conseguia perceber que Tommy saberia alguma coisa sobre a morte da amante de Lorde Caire.

Lorde Caire limitou-se a sacudi-lo.

– Tenta outra vez.

Pansy ergueu as sobrancelhas.

– Receio que a vossa ocupação do tempo de Tommy me reduza o lucro, Lorde Caire.

Sem uma palavra, Lorde Caire enfiou uma mão num bolso da casaca, retirando uma pequena bolsa. Atirou-a a Pansy, que a apanhou com destreza. Depois de espreitar o interior, voltou a fechá-la e escondeu-a algures na sua pessoa.

Dirigiu a Tommy um movimento da cabeça.

– Servirá. Agora fala com o cavalheiro, meu querido.

Tommy deixou de resistir às mãos firmes de Lorde Caire.

– Não sei nada. Estava morta quando a encontrei.

Temperance olhou rapidamente Lorde Caire ao ouvir o novo desenvolvimento, mas, se ficou surpreendido por ouvir Tommy dizer que tinha sido ele, e não Martha Swan, a encontrar Marie, não o deu a entender.

– Foste o primeiro a encontrá-la morta? – perguntou Lorde Caire.

Tommy fixou nele um olhar confuso.

– Não havia lá mais ninguém, se é isso que perguntais.

– Quando a encontraste?

Tommy contorceu a cara, tentando lembrar-se.

– Foi há algum tempo. Dois meses ou mais.

– Em que dia?

– Sábado. – Tommy olhou Pansy. – A minha folga é ao sábado de manhã.

– E a que horas chegaste ao quarto de Marie?

Tommy encolheu os ombros.

– Talvez às nove. Ou às dez. Foi antes do meio-dia, de certeza.

Lorde Caire voltou a abanar a cabeça.

– Descreve o que encontraste.

Tommy passou a língua pelas gengivas, olhando Pansy como se pedisse a sua permissão. A mulherzinha acenou-lhe com a cabeça.

Suspirou.

– O quarto dela ficava no segundo andar nas traseiras da casa. Não havia ninguém quando subi as escadas. Só uma criada a esfregar os primeiros degraus. Queria bater-lhe à porta, à porta da… Marie, mas a porta abriu-se quando a minha mão lhe tocou. Não estava fechada. Por isso, entrei. O vestíbulo estava muito arrumado. A Marie gostava de manter as coisas arrumadas. Mas o quarto…

Tommy suspendeu a narrativa, olhando para o chão. Engoliu em seco de forma notória.

– Havia sangue por todo o lado. Nas paredes, no chão e até no teto. Deus. Nunca tinha visto tanto sangue na minha vida inteira. O colchão estava tão ensopado que parecia negro e a Marie…

– Que aconteceu a Marie? – A voz de Lorde Caire era suave, mas Temperance não confundiu o seu tom com gentileza ou piedade.

– Foi aberta de alto a baixo – disse Tommy. – Da garganta às partes. Conseguia ver-lhe os órgãos a espreitar como cobras cinzentas.

Voltou a engolir em seco, com a face a ficar pálida.

– Vomitei no chão o que tinha dentro de mim. Não consegui evitar. O cheiro era horrível.

– Que fizeste a seguir? – perguntou Lorde Caire.

– Fugi do quarto – disse Tommy. Mas os seus olhos voltaram a fixar-se no vazio.

Lorde Caire sacudiu-o.

– Não te lembraste de revistar o quarto? Tinha joias. Um alfinete de diamante para o cabelo e brincos de pérola. E também fivelas com brilhantes para os sapatos e um anel de granada.

– Eu nunca… – começou Tommy, mas Lorde Caire abanou-o com tanta força que não conseguiu falar.

– Tommy, meu querido – suspirou Pansy. – Diz a verdade a Lorde Caire ou não me servirás de nada.

Tommy baixou a cabeça, abatido.

– Já não precisava delas. Estava morta. E, se as tivesse deixado lá, teriam sido roubadas pelo senhorio. Tinha mais direito a elas que qualquer outra pessoa.

– Porque dizes isso? – perguntou Temperance.

Tommy ergueu a cabeça, olhando-a fixamente como se a visse pela primeira vez.

– Porquê? Porque era minha irmã.

Temperance olhou Lorde Caire. A sua expressão era imperscrutável, mas a surpresa parecia tê-lo paralisado. Voltou a olhar Tommy.

– Eras irmão de Marie Hume.

– Sim. Foi o que disse, não foi? – perguntou o rapaz. – Tivemos a mesma mãe, mesmo que a Marie fosse mais velha que eu dez anos ou mais.

Temperance franziu a testa. Percebeu um olhar fugaz entre Lorde Caire e Pansy. Algo não fazia qualquer sentido. Sentiu que lhe faltava alguma informação que todos os outros presentes possuíam.

– Então conhecia-la bem?

Tommy encolheu os ombros, desconfortável.

– Bastante bem, acho eu.

– Era visitada por mais alguém além de Lorde Caire e de ti próprio? – perguntou Temperance.

– Isso não sei – respondeu Tommy devagar. – Só a via uma vez por semana.

Temperance inclinou-se para diante.

– Mas, certamente, falavam da vida um do outro, não? Ter-te-á contado como eram os seus dias.

O rapaz olhou os sapatos.

– Ia ter com ela quase só para pedir dinheiro.

Temperance pestanejou, chocada pela sua falta de amor fraterno. Teria acreditado que o rapaz prevaricava para evitar partilhar mais informações se não fosse um mentiroso tão mau.

– Fazes ideia de quem possa tê-la matado? – perguntou Lorde Caire de repente.

O rapaz arregalou os olhos.

– Estava atada à cama, com os braços esticados sobre a cabeça, as pernas abertas e a cara coberta de sangue. Percebi logo quem a tinha matado.

Lorde Caire olhou fixamente o rapaz.

– Quem?

Tommy sorriu, com os lábios contorcendo-se de uma forma que lhe roubava toda a beleza.

– Vossa excelência, milorde. Não era assim que gostáveis de usar a minha irmã?

 

 

LAZARUS FITOU O RAPAZ BONITO. Era verdade que não esperara aquela acusação. Devia tê-la esperado. Soltou o rapaz, esforçando-se para não olhar Mrs. Dews. Que pensaria ela da revelação do rapaz? Que poderia sentir além de horror e repulsa?

– Já não preciso de ti – disse, libertando-o.

Surgiu na face de Tommy uma expressão de desilusão. Sem dúvida, esperara uma discussão ou até negações veementes.

Lazarus não lhe faria a vontade.

Tommy olhou Pansy. Esta acenou-lhe com a cabeça, mantendo a face estranhamente inexpressiva enquanto Tommy partia.

Quando a porta se fechou atrás do rapaz, voltou-se para Lazarus.

– É tudo?

– Não. – Dirigiu-se à pequena lareira e olhou as chamas, tentando pensar. A sua investigação via aquele caminho bloqueado. Se o rapaz, o irmão de Marie, não sabia quem a assassinara, para onde poderia voltar-se? Girava distraidamente a bengala no punho e percebeu. Sabia que não tinha atado Marie daquela forma, portanto, teria sido outro homem, um homem que, naquele sentido, pelo menos, partilhava os seus impul-sos.

Voltou-se para Pansy.

– Disse que este estabelecimento satisfazia os caprichos de homens como eu.

A mulherzinha arqueou as sobrancelhas escuras.

– Sim, claro. Gostaríeis de ver uma seleção dos nossos produtos?

Percebeu que Mrs. Dews susteve a respiração. Mesmo sem a ter olhado, sabia que estaria paralisada num canto. Talvez fosse a repulsa a paralisá-la.

Abanou a cabeça.

– Não. O que quero é informação.

Pansy inclinou a cabeça demasiado grande, com os olhos inteligentes brilhando perante a possibilidade de lucro.

– Que tipo de informação, milorde?

– Quero saber os nomes dos homens que gostam de usar cordas e capuzes.

Olhou-o fixamente enquanto pensava. A seguir, abanou a cabeça de forma abrupta.

– Sabeis que não posso partilhar os nomes dos nossos clientes.

Puxou por uma bolsa, maior do que a que lhe tinha dado antes, e atirou-a para a mesa. Imobilizou-se junto ao cotovelo dela.

– Estão cinquenta libras aí.

Arregalando os olhos, ergueu a bolsa, despejando-a no colo para contar as moedas uma a uma. Fez uma pausa quando terminou, parecendo pensar. A seguir, voltou a guardar as moedas na carteira, escondendo-a no decote.

Recostou-se na cadeira baixa e larga e olhou-o.

– Há cavalheiros que consideram aprazível observar os folguedos de outros.

Lazarus arqueou uma sobrancelha, esperando.

– Talvez gostásseis de experimentar.

Lazarus acenou uma única vez com a cabeça, sentindo a pulsação acelerar.

Pansy ergueu a voz.

– Jacky!

O lacaio surgiu à porta.

Estalou-lhe os dedos.

– Por favor, acompanha estes senhores aos buracos. Penso que vos interessareis particularmente pela sala seis, Lorde Caire.

Jacky virou-se sem dizer nada e Lazarus avançou para segurar o punho de Mrs. Dews.

Tentou soltar-se, mas segurava-a com firmeza enquanto a levava para a porta.

– Que fazeis? Não desejo assistir a quaisquer «folguedos».

– Não posso deixar-vos sozinha – rosnou-lhe entredentes. Era verdade, mas não toda a verdade. Queria mostrar-lhe o que escondiam as profundezas da sua mente. Sentir-se-ia repelida pela verdade, sabia-o, mas sentia uma ânsia mórbida de descobrir qual seria a sua reação. De descobrir como seria expor os seus segredos diante dela, aguardando a sua sentença.

Jacky levou-os por uma escadaria de madeira estreita a que se seguiu um corredor mal iluminado. Portas ladeavam o corredor, cada uma identificada por um número toscamente gravado. Mas, em vez de entrar numa das portas, o homem conduziu-os ao fim do corredor, parando diante de uma porta sem qualquer marca.

Jacky abriu-a com uma chave e apontou para dentro.

– Ide até ao fundo e voltai. Uma hora. Não mais.

E fechou a porta depois de entrarem.

Mrs. Dews voltou-se para Lazarus e este conseguiu sentir que o seu corpo tremia. Curvou-se para lhe segredar qualquer coisa:

– Silêncio. A porta está destrancada. Podemos partir quando desejarmos.

– Então partamos imediatamente – silvou-lhe ela.

– Não. – O seu coração batia rapidamente e apertou-lhe o pulso com maior firmeza.

Estavam numa passagem baixa e estreita. Usou a mão para tocar a parede enquanto obedecia às instruções de Jacky para chegar ao fim. A passagem curvou-se abruptamente em dado ponto e semicerrou os olhos. A princípio, pareceu-lhe que o negrume era completo, mas, quando os seus olhos se ajustaram, percebeu alguns pontos minúsculos de luz brilhando com intervalos regulares junto a uma parede. Aproximou-se do primeiro ponto de luz e percebeu que era um buraco. Por baixo, visível à justa com a luz da sala do outro lado, via-se o número nove.

Mrs. Dews puxou-lhe o pulso.

– Vamos embora, por favor.

Espreitou pelo buraco e virou-se para ela, puxando-a para si.

– Não. Espreitai.

Abanou a cabeça, mas a sua resistência era débil enquanto a aproximava da parede. Sabia que, assim que visse o que havia do outro lado, o seu corpo inteiro ficaria hirto. Voltou-se para a parede, de costas para ele, e Lazarus aproximou-se dela por trás.

Curvou-se para lhe dizer ao ouvido:

– O que vedes?

Tremeu, mas não disse nada.

Não que precisasse das suas palavras para saber o que havia na sala do outro lado. Vira-o quando espreitara: um homem e uma mulher. O homem completamente nu, a mulher vestindo ainda uma combinação. A mulher ajoelhava-se aos pés do homem, com o seu membro nos lábios.

– Gostais? – sussurrou. – Excita-vos?

Sentiu-a tremer contra si, como uma lebre nas garras do falcão. Era tão contida e séria à superfície, mas sabia, numa parte de si além de mente e espírito, que se esforçava para esconder profundezas carnais. Queria explorar essas profundezas. Trazê-las para a luz do dia e deleitar-se com elas. Eram uma parte tão grande dela como as partículas douradas nos seus olhos e ansiava por se deliciar com as suas ânsias.

– Vinde. Vejamos que mais há para ver. – Pegou-lhe na mão, sentindo que já não lhe resistia da mesma forma, conduzindo-a ao segundo buraco. Um olhar rápido bastou para perceber que a sala estava vazia.

Mas a seguinte não estava.

– Olhai – murmurou, pressionando-a contra a parede com o corpo. – Que vedes?

Abanou a cabeça, mas sussurrou, mesmo assim:

– O homem… possuiu-a por trás.

– Como um garanhão cobrindo uma égua – disse com voz baixa, endurecendo o corpo contra o dela.

Acenou debilmente com a cabeça.

– Agrada-vos?

Mas recusou responder-lhe.

Puxou-a, verificando o buraco seguinte, o que Pansy lhe recomendara. O que viu no interior fê-lo salivar de forma convulsiva. Virou-se e conduziu Mrs. Dews até ao buraco sem uma palavra. Percebeu o momento em que compreendia. O seu corpo imobilizou-se e a mão que sentia na sua apertou com força.

Colocou-se atrás dela, pressionando-a contra a parede para não haver fuga possível. Era quente e macia contra o seu corpo mais volumoso.

– Que vedes? – perguntou, sussurrando-lhe ao ouvido.

Abanou a cabeça, mas Lazarus segurou-lhe nas duas mãos, abrindo os braços contra a parede. Sentiu o membro, grosso a palpitante, forçar as calças e pressionar-se contra o traseiro macio.

– Dizei-me – exigiu.

Engoliu de forma audível no silêncio da passagem escura.

– A mulher é bela. Tem cabelo ruivo e pele clara.

– E?

– E está nua e atada à cama.

– Como? – Cobriu-lhe o pescoço com a boca. O seu cheiro era intenso àquela distância. Era o cheiro a mulher. Desejou poder arrancar-lhe a touca branca, puxando os alfinetes do cabelo e sepultar a cara naquelas madeixas. – Dizei-me agora.

– Tem as mãos sobre a cabeça, atadas à cabeceira da cama. – A sua voz era rouca e sensual. – As pernas estão abertas e os tornozelos atados ao fundo da cama. Está completamente nua e a sua… a sua… – Voltou a engolir em seco, incapaz de pronunciar a palavra.

– A sua racha? – disse, roçando a cara na dela. As ancas pressionaram-na por instinto ao dizer a palavra, como se procurassem aquela parte do seu corpo.

– Sim, isso. Está completamente exposta. – Gemeu quando o sentiu lamber-lhe o pescoço.

– E? – insistiu ele.

– Oh! – Inspirou fundo como se o fizesse para se recompor. – Tem um lenço tapando-lhe os olhos.

– E o homem?

– É alto e moreno. Está completamente vestido. Incluindo a peruca.

Sorriu contra a sua pele, movendo-lhe as ancas contra o traseiro. Erguer-lhe-ia as saias naquele momento e procuraria o sítio macio e húmido no seu centro se não receasse arrancá-la ao transe.

– Que faz ele? – Mordiscou-lhe delicadamente a orelha.

Gemeu.

– Ajoelha-se entre as pernas dela e… Oh, Deus!

Lazarus riu-se, cruelmente.

– Venera-lhe a racha, não é? Lambe-a, beija-a, pressiona a língua entre os lábios rosados, saboreando a sua essência.

Voltou a ouvi-la gemer e sentiu-a pressionar-se contra ele, mas não para fugir. O seu traseiro esfregou-se contra o membro duro e o triunfo preencheu-o.

Lambeu-lhe a orelha, percorrendo com a ponta da língua a curva delicada exterior.

– Gostaríeis? De sentir a minha boca no vosso centro? A minha língua contra o vosso botão? Lamber-vos-ia aí, provando-vos, saboreando-vos, até arqueares as costas por baixo de mim, mas não vos libertaria. Prender-vos-ia, com as coxas bem afastadas, a racha aberta para mim, e lamber-vos-ia até vos vires uma e outra vez.

Nesse momento, tentou mover-se, virando-se parcialmente, e Lazarus curvou-se e beijou-a com força, com a boca forçando a sua a abrir-se e penetrando-a com a língua de forma tão violenta como queria meter-lhe o membro no corpo. Deus! Estava perto de se vir nas calças e não se importava. Quebrava finalmente, a sua pequena mártir, e a sua rendição era mais doce que qualquer mel.

Colocou uma perna entre as delas para a obrigar a montá-lo. Prendeu-lhe as saias, puxando-as para cima, completamente focado num único objetivo. Deixara de lhe importar onde estavam, quem ela era e quem ele era, com o seu passado reprovável. Tudo o que queria era sentir a sua carne quente e húmida envolvendo-o. Sem demora.

A mulher cravou-lhe as unhas no couro cabeludo e puxou subitamente, surpreendendo-o e motivando-lhe uma exclamação de dor.

Não precisou de mais nada. Correu, uma lebre fugitiva escapando a um falcão, correndo desvairadamente pelo corredor escuro.

 

 

ENFEITIÇARA-A.

Temperance ofegava enquanto dobrava uma esquina na passagem escura. O pânico tornara-se uma criatura viva na sua garganta, esvoaçando e ameaçando bloquear a passagem de ar. Ameaçando expulsar-lhe a razão da mente.

Como soubera? A sua vergonha estaria marcada na sua face, à vista de todos os homens? Ou seria ele um feiticeiro capaz de perceber as fraquezas sensuais nas mulheres? Pois fora realmente enfraquecida. As suas pernas fraquejaram sob os avanços dele, o seu centro tornara-se líquido com desejo vergonhoso. Espreitara por aquele terrível buraco e descrevera-lhe a cena do outro lado e… Santo Deus… Gostara de o fazer. As palavras terríveis que lhe sussurrou enquanto lhe pressionava o traseiro com movimentos rítmicos tinham-na deixado quente e ávida. Quis que a montasse como um garanhão no cio no pequeno corredor escondido de um bordel.

Talvez tivesse enlouquecido.

A porta que conduzia ao corredor exterior estava destrancada. Abriu-se mal lhe tocou e correu pelas escadas abaixo, ouvindo as botas pesadas de Lorde Caire imediatamente atrás dela. Chegou ao pequeno vestíbulo quadrado e ouviu-o praguejar e tropeçar. Graças a Deus! Qualquer que fosse o motivo do atraso, permitia-lhe alguns segundos adicionais. Abriu a porta do bordel e fugiu pela noite fora.

O vento levou-lhe o fôlego e algo pequeno, mau e quadrúpede fugiu do seu caminho. Virou para uma minúscula viela coberta, com os seus passos ecoando das paredes de pedra antiga. Corria sem direção e sem pensar, com o pânico acelerando-lhe o coração. Se a apanhasse, voltaria a beijá-la. Pressionaria o corpo contra o dela e sentiria o sabor da sua boca, sentiria o seu toque e não conseguiria libertar-se uma segunda vez. Sucumbiria, deixando-se afundar na sua própria natureza pecadora.

Não podia permitir que acontecesse.

Por isso, quando o ouviu chamá-la alguma distância atrás, forçou-se a abrandar e a tornar mais furtivos os seus movimentos. A viela aberta conduzia a um pátio minúsculo. Olhou para trás e atravessou-o. Sentia o peito em chamas e quis tossir, mas forçou-se a respirar mais devagar, olhando novamente para trás. O pátio estava vazio. A voz dele fora distante. Talvez o tivesse perdido.

Temperance avançou por uma nova viela, virando para uma rua lateral e mudando novamente de caminho. A Lua erguera-se, iluminando-lhe os passos com a sua luz ténue. Correra tão depressa e com tamanho desespero que não sabia onde estava. Os edifícios de cada lado estavam escuros. Atravessou uma rua, voltando a acelerar e sentindo um arrepio de medo. Parou por um momento à sombra de uma casa, olhando em redor. Não via Lorde Caire. Talvez tivesse desistido da perseguição? Mas não parecia muito…

– Tola! – silvou-lhe ao ouvido.

Gritou. Era um som ignóbil, mas justificado pelo susto que lhe pregara.

Segurou-a pelos braços e sacudiu-a. A sua voz estava alterada pela raiva.

– Não tendes juízo? Prometi ao vosso irmão que cuidaria de vós e fugis em desvario para a pior parte de Saint Giles.

Olhou-o, boquiaberta, conseguindo pensar apenas que a raiva que demonstrava fora motivada pela preocupação. Pensara que a perseguia movido por frenesim sexual e, afinal, preocupara-se com a sua segurança. Temperance não conseguiu evitar. Lançou a cabeça para trás e riu-se, com o vento levando o som que lhe saía pelos lábios e ampliando-o.

Lorde Caire olhou-a com a testa franzida.

– Parai com isso. Não tem qualquer graça.

E, obviamente, aquilo só a fez rir mais ainda.

Suspirou de frustração masculina e voltou a sacudi-la, mas sem o mesmo empenho. Começou a puxá-la para si e o medo que sentia da atração que nele via regressou, recompondo-a. Colocou as mãos sobre o seu peito num débil gesto de pro-testo.

A seguir, empurrou-a rudemente para trás.

Temperance cambaleou como consequência do movimento repentino, mas recompôs-se e ergueu o olhar. Um grupo de homens passou pela rua, todos eles armados com cacetes. Caire virou-se e puxou pela extremidade da bengala. A espada curta preenchia-lhe a mão direita e o resto da bengala a esquerda. Não hesitou, avançando para os atacantes.

– Fugi! – gritou-lhe enquanto avançava.

Não esperavam que tomasse a iniciativa. Dois dos homens recuaram, um deles hesitou, mas os outros dois aproximaram-se de Caire. Temperance procurou a pistola. Prendeu à cintura o saco em que normalmente a transportava e começou a içar as saias.

Ouviu-se um grito curto, horrivelmente interrompido. Olhou a tempo de ver um dos atacantes de Caire recuar com a face sangrenta. Caire rodopiava de forma graciosa, com a capa esvoaçando enquanto atacava outro homem.

– Temperance! Obedecei-me. Fugi!

Abruptamente, sentiu um braço grosso rodear-lhe o pescoço, asfixiando-lhe o grito.

– Larga a espada – disse uma voz rude perto da sua orelha – ou parto-lhe o pescoço.

Caire voltou-se, semicerrando os olhos ao perceber a provação de Temperance. A seguir, o homem que imobilizava Temperance grunhiu e caiu, inerte. Afastou-se enquanto o homem caía ao chão. Abriu a boca de espanto, olhou e viu…

Uma aparição, movendo-se em silêncio e com rapidez, passando junto a ela. Os atacantes nem sequer chegaram a perceber que ali estava até um deles ser trespassado. Sonharia? Teria morrido sem saber? Porque a criatura que lutava em silêncio e com eficácia letal ao lado de Caire não se assemelhava a alguma coisa que tivesse visto.

Era alto, magro e vestia uma túnica de losangos vermelhos e pretos. As suas calças, botas altas e o chapéu de aba larga eram negros. Uma máscara igualmente negra cobria-lhe a metade superior da face, com nariz longo grotesco, linhas assustadoras à volta dos olhos e faces salientes. Empunhava uma espada reluzente numa mão e uma adaga longa na outra, usando as duas armas com destreza letal, saltitando agilmente sobre o empedrado enquanto lutava.

Caire e a aparição mantinham-se de costas voltadas, ambos lutando de forma determinada e precisa. Caire bloqueou um golpe com a bengala na mão esquerda e desferiu um golpe com a espada na direita. Os atacantes que restavam contornaram os dois homens como uma matilha de cães raivosos. Mas Caire e o arlequim moveram-se em uníssono, como se tivessem lutado juntos a vida inteira. Por mais que os atacantes tentassem superar as suas defesas, não encontraram qualquer abertura. A aparição atingiu um dos homens no peito enquanto Caire atingia outro na coxa. Um dos atacantes gritou e, de repente, fugiram, desaparecendo na noite de St. Giles. Até o homem que tinha surpreendido Temperance pelas costas recuperou o suficiente para fugir.

No silêncio que se seguiu, Temperance conseguia ouvir o som que a sua inspiração forçada produzia na garganta. A pistola nas suas mãos tremia violentamente.

A aparição voltou-se graciosamente, com as botas sussurrando sobre o empedrado. Tirou o chapéu e curvou-se numa vénia. Uma pena escarlate ondulou-lhe no chapéu quando o recolocou na cabeça.

A seguir, partiu também.

Temperance fitou Caire.

– Estais muito ferido? Quem era aquele?

– Não faço ideia. – Abanou a cabeça. O seu cabelo prateado soltara-se durante o combate e roçava a capa negra. – Mas, ao que parece, o Fantasma de Saint Giles não é um rumor.