Capítulo 11

 

 

 

 

 

Meg passou o resto do dia lavando-se com agrado e,

quando foi dormir nessa noite,

sentia-se consideravelmente mais limpa.

Na manhã seguinte, foi levada perante o Rei Coração Fechado. Pareceu um pouco surpreendido quando a viu.

Talvez não a tivesse reconhecido sem a camada de sujidade?

Mas a sua habitual expressão de desagrado não tardou a regressar. Diante dele, erguia-se um grandioso grupo de cortesãos

ostentando ricas peles, veludos e joias.

O rei perguntou aos dignitários reunidos:

«Amais-me?»

Os cortesãos não falaram em coro como os guardas no dia anterior, mas a sua resposta foi a mesma: sim!

O rei olhou Meg com um sorriso trocista.

«Aí tens! Confessa agora que foste tola…»

excerto de REI CORAÇÃO FECHADO

 

 

 

– Então pretendes voltar a vê-lo? – perguntou Winter com voz baixa nessa noite.

– Sim, pretendo. – Temperance terminou de entrançar o cabelo loiro de Mary Little e sorriu à rapariga. – Pronto. Está feito. Agora, para a cama.

– Obrigada, senhora.

Mary Little baixou-se dobrando as pernas como tinha aprendido a fazer e saiu da cozinha. Mais tarde, quando todas as crianças estivessem deitadas, Winter viria ouvir as suas orações.

– Agora tu, Mary Church. – A rapariga voltou-lhe as costas e Temperance pegou na escova, concentrando-se em domar os caracóis densos e castanhos sem puxar demasiado.

As três Marys restantes sentavam-se diante da lareira em camisa de dormir, com o cabelo secando enquanto curvavam as cabeças sobre os bordados. O dia do banho era sempre cansativo, mas Temperance apreciava-o, mesmo assim. Havia algo maravilhosamente apaziguador em ter as crianças todas limpas para variar.

Ou, pelo menos, deveria ser um momento apaziguador.

Suspirou.

– Preciso de ir esta noite.

Todas as raparigas conseguiam ouvir a discussão, mesmo que, juntamente com Winter, se esforçassem para manter as vozes cordiais Mas a criança que mais a preocupava era Mary Whitsun. Essa Mary sentava-se a seu lado, penteando os caracóis da pequena Mary Sweet de dois anos. Mary Whitsun mantinha o olhar fixo na tarefa, mas franzia a testa.

Temperance suspirou.

Era lamentável que não pudessem ter aquela discussão em privado, mas, se pretendia ir ao baile a que Caire prometera levá-la naquela noite, teria de deitar as crianças e apressar-se a vestir o vestido emprestado por Nell. Desejou que fosse apenas pelo lar que ansiasse pela chegada do momento. O seu coração acelerara já por pensar em ver Caire novamente. Olhou com preocupação o velho relógio sobre a lareira. Correra já riscos consideráveis.

– Lamento, mas espero ver um determinado cavalheiro esta noite.

Winter afastou o olhar da lareira.

– Quem?

Temperance franziu a testa enquanto tentava desfazer um nó no cabelo de Mary Church.

– Um cavalheiro que Caire me apresentou no recital. Sir Henry Easton. Pareceu bastante interessado no nosso lar. Fez-me perguntas acerca dos aprendizados para os rapazes e do vestuário que fornecemos. Coisas desse tipo. Espero conseguir convencê-lo a ajudar-nos.

Winter olhou as raparigas, todas ouvindo com avidez.

– Deveras? E que garantia tens de que fará o que esperas?

– Nenhuma. – Temperance puxou com demasiada força o cabelo de Mary Church e a rapariga gritou. – Desculpa-me, Mary Church.

– Temperance… – começou Winter.

Mas foi ela a falar, em voz baixa e com palavras rápidas.

– Não tenho quaisquer garantias, mas terei de ir, mesmo assim. Não o compreendes, irmão? Terei, pelo menos, de averiguar possibilidades, mesmo que revelem ser falsas esperanças.

Os lábios finos de Winter comprimiram-se.

– Muito bem. Mas não te afastes de Lorde Caire. Não me agrada imaginar-te num desses bailes de aristocratas. Ouvi falar… – olhou as raparigas e pareceu alterar o que diria – do que acontece em tais bailes. Tem cuidado, por favor.

– Claro. – Temperance sorriu a Winter e, a seguir, transferiu o sorriso para Mary Church. – Estás pronta.

– Obrigada, senhora.

Mary Church pegou na mão de Mary Sweet, pois a pequena estava também adequadamente entrançada e levou-a para fora da cozinha.

– Muito bem. Faltam só três pequenas cabeças e seis pequenas tranças. – Winter sorriu às raparigas que esperavam junto à fogueira.

Riram-se para ele. Era sempre gentil, mas não era frequente falar em tom tão ligeiro.

– Vou começar a ler o salmo da noite – disse Winter.

Temperance acenou afirmativamente.

– Boa noite.

Pegou-lhe na mão, pousada brevemente sobre o seu ombro enquanto passava por ela, e suspirou de alívio. Odiava mais a sua censura do que a dos seus outros irmãos. Winter era o irmão com idade mais próxima da sua e tinham-se tornado mais próximos ainda com a gestão conjunta do lar.

Abanou a cabeça e terminou rapidamente de entrançar o cabelo das outras raparigas, enviando cada uma para a cama até ficar apenas Mary Whitsun para trás. Era um ritual estabelecido entre as duas que Mary Whitsun fosse a última a ter o cabelo entrançado à noite. Nenhuma delas falou enquanto passava o pente pelo cabelo da rapariga e ocorreu a Temperance que o fazia há nove anos, desde que Mary chegara ao lar. Em breve, encontrar-lhe-iam um aprendizado e as suas noites juntas, à lareira, enquanto lhe entrançava o cabelo, chegariam ao fim.

Pensar nisso provocou-lhe um aperto doloroso no peito.

Atava uma fita na trança de Mary quando ouviu bater à porta da frente.

Ergueu-se.

– Quem será? – Era ainda demasiado cedo para ser Lorde Caire.

Dirigiu-se à porta com passo apressado, seguida de perto por Mary Whitsun, e destrancou-a. Viu um criado de libré segurando um grande cesto coberto.

– Para vós, senhora – disse, passando-lho para as mãos e afastando-se.

– Espere! – disse Temperance. – Para que é isto?

O criado estava já a vários metros de distância. Virou-se parcialmente.

– Milorde disse que devereis vesti-lo esta noite.

E partiu.

Temperance trancou a porta e levou o cesto para a cozinha. Pousou-o sobre a mesa e puxou o pano branco simples que o cobria. Por baixo, havia um vestido de seda turquesa bordado com delicados ramos de flores carmesim, amarelos e negros. Temperance susteve a respiração. Fazia o belo vestido escarlate de Nell parecer um saco. Por baixo do vestido estava um magnífico corpete de seda, uma combinação, meias e sapatos bordados. Aninhada entre a seda encontrou uma pequena caixa de ourives. Pegou-lhe com dedos trémulos, não se atrevendo a abri-la imediatamente. Certamente, não poderia aceitar tal presente. Mas, a seguir, percebeu que, indo a um baile grandioso com Lorde Caire, não quereria envergonhá-lo com a modéstia do seu guarda-roupa.

E tomou uma decisão.

Voltou-se para Mary Whitsun, de olhos arregalados a seu lado.

– Chama Nell, por favor. Preciso de me vestir para um baile.

 

 

LAZARUS SENTIU ERIÇAREM-SE os pelos da nuca quando entrou no salão de baile nessa noite com Temperance pelo braço. Estava deslumbrante com o vestido turquesa que lhe enviara. O seu cabelo escuro estava preso no topo da cabeça com os alfinetes de topázio amarelo-claro que incluíra no cesto. Os seus seios pressionavam-se contra o corpete de seda reluzente, redondos e tentadores. Estava bela e desejável e todos os homens presentes a olharam. Como percebia naquele momento, com desagrado. Sentiu um rosnado crescer-lhe ao fundo da garganta, como se estivesse prestes a guardá-la como algum cão faminto guardaria um resto de comida.

Como era tolo.

– Avançamos? – murmurou-lhe.

Viu o movimento da garganta dela enquanto engolia nervosamente.

– Sim. Por favor.

Acenou afirmativamente e avançou pelo salão excessivamente enfeitado. A presa de Temperance estava junto às janelas mais distantes, mas não seria adequado aproximar-se com demasiada avidez.

Todos os notáveis residentes em Londres estavam ali, incluindo, inevitavelmente, a sua mãe. A condessa de Stanwicke era conhecida pelos seus bailes extravagantes e, naquela noite, conseguiu exceder-se. Um pelotão de criados, vestindo libré laranja e negra, ocupava-se da ocasião, cada um deles sendo prova viva do dinheiro necessário para pagar as suas vestes faustosas e também o seu tempo. Flores de estufa amontoavam-se em cada superfície, murchando já com o calor do salão. O cheiro a rosas e lírios moribundos misturava-se com o de cera derretida, corpos suados e perfume. A mistura aromática era simultaneamente agoniante e irresistível.

– Pretendo devolver-vos este vestido depois desta noite – disse Temperance, retomando a discussão iniciada na carruagem durante o percurso até ali.

– E eu já vos disse que, se o fizerdes, ordenarei que o queimem – respondeu, perfeitamente tranquilo, mostrando os dentes num esgar ameaçador a um cavalheiro que lhe olhava o peito. Nenhum deles teria percebido a sua beleza real dentro dos habituais e aborrecidos vestidos pretos. Fora tolo por arrancá-la à obscuridade, colocando-a em contacto com aqueles lobos demasiado embonecados. – Devo confessar também o meu repúdio pelo vosso desperdício, minha senhora.

– Sois um homem impossível – silvou ela entredentes enquanto sorria a uma matrona que por eles passava.

– Poderei ser impossível, mas consegui trazer-vos para o baile mais refinado da temporada.

Seguiu-se um silêncio breve enquanto contornava com ela um grupo de senhoras idosas que abusavam do rouge.

A seguir, ouviu-a dizer em voz baixa:

– É verdade. E agradeço-vos.

Olhou-a de soslaio. Tinha as faces rosadas, mas a cor não viera de uma caixa de rouge.

– Não precisais de me agradecer. Limito-me a cumprir o acordo que fizemos.

Olhou-o, com os olhos dourados permanecendo misteriosos e demasiado sabedores.

– Fizestes mais do que isso por mim. Oferecestes-me este belo vestido, os alfinetes, os sapatos e o corpete. Porque não poderei agradecer-vos por tudo isso?

– Porque vos trouxe a este covil de lobos.

O olhar sobressaltado dela foi mais sentido que visto.

– Fazeis um baile parecer demasiado perigoso, mesmo para alguém com a minha inexperiência.

Roncou de desprezo.

– De muitas formas, esta companhia é tão perigosa como as pessoas que encontrámos nas ruas de Saint Giles.

Olhou-o com ceticismo.

– Ali – apontou discretamente com o queixo – está um cavalheiro… e uso a palavra no sentido social mais lato, que matou dois homens em duelos no ano passado. A seu lado, está um general condecorado. Perdeu a maioria dos seus soldados numa carga inútil e estúpida. Diz-se que a nossa anfitriã espancou uma criada com tamanha gravidade que precisou de pagar mais de mil libras à mulher para a calar.

Olhou Mrs. Dews, esperando ver choque, mas retribuiu-lhe o olhar com expressão aberta, franca e um pouco triste.

– Provais apenas que o dinheiro e os privilégios não são sinónimo de bom senso ou virtude. Creio que já o sabia.

Lazarus baixou a cabeça numa vénia, sentindo também rubor na face.

– Perdoai-me por vos aborrecer.

– Nunca me aborreceis, milorde, como bem sabeis – replicou ela. – Gostava apenas de referir que, ainda que o dinheiro não consiga comprar nenhuma dessas coisas, pode comprar comida para encher o estômago e roupas para cobrir o corpo.

– Então acreditais que as pessoas aqui são mais felizes do que as que vivem em Saint Giles?

– Deveriam ser. – Encolheu os ombros. – Ter fome ou frio faz coisas terríveis ao temperamento.

– E, no entanto – disse ele –, os ricos aqui são mais felizes que um pobre mendigo nas ruas?

Olhou-o, incrédula.

Lazarus sorriu-lhe.

– É como digo. Acredito que um homem poderá encontrar felicidade ou descontentamento quer tenha o estômago cheio ou não.

– Se isso for verdade, será muito triste – disse ela. – Deveriam ser mais felizes com todas as suas necessidades satisfei-tas.

Abanou a cabeça.

– Receio que o homem seja uma criatura fútil e ingrata.

Viu-a sorrir ao ouvir as suas palavras. Finalmente!

– Creio que não consigo compreender pessoas da vossa classe.

– Será melhor assim – afirmou com leveza.

– Vós, por exemplo – murmurou ela. – Não percebo se continuais a precisar de mim em Saint Giles, mas levais-me convosco. Porquê?

Lazarus olhou em frente, examinando a multidão e vendo os outros homens olhá-la.

– Que vos parece?

– Não sei.

– Não sabeis?

Hesitou e, mesmo sem a olhar, Lazarus percebeu cada movimento seu. Os seus dedos inquietos, passando sobre a linha do decote, a pulsação palpitando-lhe na garganta, o momento em que voltou a abrir os lábios.

Inclinou-se mais para ela e repetiu em voz baixa:

– Não sabeis?

Inspirou.

– No estabelecimento de Mistress Whiteside, obrigastes-me a ver…

– Sim? – Estavam num espaço infernalmente apinhado, com a pressão dos corpos sendo quase sufocante. No entanto, ao mesmo tempo, sentia-se como se ocupassem uma esfera de vidro fechada e privativa.

– Porquê? – perguntou, urgentemente. – Porque me obrigastes a ver? Porquê eu?

– Porque – murmurou ele – me atraís. Porque sois bondosa sem serdes passiva. Porque, quando me tocais, a dor é agridoce. Porque aninhais um segredo desesperado contra o peito, como se segurásseis uma víbora ao colo, não a soltando nem mesmo quando vos morde a carne. Quero arrancar-vos essa víbora dos braços. Quero sugar a vossa carne ferida e ensanguentada. Quero acolher a vossa dor dentro de mim e torná-la minha.

Sentiu-a tremer a seu lado. Conseguia sentir os arrepios no braço que mantinha sobre ele.

– Não tenho qualquer segredo.

Curvou-se e sussurrou-lhe junto ao cabelo.

– Doce e adorável mentirosa.

– Não…

– Silêncio. – Um arrepio subiu-lhe pela coluna e percebeu sem se virar que a sua mãe se aproximava. Tinham-se abeirado de Sir Henry, que se erguia na companhia de dois outros cavalheiros. Com destreza, introduziu Temperance no círculo, desculpando-se apressadamente e virando-se no momento em que Lady Caire lhe tocava com bastante força no braço.

– Lazarus.

– Minha senhora. – Baixou a cabeça.

– Vejo que acompanhas aquela mulher.

– Agrada-me constatar que a vossa memória permanece intacta – afirmou Lazarus com prontidão. – Tantos são os casos de perda de memória com a idade.

Houve um silêncio curto e gélido e, por um momento, Lazarus acreditou que teria dito o suficiente para a afastar. Viu Temperance inclinar-se para Sir Henry e os olhos do homem fixaram-se no seu decote.

A seguir, Lady Caire encheu os pulmões, serenando-se.

– Que te fiz para merecer esse sentimento horrível que me diriges?

Voltou a olhá-la, pestanejando com espanto genuíno.

– Nada, claro.

A sua mãe suspirou.

– Então porquê esta hostilidade constante? Porquê esta…

Algo quebrou dentro dele. Deu um passo na sua direção, impondo a sua altura e erguendo-se muito acima dela.

– Não façais perguntas para as quais não querereis realmente conhecer a resposta, minha senhora.

Os olhos azuis, iguais aos seus, arregalaram-se.

– Lazarus.

– Não fizestes nada – disse, com dureza e em voz baixa. – Quando o pai me abandonou nos braços da ama de leite, não fizestes nada. Quando regressou, cinco anos depois, e me arrancou a ela, chorando, não fizestes nada. Quando me açoitou por chorar a única mãe que conheci, não fizestes nada. E, quando Annelise morria vitimada por uma febre infantil…

Calou-se, olhando fixamente Temperance. Sir Henry pousara-lhe uma mão no braço e havia um ligeiro franzido entre as suas sobrancelhas.

A sua mãe pousou também uma mão no seu braço.

– Não te parece que também choro a morte de Annelise?

Voltou-se para ela, engolindo em seco, e sentindo a boca transformar-se num esgar.

– Quando Annelise morria, desesperadamente doente com febre, e o meu maldito pai recusou chamar um médico porque uma criança de cinco anos precisava de aprender a ser forte, que fizestes?

Limitou-se a olhá-lo e reparou pela primeira vez nas rugas que lhe partiam dos olhos azuis.

– Digo-vos o que fizestes. Nada. – Pelo canto do olho, viu Sir Henry afastando Temperance dos restantes cavalheiros. Em direção ao extremo oposto do salão de baile. – Nada é o que sempre fazeis, minha senhora. Não vos surpreendeis se eu, em troca, não sentir nada por vós.

Afastou a mão que a sua mãe lhe pousava na manga com um gesto brusco.

Voltou-se parcialmente, mas Temperance e Sir Henry tinham desaparecido. Maldição! Começou a avançar pelo salão, alcançando o canto onde a vira pela última vez. Não devia tê-la deixado sozinha com o sujeito. Não se devia ter distraído. Alguém lhe segurou o braço enquanto seguia caminho, mas afastou a mão e ouviu uma exclamação de surpresa desagradada, chegando ao canto onde a vira. Afastou uma pirâmide de flores moribundas, esperando encontrar uma passagem ou um recanto para amantes. Mas não havia nada. Apenas a parede nua atrás das flores.

Lazarus descreveu um círculo, procurando no salão um lampejo turquesa, a inclinação orgulhosa da sua cabeça. Mas viu apenas as faces imbecis da nata da sociedade londrina.

Temperance tinha desaparecido.

 

 

TEMPERANCE PERCEBEU QUASE DE IMEDIATO que cometera um erro lamentável na avaliação do caráter de Sir Henry. Enquanto a conduzia a uma sala escura, a sua pulsação disparou, alarmada, mas a esperança seria a última a morrer. Se estivesse enganada e estivesse realmente interessado no lar, não seria aconselhável insultá-lo. Por outro lado, se não tivesse qualquer interesse no lar, poderia correr um grande perigo.

E foi por esse motivo que fez questão de manter uma grande poltrona entre ela e Sir Henry depois de entrarem.

– Compreendo a vossa necessidade de privacidade, senhor – afirmou, tão docemente quanto conseguia –, mas poderemos, pelo menos, encontrar uma sala mais iluminada?

– Será impossível sermos demasiado cautelosos, minha cara – replicou Sir Henry, não conseguindo tranquilizar minimamente Temperance. – Não me agrada discutir negócios onde outros possam ouvir-me.

Fechou a porta atrás de si, deixando o interior da sala no negrume completo.

Temperance inspirou profundamente.

– Sim. Bom… quanto a isso. O Lar para Crianças Desventuradas e Abandonadas tem apenas três funcionários atualmente: eu própria, o meu irmão, Mister Winter Makepeace, e a nossa criada, Nell Jones.

– Sim? – disse Sir Henry. A sua voz parecia mais próxima.

Temperance achou prudente afastar-se da poltrona e mover-se um pouco para a sua esquerda, aproximando-se mais da porta.

– Sim. Mas, se tivéssemos fundos suficientes, poderíamos contratar mais pessoal e ajudar assim mais crianças.

– Fugistes, pequeno ratinho – cantarolou Sir Henry com voz causadora de náuseas.

– Sir Henry, tendes algum interesse no meu lar de órfãos? – perguntou Temperance, exasperada.

– Claro que tenho – respondeu, demasiado próximo.

Temperance moveu-se para a direita, sobressaltada, e braços masculinos rodearam-na imediatamente. Lábios molhados horríveis roçaram-lhe a face.

– O lar será o pretexto perfeito para me encontrar convosco.

A seguir, os lábios dele esmagavam os de Temperance contra os seus dentes.

Miseravelmente, a primeira coisa que Temperance sentiu com aquele abuso foi desilusão em vez de ultraje. Passara o tempo desde o recital imaginando como o lar poderia beneficiar do apadrinhamento de Sir Henry. Via-se forçada a recomeçar o processo de encontrar um patrono. Enojada, empurrou-lhe o peito com força, mas, naturalmente, não cedeu um centímetro. Ao invés, tentou introduzir-lhe a língua grossa na boca, uma possibilidade verdadeiramente asquerosa.

Temperance disciplinava indivíduos do sexo masculino há uma dezena de anos. Era verdade que os indivíduos do sexo masculino que disciplinava costumavam ser mais baixos e muito menos peludos que Sir Harry, mas o princípio seria certamente o mesmo.

Ergueu a mão, segurando-lhe a orelha esquerda com firmeza e torcendo com força.

Sir Henry gritou como uma menina.

Ao mesmo tempo, a porta da sala abriu-se com estrondo. Alguém que se movia rapidamente e junto ao chão empurrou Temperance para o lado e chocou contra Sir Henry. Os dois homens caíram. Temperance semicerrou os olhos. Ouviu murros e o grito estrangulado de Sir Henry.

Seguiu-se uma pausa.

Caire pegou-lhe no braço e acompanhou-a rudemente até à porta. Temperance pestanejou enquanto começava a conduzi-la pela passagem. Quando se aproximaram do salão de baile, o som da multidão no interior aumentou de intensidade.

Tentou afastar o braço.

– Caire.

– Que raio fazíeis numa sala escura com aquele asno? Não tendes bom senso?

Olhou-o. Tinha uma mancha avermelhada no maxilar e parecia lívido.

– O vosso cabelo está solto.

Parou de repente, empurrando-a contra a parede do corredor.

– Nunca devereis acompanhar a parte alguma um homem que não seja da vossa família.

Arqueou as sobrancelhas, olhando-o.

– E vós?

– Eu? Eu sou muito pior que Sir Henry. – Inclinou-se para ela, com o seu hálito roçando-lhe a face. – Não deveríeis voltar a aproximar-vos de mim. Deveríeis fugir agora mesmo.

Os seus olhos azuis intensos flamejaram e um músculo no seu maxilar hirto fletiu-se. Era uma visão verdadeiramente assustadora.

Ergueu-se em bicos de pés e passou os lábios pelo tique. Sentiu-o estremecer e ficar imóvel logo a seguir. Sentiu o músculo novamente sob a boca, acalmando-se em seguida. Moveu os lábios para a sua boca.

– Temperance – rosnou-lhe.

– Chiu – sussurrou, beijando-o.

Era estranho. Outro homem acabara de a beijar na boca, mas aquela pressão de lábios com Caire era completamente diferente. A sua boca era firme e quente, os seus lábios pressionavam-se teimosamente contra os seus. Colocou as mãos sobre os ombros largos para se apoiar e aproximou-se um pouco mais. Sentia o cheiro de alguma fragrância exótica na sua pele. Talvez a tivesse esfregado depois de se barbear. E a sua boca sabia a vinho inebriante. Lambeu-lhe os lábios gentilmente.

Ouviu-o gemer.

– Abri – sussurrou-lhe contra os lábios. E obedeceu-lhe.

Começou por lamber o interior dos lábios, os dentes, até encontrar a língua. Acariciou-a com a sua e afastou-se. A língua dele acompanhou a sua para dentro da sua boca e sugou-o mansamente, erguendo as mãos para as suas faces magras.

Algo dentro dela se transformou, desfazendo-se e voltando a formar-se com uma forma nova e maravilhosa. Não sabia o que era, mas não quis perdê-lo. Queria permanecer no corredor escuro com ele e beijá-lo para sempre.

O murmúrio de vozes veio do extremo oposto da passagem, aproximando-se.

Caire ergueu a cabeça, olhando o salão de baile.

Uma porta abriu-se e fechou-se e as vozes pararam.

Caire pegou-lhe na mão.

– Vinde.

– Um momento.

Voltou-se para olhá-la com uma sobrancelha arqueada, mas contornou-o. A fita de veludo negro soltara-lhe o cabelo quase por completo. Com cuidado, desatou-a e passou os dedos entre as madeixas prateadas antes de voltar a atá-la.

Quando o contornou, mantinha a sobrancelha erguida.

– Satisfeita?

– Por agora. – Pegou-lhe no braço e conduziu-o de volta ao salão de baile. – Precisarei de começar do início – disse, enquanto começavam a contornar-se mutuamente.

– Assim parece.

Ergueu o olhar para ele.

– Estais disposto a levar-me a outra festa ou recital?

– Sim.

Acenou afirmativamente. Tinha-o dito de forma pragmática, como se nunca tivesse havido qualquer outra possibilidade.

– E quando voltareis a Saint Giles?

Esperou que lhe respondesse imediatamente, mas permaneceu em silêncio por um momento enquanto caminhavam. Olhou-o. Franzia a testa com intensidade.

– Não sei – disse, por fim. – Fomos atacados já duas vezes. Por um lado, isso significará que estou mais próximo do assassino de Marie. Pelo outro, não desejo colocar-vos em perigo. Terei de pensar no assunto e decidir qual será a melhor forma de continuar a investigação.

Temperance baixou o olhar, passando a mão sobre o belo vestido turquesa. Nunca sentira pano tão fino e abrira a boca de espanto quando viu o seu reflexo num pequeno espelho no seu quarto. Caire parecia tão cínico, mas, de muitas formas, as suas ações eram ponderadas. Inspirou fundo.

– Amávei-la?

Parou, mas Temperance não o olhou. Não conseguia.

– Nunca amei ninguém – respondeu.

Aquilo fê-la erguer o olhar. Olhava fixamente em frente.

– Ninguém?

Abanou a cabeça.

– Ninguém. Desde a morte de Annelise.

A confissão fez o coração de Temperance contrair-se. Como poderia ter passado a vida sem amor?

– Mas passastes meses a procurar o assassino de Marie – afirmou, baixando a voz. – Significaria alguma coisa para vós.

– Talvez procure porque deveria significar alguma coisa. Porque deveria tê-la amado. – A sua face contorceu-se num esgar. – Talvez persiga um fogo-fátuo, uma emoção fantasma. Talvez me engane a mim mesmo.

Temperance sentiu uma ânsia de o tomar nos braços, de confortar aquele homem frio e isolado. Mas estavam num salão de baile apinhado. Em vez disso, apertou-lhe o braço. O contacto podia causar-lhe dor, mas nenhum homem sobreviveria sem o toque de alguém. Nem mesmo ele.

Pararam junto à pista de dança e Temperance viu as figuras belas que por ali passaram. Lady Hero, irmã do duque de Wakefield, era uma figura notável num vestido prateado.

– Gostaríeis de dançar? – perguntou Caire.

Abanou a cabeça em resposta.

– Não sei dançar.

Fixou nela um olhar intrigado.

– Verdadeiramente?

– Não é um talento muito necessário num lar de órfãos.

– Vinde. – Recomeçou a puxá-la.

– Para onde me levais?

– Não para uma sala escura, asseguro-vos.

Chegaram ao fundo do salão, onde uma porta dupla se abria para deixar entrar um pouco de ar fresco noturno. Caire abriu-a e levou-a a uma varanda longa que percorria toda a largura das traseiras da casa.

– Muito bem. – Ergueu-se a seu lado e elevou as mãos que uniam.

– Oh. – Percebeu subitamente o que pretendia fazer. – Aqui não.

– Porque não? – perguntou. – Não há ninguém por perto.

Era verdade. A noite estava demasiado fria para que a varanda tivesse outros ocupantes.

Temperance mordeu o lábio, sentindo-se tola por nunca ter aprendido a dançar quando todos os outros no salão sabiam fazê-lo com a mesma naturalidade com que respiravam.

– Mas..

Viu-lhe um sorriso repentino, simultaneamente atraente e malvado.

– Receais que veja como sois trapalhona?

Tirou-lhe a língua de fora.

– Cuidado – disse em voz baixa, mantendo o sorriso nos lábios. – Poderei trocar esta lição por outra que seja mais do meu agrado.

Os olhos de Temperance arregalaram-se, não sabendo como interpretar o seu tom provocador.

– Vamos. Não é assim tão difícil.

O seu tom de voz tornara-se delicado. E era demasiado perspicaz.

Inspirou fundo, afastando o olhar dele, tocada pela sua ternura.

Pegou-lhe na mão.

– O principal é parecer sempre que se tem um atiçador enfiado… – olhou-a de soslaio – pelas costas. Olhai.

E demonstrou pacientemente os passos da dança, motivando-a a segui-lo enquanto a música flutuava pelas portas abertas da varanda. Temperance estudou os seus movimentos graciosos, tentando imitá-los, mas o que lhe parecia inato a ele era para ela uma sucessão de passos confusos.

– Nunca conseguirei fazer isto – exclamou ela após vários minutos.

– Tão dramática – murmurou ele. – Creio que estais a ir muito bem.

– Mas não consigo deixar de confundir os passos – disse ela. – Convosco, parece tão natural.

– É natural… para mim – afirmou, secamente. – Passei horas sem fim treinando estes passos na infância. Se errasse, o meu professor de dança golpeava-me a barriga das pernas com uma cana. Aprendi depressa a não cometer erros.

– Ah! – exclamou Temperance de forma bastante inadequada.

O mundo dele era tão diferente do mundo dela. Enquanto ela aprendera a cozinhar, a coser e a poupar dinheiro em criança, ele aprendera a dominar aqueles passos tontos e complicados. Imaginou-o, um rapazinho orgulhoso, dançando sozinho num salão de baile elegante, acompanhado apenas por um professor de dança cruel.

Estremeceu.

Viu-o franzir a testa.

– Tendes frio. Entremos.

Acenou-lhe com a cabeça, grata.

Regressaram ao salão, que parecia mais apinhado que antes.

– Gostaríeis de um pouco de ponche? – perguntou Caire.

Temperance voltou a acenar com a cabeça. Caire encontrou uma cadeira vazia para ela perto de um enorme jarrão com flores. Temperance sentou-se enquanto ele procurava bebidas. Começava a ficar tarde e o cheiro a velas parcialmente queimadas preenchia o salão. Viu várias senhoras usarem os leques e desejou ter também um. A seguir, censurou-se por querer mais quando Caire lhe dera já tanto naquela noite. Talvez estivesse certo: talvez, por mais que alguém tivesse, isso não evitasse a infelicidade.

Um movimento pelo canto do olho captou-lhe a atenção e viu Sir Henry atravessar a multidão. Santo Deus! Seria estranho se a visse. Temperance virou a cabeça e ergueu a mão para o penteado, como se quisesse verificar se os alfinetes com pedras preciosas continuavam no sítio.

– Haveis perdido alguma coisa? – perguntou uma voz feminina próxima.

Temperance olhou, sobressaltada, e viu os olhos cinzentos e grandes de Lady Hero. Ocupara o lugar ao lado de Temperance e, apesar de não sorrir, a sua expressão era bastante aprazível.

Temperance percebeu que olhava fixamente e recordou que lhe tinha sido feita uma pergunta.

– Oh. Não, minha senhora.

– Alguém vos disse quem sou – disse Lady Hero.

– Sim.

– Ah. – Lady Hero olhou o colo. – Creio que seria inevitável. – Olhou para cima e fixou o olhar no olhar de Temperance, esboçando um sorriso tímido. – Reparo que as pessoas me tratam de forma diferente quando conhecem o meu nome.

– Oh. – Temperance não sabia ao certo como responder àquilo porque, claro, Lady Hero estava certa: a filha de um duque era tratada de forma diferente. – Chamo-me Temperance Dews.

Lady Hero intensificou o sorriso.

– Como estais? – Àquela distância, Temperance via-lhe o nariz salpicado com sardas finas. Serviam apenas para realçar a alvura da pele suave.

Sir Henry escolheu esse momento para passar por elas. Temperance enfrentou-lhe o olhar embaraçado antes de afastar a cara.

Lady Hero seguiu-lhe o olhar.

– Aquele homem é um porco.

– Perdão? – Temperance pestanejou. Teria ouvido corretamente? As filhas de duques chamavam «porco» a cavalheiros?

Aparentemente, sim. Lady Hero acenou afirmativa-mente.

– Sir Henry Easton, não é? Parece suficientemente aprazível, é verdade, mas diria que tem tendências suínas muito marcadas. – Franziu ligeiramente a testa. – Não vos fez nada ou fez?

– Não. – Temperance torceu o nariz. – Bom, sim. Tentou beijar-me.

Lady Hero encolheu-se.

– Horripilante.

– É verdade. Foi. E também me desiludiu. Pensei que estaria interessado no meu lar de órfãos, mas não estava. Foi bastante tolo da minha parte.

– Ah – disse Lady Hero, parecendo perceber do que falava. – Creio que não devereis culpar-vos. Cavalheiros suínos costumam beijar senhoras sem aviso. Ou, pelo menos, é isso que creio que fazem. Nunca nenhum cavalheiro tentou aproveitar-se de mim dessa forma, claro. Por ser filha de um duque e tudo isso. – Lady Hero parecia ligeiramente desiludida.

Temperance sorriu. Nunca teria suposto que a filha de um duque poderia ser uma conversadora tão aprazível.

– Mas falai-me desse lar de órfãos – pediu Lady Hero. – Nunca conheci uma senhora que gerisse uma instituição como essa.

– Oh! – Temperance sentiu uma confusão súbita e prazenteira. – Bom, o Lar para Crianças Desventuradas e Abandonadas situa-se em Saint Giles e cuidamos de vinte e oito crianças atualmente, mas poderíamos cuidar de muitas mais se tivéssemos um patrono. – Os seus ombros caíram. – Foi esse o motivo da fé que depositei em Sir Henry.

Lady Hero abanou a cabeça.

– Sinto muito. Tendes raparigas e rapazes no vosso lar?

– Sim. Alojamo-los em quartos separados, claro, mas aceitamos qualquer criança até aos nove anos. Com essa idade, tornam-se aprendizes de um ofício.

– Deveras? – questionou Lady Hero. As suas mãos uniam--se graciosamente no colo e não se moveu, parecendo de alguma forma genuinamente interessada. – Mas então como… oh, infelicidade.

O seu olhar fixou-se em algo acima do ombro de Temperance.

Temperance olhou rapidamente e viu uma matrona bastante atarracada fazendo gestos imperiosos.

– A prima Bathilda – disse Lady Hero. – Será provável que queira jantar comigo e ficará mais irada ainda se fingir não a ter visto.

– Nesse caso, devereis ir.

– Receio que sim. – Lady Hero inclinou a cabeça. – Foi um prazer conhecer-vos, Mistress Dews. Ou preferis que vos tratem por «menina»?

– Senhora – replicou imediatamente Temperance. – Sou viúva.

– Mistress Dews. – Lady Hero ergueu-se. – Espero que voltemos a cruzar-nos.

Temperance viu-a dirigir-se ao encontro da «prima Bathilda».

Quando virou a cara, Caire erguia-se diante dela com um copo de ponche na mão.

– Durante a minha ausência, tivestes companhia refinada.

Temperance sorriu-lhe.

– É surpreendente como é simpática.

Caire olhou na direção de Lady Caire e voltou a olhar Temperance com expressão indulgente.

– É? Vamos, bebei o vosso ponche e alimentar-vos-ei com um jantar escandalosamente decadente antes de vos levar a casa. O vosso irmão esperar-vos-á já à porta, sem dúvida.

Com efeito, só uma hora depois conseguiram regressar à carruagem de Caire. Temperance bocejava repetidamente como consequência da comida pesada e do vinho forte. Caire sentou-a num dos bancos, batendo na cobertura da carruagem e sentando-se ao lado dela, recebendo-a nos braços. Usou uma pele para os cobrir aos dois e Temperance foi dormitando enquanto a carruagem atravessava Londres.

Era como um sonho. Sentia-se tão segura e quente nos seus braços e conseguia ouvir o batimento forte do seu coração. Era diferente dela. Um aristocrata de um mundo maravilhoso repleto de requinte, mas o seu coração batia como o de qualquer homem.

O pensamento confortou-a.

Quando voltou a despertar, a carruagem parara e sacudia-a delicadamente pelo ombro.

– Acordai, minha bela adormecida.

Abriu os olhos e bocejou.

– Já é dia?

Olhou pela janela antes de lhe responder.

– Será em breve. Suspeito que o vosso irmão me arrancará o couro se não vos levar de volta antes que o Sol se erga.

Ouvir aquilo despertou-a um pouco mais. Endireitou-se e verificou se o cabelo continuava aprumado.

– Perdi um sapato.

Curvou-se para olhar o chão, mas Caire antecipou-se e começou a procurar por baixo do seu banco.

– Aqui está.

Pegou-lhe no pé descalço e introduziu-o delicadamente no sapato. Olhou-lhe fixamente a cabeça prateada, sentindo-se atordoada.

Terá sentido porque olhou para cima, com a visão ensombrando-se. Mas disse apenas:

– Pronta?

Acenou afirmativamente, incapaz de confiar na sua voz.

Ajudou-a a sair da carruagem e acompanhou-a até à porta do lar de órfãos. A luz tornara-se cinzenta enquanto se aproximavam, mas não havia ninguém na rua. Temperance virou-se quando chegaram à porta, colocando-lhe uma mão no peito.

– Caire… – Não sabia ao certo o que dizer, mas, de qualquer forma, não importava.

Baixou a cabeça e roçou os lábios pelos dela, murmurando:

– Boa noite, Mistress Dews.

Voltou-lhe as costas.

Viu as suas costas largas perderem-se na neblina cinzenta. A seguir, abriu a porta do lar com a sua chave. Bocejou enquanto trancava a porta atrás de si, saltitando sobre um pé e o outro para descalçar os sapatos de tacão. Depois disso, deambulou até à cozinha.

Quatro cabeças masculinas voltaram-se quando entrou. Temperance olhou-os. Certamente, os seus irmãos não tinham passado a noite inteira à sua espera? Mas havia outro problema qualquer. Pois o quarto homem era William, o seu cunhado, e tinha os olhos vermelhos.

O olhar de Temperance procurou Winter.

– Silence – disse.

Winter pareceu anos mais velho.

– Está desaparecida desde ontem à tarde.

 

 

TINHA-LHE DITO que afrouxasse os atilhos do corpete e soltasse o cabelo. Fê-lo.

Silence saiu do quarto de Mickey Encantador O’Connor com o cabelo caindo pelas costas. O seu quarto ficava no piso sobre a sala do trono e, no vestíbulo, encontrou uma criada, a primeira serviçal feminina que ali via. A mulher olhou-a fixamente e voltou a afastar o olhar, regressando à tarefa de polir o piso de mármore multicolorido. Por um momento, Silence pensou se a criada teria quem a ajudasse na tarefa ou se aquilo seria tudo o que fazia: polir metro após metro de espantoso piso de mármore. Se assim fosse, era uma tarefa que não lhe invejava.

– Por aqui, senhora – disse uma voz masculina.

Olhou para cima e viu que Harry a esperava. Havia piedade no seu olhar.

Silence ergueu os ombros.

– Obrigada.

O guarda hesitou.

– Gostaria de se compor?

Manteve o olhar firmemente afastado do topo dos seus seios expostos pelo corpete aberto.

– Não – sussurrou Silence. – Não, obrigada.

Mickey Encantador deixara claro que não lhe era permitido compor-se.

Harry fixou nela um olhar impotente e acenou com a cabeça. Virou-se e conduziu-a até à escadaria curva em mármore. Havia outras pessoas acordadas, pois passara muito do amanhecer, e as expressões dos que a viam variavam. Alguns sentiam pena, como Harry. Alguns, maioritariamente mulheres, pareciam sentir inveja. Mas a maioria limitava-se a demonstrar desprezo. Um sujeito ousado atreveu-se mesmo a piscar-lhe o olho antes que Harry o empurrasse com força contra a parede. Depois disso, a maior parte das caras virou-se noutra direção quando passava por elas.

Chegaram à porta da frente e Harry abriu-lha.

– Se precisar de alguma coisa, senhora, basta pedir – murmurou quando passou por ele.

– Obrigada – replicou educadamente. – Mas tenho tudo o que pretendia.

E saiu para o sol intenso e implacável.

Mickey Encantador fora bastante explícito nas suas instruções e, por isso, caminhou com um pé à frente do outro pelo meio da escura rua de St. Giles, com o cabelo castanho soprado pelo vento. Não olhou para a direita ou para a esquerda e manteve os olhos focados em frente, mesmo quando as pegas que regressavam a casa lhe chamaram nomes rudes.

Ignorou tudo isso e o batimento do coração e não ouviu nada, não viu nada até ter a face de Temperance diretamente à frente da sua, com lágrimas escorrendo-lhe pela face.

A seguir, Silence gemeu uma única vez e sentiu o ardor das lágrimas nos seus próprios olhos.

Nesse momento, conseguira já chegar ao fundo da rua e tudo estava bem. Seguira as instruções, fazendo tudo o que pedira, e ele honraria também a sua parte do acordo.

Mas a sua vida não voltaria a ser a mesma.