Meg abanou a cabeça.
«Isso, Majestade, não é amor.»
«O quê?» A expressão do rei era ameaçadora.
«Se não é amor, então o que é?»
«Obediência», respondeu Meg.
«Os vossos guardas dizem-vos o que desejais ouvir
por serem obedientes, Majestade.»
Poderia ouvir-se um alfinete cair dentro da sala do trono.
O pequeno pássaro azul chilreou e o rei suspirou.
«Levem-na de volta às masmorras», ordenou aos guardas.
E acrescentou a Meg:
«Quando voltares a ser trazida perante mim,
certifica-te de que estarás devidamente limpa.»
Meg fez uma vénia.
«Para me limpar, Majestade, preciso de água, sabão e uma toalha. Se vos aprouver.»
O rei acenou com uma mão.
«Que assim seja.»
E os guardas levaram-na…
excerto de REI CORAÇÃO FECHADO
– Eu sabia que o Fantasma de Saint Giles era real! – exclamou Nell mais tarde nessa noite.
Temperance voltou-se para olhar fixamente a criada, sabendo que Winter, do outro lado da mesa da cozinha, se virara ao mesmo tempo.
Nell corou sob os seus olhares combinados.
– Sabia, sim! Tinha olhos raiados de sangue?
Temperance esboçou um sorriso cansado ao ver o entusiasmo de Nell. Caire acompanhara-a de volta a casa depois do ataque e Winter e Nell abeiraram-se dela pouco depois. Passara o quarto de hora anterior respondendo às perguntas em tom reprovador de Winter, interrompida ocasionalmente pelas exclamações de Nell.
– Não consegui ver bem os seus olhos – respondeu com sinceridade. – Tinha uma máscara com um nariz longo e curvo.
Winter roncou de desprezo.
Olhou-o com desagrado.
– E vestia um fato de arlequim vermelho e negro.
O irmão arqueou as sobrancelhas ao ouvir aquilo, parecendo vagamente interessado.
– Um fato teatral? Parece um louco.
– Um ator louco. – Nell estremeceu de deleite.
– Lutava muito bem para ser um louco – afirmou Temperance, pouco convencida.
– Talvez seja apenas um salteador com gosto pelo dramatismo – afirmou Winter secamente.
– Ou será um fantasma real voltando ao mundo para vingar a sua morte em Saint Giles – disse Nell.
Temperance abanou a cabeça.
– Não era um fantasma. O que vi esta noite foi um homem de carne e osso, alto e magro. – Esboçou um sorriso fantasioso. – Na verdade, assemelhava-se muito a ti, irmão.
Nell conteve uma gargalhada.
Winter limitou-se a suspirar.
– Seja quem for – apressou-se a dizer Temperance –, devo-lhe a vida.
– E é precisamente por esse motivo que será prudente não voltares a ver Lorde Caire – replicou Winter.
Temperance encolheu-se, sabendo que lhe permitira munições para apresentar aquele argumento. Se ao menos não se sentisse tão horrivelmente cansada! Esfregou a têmpora.
– Winter, por favor, podemos guardar esta discussão para amanhã?
Por um momento, fixou nela os olhos castanhos tristes. A seguir, acenou afirmativamente com a cabeça e ergueu-se.
– Poupar-te-ei a discussão esta noite, irmã, mas uma noite de sono não me fará mudar de ideias. Associares-te com este homem colocou-te em perigo, fez-te negligenciar os teus deveres para com o lar e as crianças e receio que ameace o teu bom senso e a tua virtude. Não quero que voltes a vê-lo.
Acenou educadamente com a cabeça e saiu.
Temperance apoiou a cabeça nas mãos.
Nell pigarreou após um momento de silêncio.
– Uma chávena de chá recompõe-me sempre, especialmente antes de dormir.
Temperance teve de pestanejar para conter as lágrimas que lhe enchiam os olhos
– Obrigada.
Nunca trocara palavras iradas com Winter. Asa e Concord conseguiam enfurecê-la com a sua teimosia e incapacidade para aceitar outros pontos de vista, mas Winter nunca lhe elevara a voz. Era um homem ponderado, difícil de enfurecer, e perceber que o enfurecera naquela noite era extremamente perturbador.
Nell pousou uma chaleira sobre a mesa juntamente com duas chávenas, sentando-se à sua frente. Encheu com chá a ferver uma das chávenas.
– Mister Makepeace não queria ser tão… tão… ah… – Nell calou-se, aparentemente incapaz de pensar numa palavra que não desrespeitasse o seu empregador.
Temperance forçou um sorriso.
– Sim. Queria.
– Oh, mas…
– E está certo. – Temperance estendeu uma mão e segurou a chávena, puxando-a para si. – Não devia abandoná-lo para passear pelo East End com Lorde Caire. Negligencio os meus deveres.
Nell serviu em silêncio uma segunda chávena, colocando um enorme torrão de açúcar e mexendo. Bebeu um pequeno gole e voltou a colocar cuidadosamente a chávena na mesa, mantendo os olhos no chá.
– Lorde Caire é um homem muito… apelativo. Agradável à vista. É o que acho.
Temperance olhou-a.
Nell mordeu o lábio.
– Acho que será aquele cabelo, tão longo, volumoso e brilhante. E prateado! Assenta-lhe tão bem.
– Gosto dos seus olhos – admitiu Temperance.
– Gostais?
Uma gota de chá caíra sobre a mesa e Temperance cobriu-a com a ponta de um dedo, desenhando um círculo na madeira.
– Nunca vi olhos tão azuis. E as pestanas são tão escuras. Contrastam com o cabelo.
– Tem um rico nariz – disse Nell, refletindo.
– E os lábios são largos e curvos nas extremidades. Reparaste?
Nell suspirou. Foi resposta suficiente.
Temperance mordeu o lábio.
– E são tão firmes e tão macios ao mesmo tempo. Deixaram-me sem fôlego.
Percebeu que poderia ter dito demasiado com aquela última confissão e bebeu apressadamente um gole de chá.
Quando voltou a colocar a chávena sobre a mesa, Nell olhava-a intensamente.
– Parece sentir uma… consideração especial por vós.
Os olhos de Temperance voltaram a fixar-se na mesa. O seu círculo de chá secara.
– Como podes dizer isso? Nem sequer o conheceste.
– Ah, mas ouvi o que contaram Polly e as crianças – disse Nell. – Polly diz que o olhar dele a arrepia.
Como a olhara? Nell confundiria luxúria com carinho? E porque lhe importava tanto?
Temperance abanou a cabeça, colocando as mãos sobre a mesa.
– Os seus desejos são aberrantes. E, mesmo que não fossem, que tipo de mulher seria eu se permitisse que as minhas ânsias me guiassem?
– Uma mulher comum, talvez – afirmou Nell com gentileza.
Temperance permaneceu calada, recordando a mulher ruiva com o lenço cobrindo-lhe os olhos. Recordando a excitação que sentiu ao vê-la. Estava tão cansada de tentar conter as suas ânsias e Lorde Caire não se esforçava minimamente para tentar contê-las. Ao invés, parecia deleitar-se com elas.
Nell pigarreou.
– Tive um amigo que gostava de um pouco de aventura no quarto.
– Ah, sim? – Nell raramente falava da sua profissão anterior.
Acenou afirmativamente.
– Era um cavalheiro comum em todos os outros aspetos. Fazia mostradores de relógio, mas, no quarto, gostava de atar a mulher com quem estava.
Temperance manteve o olhar cuidadosamente focado no pedaço de mesa entre as suas mãos, sentindo o calor subir-lhe pela face. Ter aquela discussão era horrivelmente embaraçoso, mas fazê-lo tendo Lorde Caire em mente… Santo Deus!
– Esse amigo… – Temperance hesitou e lambeu os lábios. – Magoou-te?
– Não, senhora – respondeu Nell. – É verdade que há cavalheiros que gostam de magoar as raparigas com quem estão, mas o meu cavalheiro não era um deles. Parecia apenas gostar mais de tudo se não me conseguisse mexer.
– Oh! – disse Temperance, baixando a voz.
Não devia pensar naquilo. Despertava dentro de si os piores impulsos. Mas sentia a revolta crescer-lhe no peito. Seria assim tão horrível limitar-se a contemplar uma união sexual com Caire? Pensar em como seria sentir o lenço sobre os olhos? Imaginar o que faria em primeiro lugar se estivesse presa, indefesa e aberta? Imaginar-se cedendo às ânsias sem culpa, como Lorde Caire parecia fazer?
Conteve um arrepio.
– Pensei que não aprovasses Lorde Caire.
– Não conheço o cavalheiro – afirmou Nell cuidadosamente. – Conheço apenas a reputação que tem entre as mulheres da noite de Saint Giles.
Temperance franziu a testa.
– O facto de ter uma reputação, qualquer que seja, entre essas mulheres será motivo suficiente para reprovação.
– Suponho que tendes razão. – Nell suspirou. – Sei que um homem deverá manter-se puro até casar. Não deverá procurar pegas se sentir impulsos.
Temperance abanou a cabeça de forma incerta. Claro que não. União sexual fora dos laços do matrimónio era pecami-nosa.
– Mas a verdade, senhora – continuou Nell em voz baixa – é que não me parece que prejudique alguém.
Temperance ergueu o olhar.
– Que queres dizer?
Nell encolheu os ombros.
– Os folguedos na cama. Suponho que todos os homens e a maioria das mulheres os apreciarão, mesmo fora do casamento. Porque é tão malvisto?
Temperance olhou-a fixamente, incapaz de responder.
Nell inclinou-se para diante.
– Se os folguedos de cama trazem alegria, mesmo por pouco tempo, porquê condená-los?
ST. JOHN ESTAVA NO SEU ESCRITÓRIO no dia seguinte, olhando de testa franzida um discurso de Cícero quando Molder pigarreou ruidosamente junto à porta.
– Está aqui Lorde Caire, senhor.
Talvez dissesse que não estava em casa, mas Caire, maldito fosse, estava imediatamente atrás do mordomo. St. John firmou o maxilar, pousou a caneta e acenou a Caire que entrasse.
Caire avançou, trazendo um enorme ramo de margaridas.
– Não imaginas quem encontrei em Saint Giles na noite passada.
– Uma pega? – perguntou St. John, venenoso.
– Não. Bom… sim. – Caire coçou o queixo. – Pelo menos, presumi que fossem pegas, mas isso não é novo. Não. Conheci o infame Fantasma de Saint Giles.
– Ah, sim? – St. John ocupou-se a reorganizar os papéis sobre a secretária.
Quando voltou a erguer o olhar, Caire olhava-o, pensativo. Pousou o ramo sobre a mesa.
– Um homem com uma túnica de arlequim, chapéu de aba larga decorado com uma pluma escarlate e uma meia máscara negra. Ah! E brandia uma espada longa e uma adaga. Demasiado exuberante na minha opinião.
St. John fungou.
– Como se estivesses em posição de criticar a exuberância alheia.
Caire ignorou-o.
– Creio que a pena escarlate ultrapassou os limites.
St. John suspirou.
– E que fazia o Fantasma?
– Salvava-me a vida, se queres mesmo saber.
– O quê?
– Fui atacado por cinco rufias na noite passada. O Fantasma decidiu intervir no momento certo.
– Mistress Dews estava contigo? – perguntou St. John delicadamente.
Caire olhou-o em silêncio.
– Maldição! – St. John afastou-se da secretária. – Porque insistes em perseguir essa senhora? Coloca-la em perigo.
– Esse facto desagrada-me tanto como a ti. Decidi que não poderei voltar a levá-la por Saint Giles sem guardas de qualquer tipo. – Abanou a cabeça. – Ainda não decidi como continuarei a minha investigação com ela.
– Devias deixá-la por inteiro.
A boca de Caire contorceu-se, perdendo toda a boa disposição.
– Creio que não conseguirei.
– Porquê? – St. John abanou a cabeça. – Nem sequer é o teu tipo.
– Qual é o meu tipo?
St. John afastou o olhar. Ambos conheciam bastante bem o tipo de mulher que Caire preferia.
– Pegas? – perguntou Caire em tom delicado. – Mulheres que possam ser compradas com joias?
St. John olhou-o, impotente.
Caire caminhava para trás e para diante.
– Talvez o meu tipo me canse. Talvez deseje ser visto na companhia de um tipo diferente de mulher.
St. John inclinou-se para diante com voz baixa e intensa.
– Então porquê ela? Existem inúmeras senhoras do nosso estatuto social, inteligentes, espirituosas e belas, que ficariam muito felizes por serem alvo do teu interesse.
– E cada uma delas avaliaria mentalmente o meu rendimento anual e a minha linhagem. – Caire esboçou um sorriso um pouco triste. – Talvez queira uma mulher a quem não interesse nenhum desses elementos. Talvez queira uma mulher que veja apenas um homem quando me olhar.
St. John olhou-o fixamente.
– Há alguma coisa nela – disse Caire em voz baixa. – Preocupa-se com todos os que a rodeiam, mas negligencia-se a si própria. Quero ser eu a preocupar-me com ela.
– Arruiná-la-ás – respondeu St. John.
– Sim? A senhora demonstra vontade, por mais que protestes. Deixa-te disso, Godric. Porque te preocupas tanto com ela?
St. John ficou calado, sentindo crescer-lhe no peito uma mágoa antiga.
– Recorda-te Clara, não é? – perguntou Caire em voz baixa.
– Maldito sejas. – St. John sentia os olhos a arder. – Também te recorda Clara a ti?
– Não. – Caire tocou o ramo de margaridas com a ponta de um dedo. – Clara foi sempre tua desde o início. Pensei sempre nela como uma amiga querida. Confesso que não posso dizer o mesmo acerca de Mistress Dews.
St. John olhou fixamente as mãos fechadas sobre a secretária.
– Perdoa-me.
– O quê?
– Creio que agi movido pelo ciúme. – St. John fechou os olhos. – Tens uma mulher saudável e robusta.
– Não. Sou eu quem deve pedir perdão. O teu fardo é pesado.
St. John baixou a cabeça, incapaz de falar.
– Sabes que daria a vida pela cura da sua doença – sussurrou Caire.
Os passos de Caire afastaram-se e St. John ouviu a porta fechar-se com cuidado.
St. John inspirou, abrindo os olhos. Estavam húmidos e tentou secá-los com a manga, irritado. A seguir, ergueu-se e aproximou-se das flores que Caire tinha trazido. Eram pelo menos duas dúzias de garridas margaridas brancas e douradas.
Pegou-lhes e levou-as para a porta do escritório.
As margaridas eram a flor preferida de Clara.
A TARDE APROXIMAVA-SE da noite quando Silence partiu. Se aquele Mickey Encantador fosse um ladrão que trabalhasse de noite, era lógico que não estaria na melhor das disposições pela manhã.
E queria que estivesse bem-disposto.
Acelerou o passo pela rua estreita, tendo o cuidado de evitar os olhares das outras pessoas que se moviam por aquela parte de Londres. Eram maioritariamente vendedores ambulantes voltando para casa depois de um longo dia apregoando os seus produtos em zona mais prósperas. Empurravam carrinhos de mão com legumes murchos ou transportavam tabuleiros já sem as suas tartes ou fruta. Não receava aquelas pessoas. Mas havia outros que receava. Homens baixos com olhos irrequietos e maldosos. Mulheres com vestidos garridos atravessando-se em portas e à entrada de vielas, erguendo uma ponta das saias aos homens que passavam por elas para anunciar a sua profissão. Silence apressou o passo na proximidade daqueles dois grupos.
Percebia que a sua saia discreta de lã e a simples touca de renda tinham qualidade muito superior à das roupas das pessoas em redor. Vestira-se com esmero para aquele encontro, querendo impressionar sem dar demasiado nas vistas, mas até a sua segunda melhor saia atraía olhares das pegas nas esquinas. Cobriu-se melhor com a capa e baixou a cabeça, caminhando mais depressa.
Começava a pensar se esconder aquela missão do marido teria sido a melhor ideia. Mas que escolha tivera? Não podia ficar sentada enquanto William era condenado e preso. Aquele era o único caminho e porque, certamente, William não aprovaria, não vira qualquer motivo para lhe dizer.
Silence inspirou fundo quando passou a última esquina. O edifício para onde se dirigira era uma estrutura velha, alta e estreita, com a fachada de tijolo em mau estado. Erguia-se entre uma oficina de sapateiro e uma casa de aposentos alugados, parecendo tão discreta como as suas vizinhas. O único elemento que dava nas vistas eram os dois homens corpulentos que se erguiam junto à porta, com um terceiro caminhando para trás e para diante na rua, à frente do edifício. Silence dirigiu-se à porta, endireitando os ombros e erguendo o queixo.
Manteve a face do seu querido William no pensamento enquanto olhava os guardas.
– Desejo falar com Mister O’Connor.
Um dos homens ignorou-a por completo, fingindo não a ter visto ou ouvido, apesar de estar diante do seu nariz. Mas o segundo homem, com um enorme nariz partido e um casaco verde-garrafa demasiado apertado, pareceu divertido pelo pedido que fizera.
Olhou-a de alto a baixo com demasiada familiaridade mas não de forma maldosa.
– Não é o tipo dele, querida.
– Sem dúvida. – Silence forçou-se a não mostrar embaraço depois da avaliação brutal. – Mas preciso de falar com ele, mesmo assim.
– Mas não é provável que isso aconteça, percebe? – replicou Nariz Partido.
O seu companheiro falou pela primeira vez, expondo vários dentes em falta no maxilar superior:
– O que tem?
Silence pestanejou.
– Perdão?
Nariz Partido inclinou a cabeça para o outro homem.
– Quer saber quanto pode pagar-nos, querida.
– Ah! – Silence puxou pela minúscula carteira que trazia pendurada à cintura, por baixo de uma abertura no vestido. Abriu-a e olhou novamente os dois homens.
– Dois pence para cada um?
Sem Dentes roncou de desprezo.
– Não por menos de meia coroa para cada um.
Silence susteve a respiração, mas, antes que pudesse protestar, Nariz Partido voltou-se para o seu companheiro.
– Meia coroa? Enlouqueceste, Bert?
– Não, Harry – replicou Bert. – Acho meia coroa um preço justo.
– Só se tivermos aqui a condessa de Suffolk – exclamou Harry. – Parece-te a condessa de Suffolk?
– Espera lá – começou Bert, indignado.
– Desculpem! – disse Silence, elevando bastante a voz e receando que os dois homens estivessem prestes a resolver o diferendo com os punhos.
Harry e Bert viraram-se para ela, mas foi Harry a dizer:
– Sim?
– Um xelim para cada um serve?
Bert voltou a fungar, ruidosamente e com desprezo óbvio pela proposta. Mas Harry foi mais generoso.
– Um xelim para cada um parece-me bastante adequado.
Bert murmurou entredentes alguma coisa sobre corações macios e cabeças moles, mas estendeu prontamente a mão quando Silence abriu a bolsa.
– É tua criatura – disse a Barry. – É melhor que sejas tu a levá-la pessoalmente.
Harry acenou com agrado a Bert.
– Calculo que será melhor. Por aqui, senhora. – Segurou-lhe a porta.
Silence entrou na casa e, quase de imediato, parou, não conseguindo conter a boca aberta.
Atrás dela, Harry riu-se.
– Um pouco inesperado, não é?
E podia apenas concordar. As paredes estavam decoradas com ouro.
O salão não era largo, mas o teto erguia-se a grande altura e o dourado elevava-se do chão para cobrir também o alto. Por baixo dos seus pés, viu um mosaico de placas de mármore com todas as cores do arco-íris, dispostas ao acaso. Por cima, candelabros de cristal pendiam do teto dourado e as luzes eram refletidas pelo glorioso metal amarelo uma e outra vez até se tornar tudo uma assombrosa demonstração de riqueza.
– Não teme os ladrões? – perguntou sem pensar.
Santo Deus. Nunca ouvira falar de nada tão extravagante como aquele corredor. O próprio rei não teria paredes douradas, certamente!
Mas Harry riu-se.
– Só um grande tonto tentaria roubar Mickey Encantador, minha senhora. Alguém que não se importasse de conhecer o Criador pela manhã.
Silence engoliu em seco.
– Oh!
Harry mostrou-se mais sério.
– De certeza que quer ver Mickey Encantador, senhora? Posso deixá-la sair por aquela porta. Sem qualquer problema.
– Não. – Silence ergueu os ombros. – Não partirei enquanto não o vir.
Harry encolheu os ombros largos como se desse a entender que lavava daí as suas mãos. Voltou-se sem dizer mais nada e conduziu-a através do salão sumptuoso. Havia uma escada curva ao fundo, talhada no mesmo mármore multicolorido do piso, como algo saído do sonho de um imperador.
Harry subiu a escada à sua frente (não havia espaço suficiente para subirem lado a lado), conduzindo-a ao corredor superior. Aí, duas grandes portas duplas esperavam diante do alto das escadas.
Harry bateu numa das portas.
Uma minúscula janela branca abriu-se num dos painéis das portas e um olho pestanejou no interior.
– Sim?
– Uma senhora para o ver – disse Harry.
O olho fixou-se em Silence.
– Revistaste-a?
Harry suspirou.
– Parece-te uma assassina, Bob?
Bob pestanejou.
– Pode ser. Os melhores assassinos são os que não parecem assassinos, percebes?
Harry limitou-se a olhar o olho.
– Está bem – disse Bob, o Olho, após uma pausa embaraçosa. – Mas, se tentar alguma coisa, a responsabilidade é tua.
Harry olhou Silence.
– Não tente nada, ouviu?
Acenou com a cabeça sem dizer nada. Pensar no que estava prestes a fazer provocou-lhe um aperto na garganta.
As grandes portas douradas foram abertas por Bob, que revelou ser um homem esquelético envergando uma peruca branca que não lhe assentava bem. Tinha pistolas enfiadas num cinto largo e muito usado que usava sobre o casaco. Mas Silence quase não reparou no porteiro.
A sala era magnífica.
O piso glorioso de mármore continuava no interior da grande sala quadrada, mas as paredes douradas foram substituídas por mármore branco reluzente. Silence olhou com maior atenção e abriu a boca de espanto. O mármore branco estava decorado com pedras preciosas. No alto, o teto era de ouro com grande número de luzes de cristal penduradas, brilhando tanto como o sol da manhã. E havia riquezas em cada canto, cada centímetro da sala. Rolos de sedas brilhantes empilhavam-se sobre mesas com tampo de mármore. Escrivaninhas decoradas com relevos alinhavam-se contra aparadores de mogno. Caixas transbordando de palha expunham pratos de porcelana e jade moldado com minúcia. Especiarias exóticas em arcas orientais perfumavam o ar e graciosas estátuas de mármore fitavam tudo aquilo com olhar entediado. No extremo oposto da fabulosa sala do tesouro, erguia-se um estrado com uma enorme cadeira de costas altas no topo. O estofo de veludo vermelho estava demasiado cheio e os braços dourados eram esculpidos. Seria possível chamar-lhe trono.
O que faria do homem que ali se sentava um rei. O Rei dos Piratas.
Estava descontraído, com uma perna sobre o braço da cadeira. O cabelo negro estava solto, com caracóis escuros caindo-lhe sobre os ombros e a testa. Vestia uma camisa de linho desabotoada, com renda delicada emoldurando a pele morena do peito. As calças eram de veludo negro e completava o traje com botas altas polidas que lhe chegavam a meio da coxa.
Ter-se-ia rido de uma figura tão ridiculamente exuberante se não fosse óbvio que os seus homens o levavam muito a sério. À sua direita, erguia-se um homem baixo e magro, sem peruca, com a cabeça quase calva e óculos pequenos e redondos. À sua esquerda, havia cerca de uma dúzia de homens duros, despreocupados, cada um armado até aos dentes. Próximo do seu cotovelo, erguia-se um rapaz com um tabuleiro prateado de doces. Diretamente à frente de Mickey Encantador, um homem corpulento ajoelhava-se diante do trono, parecendo recear pela vida.
– Lamento! – O homem mantinha punhos grandes como presuntos sobre as coxas. – Deus é minha testemunha. Lamento muito, senhor!
O homem magro à direita de Mickey Encantador curvou-se e segredou alguma coisa ao pirata de rio.
Este acenou afirmativamente e olhou o suplicante à sua frente.
– E tu compreenderás, Dick, se achar que o teu lamento vale tanto como um monte de merda de cão.
O homem corpulento, Dick, tremeu.
Mickey Encantador olhou-o por um momento, apoiando o ombro direito no braço da cadeira, esfregando preguiçosamente o polegar e o dedo médio. Anéis com pedras preciosas reluziram nos seus dedos.
A seguir, estalou os dedos a dois dos seus homens.
Avançaram imediatamente enquanto o homem ajoelhado começava a berrar.
– Não! Por favor, não! Tenho filhos. A minha mulher espera o terceiro!
O homem gritou enquanto era arrastado para uma porta distante. A porta fechou-se e os seus gritos foram abruptamente interrompidos. O silêncio repentino ecoou pela sala espa-çosa.
Silence sentiu o fôlego que sustivera escapar-lhe dos pulmões. Santo Deus. Em que se metera?
Harry pegou-lhe no cotovelo e começaram a aproximar-se do trono. Pelo caminho, sussurrou-lhe pelo canto da boca:
– Não mostre medo. Odeia cobardes.
E assim ficou diante de Mickey Encantador O’Connor, exatamente no local onde o infeliz Dick se ajoelhara segundos antes.
Mickey Encantador gesticulou ao rapaz com o tabuleiro de doces. O rapaz avançou, oferecendo-lhos. A mão decorada com anéis de Mickey Encantador pairou sobre o tabuleiro enquanto escolhia. Decidiu-se por um bombom de cobertura rosa.
Ergueu o doce entre os dedos elegantes e examinou-o.
– Quem é ela?
Harry indicou-a com a cabeça, sem se mostrar perturbado pela pergunta repentina.
– Uma senhora que quer falar consigo.
Os olhos de Mickey Encantador ergueram-se e Silence viu que eram de um castanho tão escuro que poderiam ser negros.
– Isso vejo eu, Harry, querido. O que quero saber é porque está ela na minha sala do trono.
Silence olhou Harry, que, pela primeira vez, parecia desconfortável, decidindo intervir pelo seu paladino.
– Vim para falar do meu marido, o comandante William Hollingbrook, e da carga que roubou do seu navio, o Tentilhão.
A seu lado, Harry susteve a respiração. O rapaz segurando o tabuleiro de doces encolheu-se e o homem magro ao lado de Mickey Encantador fixou nela olhos curiosos atrás dos óculos redondos.
Ocorreu a Silence que talvez devesse ter escolhido as palavras com mais cuidado. Mas era demasiado tarde. Os olhos escuros de Mickey Encantador fixavam-se nela, examinando-a minuciosamente. Introduziu o doce rosado na boca e mastigou devagar, com os músculos do maxilar fletindo e descontraindo enquanto semicerrava as pálpebras em deleite.
Engoliu e sorriu e, de repente, Silence compreendeu porque lhe chamavam «encantador». Quando sorria, Mickey era o homem mais atraente que alguma vez vira. Não teria mais de trinta anos, a sua pele era suave e bronzeada e as suas sobrancelhas inclinavam-se num ângulo descendente. O nariz era longo e quase aristocrático, os lábios eram longos, curvos e elegantes. Uma covinha marcava-lhe a face perto da boca. Quando sorria, Mickey Encantador parecia quase inocente.
Mas Silence não cairia nessa armadilha. Independentemente do que dissesse o seu sorriso, aquele homem não era inocente.
– Acho «roubou» uma palavra tão feia – disse Mickey Encantador. O seu sotaque irlandês quase transformava as palavras numa carícia. – Devo avisá-la, Mistress Hollingbrook, de que não permito que muitos a digam na minha presença.
Silence conteve o impulso de pedir desculpa. As ações daquele homem tinham colocado o seu marido em apuros.
Mickey inclinou a cabeça e um caracol longo e sedoso de cabelo cor de ébano deslizou-lhe sobre o ombro.
– Que deseja de mim, querida?
Ergueu o queixo.
– Quero que devolva a carga.
Mickey pestanejou como se aquilo o intrigasse.
– E porque faria uma coisa tão despropositada?
O coração de Silence batia de forma tão ruidosa que receou que conseguisse ouvi-lo, mas, mesmo assim, afirmou sem vacilar:
– Porque a devolução da carga é a coisa certa a fazer. A coisa cristã a fazer. Se não o fizer, o meu marido será preso.
Mickey ergueu uma sobrancelha negra, parecendo bastante diabólico.
– O seu marido sabe que está aqui, querida?
Silence mordeu o lábio.
– Não.
– Ah. – Voltou a chamar o rapaz dos doces e escolheu outro.
Silence começou a abrir a boca, mas Harry avisou-a com um toque e manteve-se calada.
Mickey comeu o doce devagar enquanto os que se erguiam na sala do trono esperavam. Silence reparou numa estátua de mármore negro representando alguma deusa romana, curvando-se ligeiramente atrás dele. Tinha uma tiara e um longo colar de pérolas pendia-lhe sobre o peito nu.
– É assim que as coisas funcionam, querida – disse Mickey tão repentinamente que Silence deu um salto. Viu-o esboçar novamente aquele sorriso inocente. – O dono do navio que o seu marido comanda e eu tivemos um desentendimento, percebe? Acha que pode não me pagar o dízimo pelas cargas que chegam. E eu… bom, não posso concordar com isso. Demonstra falta de respeito, na minha humilde opinião. Por isso, senti-me autorizado a confiscar a carga do Tentilhão como forma de captar a atenção do sujeito. Poderá considerar que foi uma manobra drástica e terei de concordar, mas isso não muda nada. O homem fez a cama e, agora, terá de se deitar nela.
Mickey Encantador encolheu os ombros graciosamente como se pretendesse dizer que o assunto estava fora das suas mãos.
Então era assim. A audiência chegara ao fim. Harry pousou--lhe uma mão no braço para a levar para fora e Mickey Encantador inclinava já a cabeça para ouvir algo que o homenzinho baixo lhe segredava. Mas não podia desistir. Tinha, pelo menos, de tentar mais uma vez. Por William.
Inspirou fundo e, enquanto o fazia, sentiu a mão de Harry apertar-lhe mais o braço num gesto de aviso.
– Por favor, Mister O’Connor. Disse que o seu desentendimento é com o proprietário do navio e não com o meu marido. Não poderá devolver a carga por ele? Por mim?
Mickey virou lentamente a cabeça para a olhar. Deixara de sorrir. Os seus olhos escuros eram estranhamente frios e, sem o sorriso, os lábios assumiam uma aparência cruel.
– Cuidado, querida. Deixei-a brincar entre as minhas garras uma vez e partir intacta. Se voltar a colocar-se no seu alcance, só poderá culpar-se a si mesma.
O silêncio abateu-se sobre ela. O seu aviso sussurrado fez-lhe arrepiar os cabelos na nunca e, pela primeira vez, percebeu que corria realmente perigo mortal. Desejou virar-se e fugir dali para fora.
Mas não o fez.
– Por favor. Suplico-lhe. Se não o fizer pelo meu marido ou por mim, faça-o por si. Pela sua alma imortal. Faça-me este favor e prometo-lhe que não se arrependerá.
Mickey Encantador olhou-a, frio, distante e impassível. A sala estava tão silenciosa que cada inspiração de Silence lhe ecoava aos ouvidos. A seu lado, Harry parecia ter parado de respirar.
Até Mickey esboçar lentamente um sorriso.
– Deverá amá-lo muito, a este comandante Hollingbrook. A este maravilhoso marido.
– Sim – respondeu Silence, orgulhosa. – Amo.
– E ele também a ama, querida?
Silence arregalou os olhos, surpreendida.
– Claro.
– Ah! – murmurou Mickey Encantador. – Nesse caso, talvez haja outra forma de resolvermos esta questão beneficiando-nos a ambos. A si e a mim.
A seu lado, Harry ficou hirto.
Percebeu. Percebeu que o que Mickey Encantador propusesse seria muito mau. Soube que não sairia daquela sala, daquela casa magnífica e desvairada, com a alma completamente intacta.
– Isto, claro – murmurou Mickey, malicioso como o próprio demónio – se amar realmente o seu marido.
William era tudo no mundo para ela. Não havia nada que não fizesse para o salvar.
Silence olhou o diabo nos olhos e ergueu o queixo.
– Amo.