
Meg olhou o homem mais poderoso do reino.
«Majestade, poderei perguntar
porque desejais saber o que é o amor?»
O rei franziu a testa.
«Sei o que é enfrentar a morte em batalha.
Sei o que é governar um reino vasto,
administrar justiça e demonstrar clemência.
Mas, apesar de tudo isto, não sei o que é o amor.
Podes dizer-me?»
Meg pensou na pergunta enquanto comia.
Como poderia explicar o amor a um rei?
Por fim, ergueu o olhar e viu que o rei oferecia uma tâmara
ao pequeno pássaro azul.
«Abri a porta da gaiola»,
disse.
excerto de REI CORAÇÃO FECHADO
– Castigo? – Temperance fitou Caire.
Estava vestido e ela continuava completamente nua. Nem sequer despira o casaco para fazer amor com ela. Sentiu-se em tremenda desvantagem. Acabara de partilhar com ele a sua maior vergonha, uma coisa que nunca contara a ninguém, nem mesmo a Silence. E acusara-a de… de quê?
Abanou a cabeça, confusa.
– Não te vejo como um castigo.
– Não? – Nunca o vira tão calado. Parecia ter-se afastado dela, de alguma forma. – Nesse caso, porque pediste de repente que te atasse?
Temperance puxou a colcha para esconder os ombros nus do seu olhar.
– Eu… Pareceu-me simplesmente que era o que te agradava. E era algo que me despertava a curiosidade. Não sei porque to pedi esta noite.
– Eu sei. – Virou-se, unindo as mãos atrás das costas. – Pareceu-te degradante, não?
– Não! – exclamou sem precisar de pensar.
Mas Lazarus não a ouvia.
– Querias… precisavas de sexo, mas vê-lo como um pecado, não? O pior pecado. A única forma de conseguires aceitar o ato seria transformando-o em alguma coisa abjeta.
– Não! – Afastou a colcha sem se preocupar com a sua nudez. Como podia ele imaginar que…
– Alguma coisa degradante. – Voltou-se e olhou-a. Percebeu que estava parcialmente erguida sobre a colcha. – Porque, de outra forma… bom, seria apenas prazer, não é? E não poderias permitir-te isso.
Recostou-se lentamente, sem sequer continuar a defender-se. Era verdade? Tê-lo-ia realmente usado de forma tão desprezível?
– Não deveria importar-me – afirmou ele, friamente. – O que sentes. Afinal, nunca antes levei em consideração as emoções das minhas parceiras. Se puder ser franco, os sentimentos delas não tiveram qualquer peso nas nossas transações. Mas, estranhamente, o que sentes importa-me de alguma forma.
Lazarus hesitou, baixando o olhar para as mãos por um momento e voltando a olhá-la a ela em seguida, expondo-lhe a face, com a tristeza e a mágoa que sentia. Resignando-se.
Vê-lo assim alterou algo no peito de Temperance, fazendo-a querer dizer alguma coisa. Mas, mesmo assim não conseguiu forçar-se a falar.
– Importas-me – disse-lhe ele. – E, apesar de ser uma criatura repelente de muitas formas, apesar de ter necessidades que escapam ao normal, necessidades que talvez sejam pérfidas, considero que não merecerei ser usado desta forma. Poderei ser um homem sem consciência, mas tu, minha querida mártir, és melhor que isto.
Virou-se e saiu do quarto, fechando a porta silenciosamente atrás dela.
Por um momento, Temperance limitou-se a olhar a porta. Quis correr atrás dele, pedir desculpa, explicar de alguma forma, dizer as palavras que não conseguira dizer antes. Mas estava nua. Olhou a colcha caída sobre o colo.
Ergueu-se apressadamente e começou a vestir-se, mas a combinação amarrotou-se sobre a cabeça e não conseguia encontrar a sua segunda meia. Quando prendeu o cabelo com alfinetes suficientes para o manter afastado do pescoço, percebeu que passara meia hora e Lazarus ainda não regressara.
Temperance abriu a porta e saiu para o corredor. A casa estava envolvida por um silêncio assustador e percebeu que não fazia ideia do paradeiro dele. Talvez no seu escritório? Teria uma saleta privada ou uma biblioteca? Começou a percorrer o corredor, espreitando o interior das várias divisões. Por fim, percebeu que uma biblioteca ficaria seguramente noutro piso e desceu as escadas.
Viu luz no corredor principal quando entrou, percebendo que Small se erguia ao lado do mordomo.
– Viram Lorde Caire? – perguntou, percebendo que corava. Que pensariam os criados dela, uma mulher só, com o cabelo escapando dos alfinetes, na casa de um cavalheiro solteiro.
Mas o embaraço que sentia dissipou-se quando ouviu a resposta de Small.
– Milorde saiu, senhora.
– Oh. – Temperance fixou nele um olhar vazio. Odiara tanto a sua companhia que precisara de sair da sua própria casa?
– Lorde Caire deixou instruções para que a carruagem fosse colocada ao vosso dispor, senhora. – A face de Small era a máscara inexpressiva do bom serviçal, mas havia compreensão nos seus olhos.
Temperance sentiu uma vontade súbita de chorar. Terminaria assim? O que existira entre ela e Caire chegara ao fim?
Mordeu o interior da face. Não quebraria. Não naquele momento, pelo menos.
– Obrigada. Foi muito… prestável da parte de Lorde Caire.
Small curvou-se como se fosse uma senhora de estatuto e não a filha de um cervejeiro recentemente dispensada por um amante aristocrático. Saiu para a luz do fim de tarde e desceu a escadaria principal da casa de Caire com a dignidade que conseguiu invocar. Mas, dentro da carruagem ampla, depois de a porta ser fechada e de ficar sozinha, protegida de olhares curiosos, a sua coragem cedeu. Encolheu-se num canto, balouçando contra o couro macio enquanto a carruagem percorria as ruas de Londres.
Durante toda a sua vida, considerara ser uma pessoa fundamentalmente boa. A sua queda em desgraça com o homem que a seduzira foi chocante. Soube que tinha sido desviada do caminho certo devido a uma falha interior e considerou que essa falha seria a sua avidez sexual incontrolável. Mas e se esse fosse apenas um sintoma de um pecado maior?
E se a sua verdadeira falha fosse o orgulho?
Olhou pela janela, sem ver realmente a cidade que desfilava do outro lado. Pensou no seu casamento, terminado há tanto tempo. Benjamin fora um protegido do seu pai, um homem sossegado, mais sisudo do que justificava a sua idade. Estudara certa vez para se tornar clérigo, mas, quando conheceu o seu pai, não passava de um professor pobre. O seu pai oferecera-lhe trabalho no lar e um quarto na sua casa. Temperance tinha dezasseis anos quando aconteceu. Era tão jovem! Benjamin era maduro e aprazível de cara e o seu pai aprovava-o. Parecera-lhe natural casar com ele.
Fora suficientemente feliz no seu casamento, não? Certamente, teria sido assim porque Benjamin era um bom homem, um homem afável. E fora delicado no seu leito conjugal, durante as poucas ocasiões em que se mostrara apaixonado. Benjamin acreditava que o amor físico era um ato sagrado entre marido e mulher. Algo para se fazer de forma ponderada e sem regularidade exagerada. Aliás, a única ocasião em que esteve próximo de se irritar com ela foi quando Temperance lhe sugeriu que talvez pudessem concretizar o seu elo físico com maior frequência. Benjamin deixara-lhe bastante claro que uma mulher que desejava sexo era uma criatura merecedora de pena.
Soubera, mesmo nesse momento, que havia algo errado na sua composição. Que tinha ânsias que precisavam de ser vigiadas. E, mesmo assim, quando se viu confrontada com a tentação, cedera quase sem resistir. John era um advogado jovem alugando aposentos perto da sua casa. Temperance franziu a testa. Naquele momento, quando tentava recordá-lo, tudo o que conseguia recordar era como as costas das suas mãos eram peludas. Outrora, quando era mais jovem, parecera-lhe um sinal excitante de virilidade. Achou-se perdidamente apaixonada, movida por um determinismo trágico que lhe parecera irresistível e que mal recordava. Na tarde em que cedera, Temperance lembrava-se de pensar que morreria, que adoeceria e perderia a vida, se não se deitasse com John.
Fizera-o e a sua vida desmoronara-se.
Regressara do quarto miserável que John alugara, encontrando Benjamin, o severo e belo Benjamin, expirando o seu último fôlego. O peito fora-lhe esmagado pelas rodas de uma enorme carroça de cervejeiro. Não recuperara sequer os sentidos antes de morrer. Temperance não recordava grande coisa depois disso. A sua família ocupara-se do funeral de Benjamin, zelando também por ela e confortando-a. Semanas depois, descobriu que John tinha deixado os aposentos alugados sem sequer se despedir.
Não lhe importara.
Desde então, esforçara-se para esconder o seu pecado e a tentação da luxúria. Ter-se-ia tornado uma hipócrita enquanto o fazia? Desejara o conforto dos braços de Caire, mas estivera de tal forma envolvida com os seus próprios demónios que não se preocupara com os sentimentos dele.
Caire estava certo. Usara-o. Pensar isso inquietou-a, fê-la querer gritar, culpar Winter pelo seu desmaio, culpar John por a ter seduzido tantos anos antes, culpar Silence pela sua coragem tola, culpar Caire pelos seus avanços. Culpar, na verdade, todos menos a si mesma. Odiava saber que era reles àquele ponto. Caire estava certo. Usara-o para ter prazer sexual e nem sequer tivera a coragem de o admitir a si mesma.
E, de alguma forma, enquanto o usava, magoara-o tanto por ter considerado que o sexo com ele era degradante.
Era tentador desculpar o seu comportamento. Mas lutou contra a mentira e contra as evasivas. Jurou duas coisas a si mesma: que salvaria o lar e que encontraria uma forma de sarar de alguma forma a dor que provocara a Lazarus. Encontraria uma forma de se abrir a ele, mesmo correndo o risco de se magoar a si mesma. Porque lho devia. Se não o fizesse, não conseguiria recuperá-lo. Conseguiria admitir o que sentia por ele? Deixara de ter a certeza. Pensar em expressar os seus sentimentos fazia-a transpirar ao fundo das costas.
Mas havia algo que sabia que conseguiria fazer.
Temperance ergueu-se e bateu com força no topo da carruagem.
– Pare! Pare, por favor! Desejo ir para uma morada diferente. Desejo visitar Mister St. John.
* * *
LAZARUS NUNCA SE VIRA como sendo digno de amor. Por isso, não o chocou minimamente que Temperance não o amasse realmente. Não o chocou… mas teria sido agradável que sentisse alguma coisa por ele.
Pensou na sua ânsia doentia enquanto montava o seu cavalo negro por entre a multidão matinal londrina depois de ter deixado Temperance. Aparentemente, as emoções que sentia desenvolverem-se dentro dele despertaram também um novo desejo: o desejo de ser amado. Como era banal. E, mesmo assim, banal ou não, não conseguia mudar o que o seu coração sentia.
Um canto da boca ergueu-se apesar de a sua boa disposição ser nula naquele momento. Aparentemente, era como os outros homens.
O cavalo relinchou e Lazarus ergueu o olhar. A morada que procurava naquela manhã não ficava muito distante da sua própria casa. A praça em que entrava era nova. As casas eram elegantes. Lazarus desmontou e entregou as rédeas a um rapaz que ali esperava, oferecendo-lhe um xelim pelo seu esforço. Subiu os degraus brancos imaculados e bateu à porta.
Cinco minutos depois, foi conduzido para o interior de um escritório luxuoso e confortável. As cadeiras eram suficientemente largas para acomodar as dimensões de um homem e estavam estofadas com couro de um vermelho intenso. Os livros estavam suficientemente desordenados para sugerir que eram realmente usados e a enorme secretária ocupava um canto inteiro, envernizada e brilhante.
Lazarus caminhou pelo escritório enquanto esperava o seu anfitrião. Quando a porta se abriu por fim, segurava nas mãos um exemplar dos discursos de Cícero.
O homem que entrou cobria a cabeça com uma peruca branca aberta. Os cantos exteriores dos olhos, os lábios e o pescoço pendiam como se fossem puxados por um fio invisível, fazendo-o parecer um cão de caça.
Olhou Lazarus, arqueou uma sobrancelha grisalha hirsuta ao ver o livro nas suas mãos e disse:
– Posso ajudar-vos, senhor?
– Espero que sim. – Lazarus fechou o livro e pousou-o. – Tenho o prazer de falar com Lorde Hadley?
– Precisamente, senhor. – Hadley abreviou uma vénia e, abrindo o casaco, deixou-se cair pesadamente sobre um dos cadeirões de couro.
Lazarus inclinou a cabeça antes de se sentar diante do seu anfitrião.
– Chamo-me Lazarus Huntington. Lorde Caire.
Hadley arqueou uma sobrancelha, esperando.
– Esperava que pudésseis ajudar-me – disse Lazarus. – Temos… ou melhor, tivemos… um conhecimento mútuo. Marie Hume.
A expressão de Hadley não se alterou.
Lazarus inclinou a cabeça.
– Uma senhora loira especializada em determinadas formas de entretenimento.
– Que formas?
– A corda e o capuz.
– Ah. – Hadley não pareceu nada envergonhado pelo rumo nada convencional da conversa. – Conheço a rapariga. Disse chamar-se Marie Pett quando estava comigo. Ouvi dizer que morreu.
Lazarus acenou com a cabeça.
– Foi assassinada numa casa em Saint Giles há quase três meses.
– Uma pena – considerou Hadley. – Mas não compreendo de que forma isso me dirá respeito.
Lazarus baixou a cabeça.
– Pretendo encontrar o seu assassino.
Pela primeira vez desde a chegada de Caire, Hadley demonstrou indícios de uma emoção: a curiosidade. Retirou de um bolso uma pequena caixa esmaltada, prendendo entre os dedos uma pitada de rapé, inalando-o e tossindo. Assoou-se e abanou a cabeça, guardando o lenço em seguida.
– Porquê?
Lazarus arqueou as sobrancelhas.
– Porquê o quê?
– Porque pretendeis encontrar o seu assassino?
– Era minha amante.
– E? – Hadley mantinha ainda a caixa de rapé na mão. – Conhecíeis a sua especialidade. Portanto, presumo que a teremos usado para os mesmos fins. Como disse, é uma pena que tenha morrido, mas há outras mulheres capazes de satisfazer as nossas necessidades particulares. Porquê ter o trabalho de procurar o seu assassino?
Lazarus pestanejou. Nunca ninguém lhe formulara a pergunta daquela forma.
– Eu… passei tempo com ela. Com Marie.
– Era amor o que sentíeis por ela?
– Não. Nunca amei Marie. Mas era um ser humano. Se não encontrar o seu assassino, se não puder obter reparação pela sua morte, isso significará que ninguém lhe tinha qualquer estima. E então…
E então o quê?
Mas Hadley concluiu a frase por ele.
– Se ninguém tiver tido qualquer estima por Marie, será possível que ninguém vos tenha estima? Que ninguém nos tenha estima? Que somos apenas criaturas solitárias aplicando a nossa forma bizarra de contacto humano sem ninguém que se preocupe connosco?
Lazarus olhou o outro homem, ligeiramente atordoado.
A boca de Hadley curvou-se, criando novas rugas na sua face.
– Tive mais tempo que vós para pensar no assunto.
Lazarus acenou afirmativamente.
– Conheceis mais alguém que a visitasse?
– Além do verme a quem chamava irmão?
– Tommy?
– Sim, Tommy. – Hadley pressionou os lábios. Não era uma expressão atraente nele. – Tommy estava presente, pairando por ali sempre que visitei Marie. Certa vez, veio com uma mulher mais velha. Vestia uma casaca vermelha militar. Pareceu-me uma pessoa de má índole, mas, como disse, a vida pessoal de Marie não me importava grandemente.
– Sim? – Lazarus franziu a testa. O irmão dissera que visitava a irmã raramente. Aparentemente, mentira-lhe. E qual seria o envolvimento de Mãe Coração-Tranquilo naquilo? Ela e a sua taberna pareciam surgir no seu caminho após cada es-quina.
– Isto ser-lhe-á útil? – perguntou Hadley, cortês. – Nunca conheci outro dos seus clientes.
– Sim. Será. – Lazarus ergueu-se. – Agradeço-vos, milorde, pelo vosso tempo e franqueza.
Hadley encolheu os ombros.
– Não foi incómodo algum. Aceitaríeis um copo de vinho, senhor?
Lazarus curvou-se.
– Obrigado, mas tenho outro compromisso esta manhã. Talvez noutra ocasião?
Era apenas um gesto de cortesia e os dois homens sabiam-no. Uma emoção fugaz surgiu na expressão de Hadley, mas desapareceu antes que Lazarus conseguisse decifrá-la.
– Com certeza. – Hadley levantou-se. – Bom dia, senhor.
Lazarus voltou a curvar-se, dirigindo-se à porta do escritório. Mas um pensamento súbito fê-lo parar. Voltou-se para olhar o homem mais velho.
– Poderei fazer mais uma pergunta, senhor?
Hadley assentiu com um gesto.
– Sois casado?
A expressão anterior voltou à face de Hadley, aprofundando cada ruga e alongando cada prega de pele.
– Não, senhor. Nunca casei.
Lazarus curvou-se novamente, consciente de ter ultrapassado os limites da civilidade. Dirigiu-se sozinho para a porta da casa elegante e cara. Quando sentiu o sol da manhã na face, pensou: a solidão teria marcado também as suas fei-ções?
SILENCE ERGUEU-SE DIANTE DO LAR na manhã seguinte, sorrindo. Não, não era exatamente assim. Olhou para os pés e tentou novamente, sentindo os músculos movendo-se na face. Que estranho. Algo que lhe fora tão natural como… como sorrir… dias antes parecia-lhe agora tão difícil que não sabia ao certo se o fazia da forma correta.
– Tendes dor de dentes, senhora?
Silence ergueu o olhar e viu a face bastante suja de um dos órfãos. Joseph Smith? Ou talvez Joseph Jones? Santo Deus! Porque tinham escolhido o seu irmão e irmã chamar a todos os rapazes Joseph Qualquer Coisa e a todas as raparigas Mary Outra Coisa Diferente? Seriam loucos?
O rapaz continuava a olhá-la fixamente, enfiando um dedo sujo na boca.
– Não faças isso – disse-lhe ela, erguendo a voz e sobressaltando-os a ambos. Nunca repreendera uma das crianças, erguendo a voz ou não.
A criança retirou imediatamente o dedo, olhando-a com receio.
Silence suspirou.
– Como te chamas?
– Joseph Tinbox.
Silence torceu o nariz.
– Porque te deram esse nome?
– Porque – começou o rapaz –, quando me trazeram para aqui, tinha uma caixa de folha atada ao pulso.
– Claro – murmurou Silence, abdicando por completo do sorriso. – Muito bem, Joseph Tinbox, vim ver Mistress Dews. Sabes onde está?
– Sim, senhora – respondeu.
Virou-se e abriu a porta do lar que, aparentemente, não estava trancada naquela tarde. Levou-a para dentro. Havia grande alarido vindo da cozinha e, quando Silence, entrou, viu Temperance com o cabelo caindo-lhe até às orelhas, tentando controlar caos puro. Um grupo de rapazes erguia-se num canto, alternando canto com vozes agudas e angelicais com empurrões uns aos outros sempre que Temperance ou Nell viravam as costas. Nell supervisionava a limpeza semanal enquanto três raparigas pequenas se ocupavam de uma grande panela na lareira contendo algo que fumegava.
Temperance virou-se quando Silence entrou e afastou uma madeixa de cabelo encaracolado.
– Silence! Santo Deus. A tua ajuda será preciosa hoje.
– Oh. – Silence olhou a cozinha à sua volta, parecendo atordoada. – Deveras?
– Sim, deveras – afirmou Temperance com firmeza. – Winter continua doente. Poderás levar-lhe este tabuleiro?
– Winter está doente? – Silence pegou no tabuleiro automaticamente.
– Sim. – Temperance franziu a testa, olhando os rapazes que cantavam. – Outra vez do princípio, por favor. E, Joseph Smith, para de empurrar Joseph Little. Sim – repetiu, olhando novamente Silence. – Esqueci-me de te avisar, não foi? Aconteceram tantas coisas num dia. Leva-lhe a comida, peço-te. E não permitas que se levante da cama em circunstância alguma.
A expressão de Temperance era bastante severa e Silence sentiu-se tentada a bater continência, conseguindo suprimir o gesto de forma muito sensata. Ao invés, saiu apressadamente da cozinha e dirigiu-se ao quarto de Winter nas águas-furtadas. Talvez Temperance visse o futuro porque, quando abriu a porta, constatou que Winter vestia as calças.
Ou tentava vesti-las, pelo menos.
O seu irmão mais novo estava pálido e transpirado e caiu contra a cama quando fechou a porta depois de entrar.
– Um homem não pode ter um pouco de privacidade? – perguntou. A má disposição que demonstrava não era habitual nele.
– Não se tentares fugir. – Silence pousou o tabuleiro sobre uma mesa pequena junto à cama, ficando equilibrado de forma precária sobre uma pilha de livros. – Desculpa.
– Contou-te, não foi? – perguntou Winter, taciturno.
– Que estás doente? Sim.
Silence torceu o nariz. Compreendia o seu irmão. Por vezes, Temperance podia ser muito autoritária, apesar de, naquele momento, concordar completamente com ela. Winter tinha muito mau aspeto. Despira a camisa de dormir para se vestir e conseguia contar-lhe as costelas no tronco nu. Silence viu-o curvar-se para erguer a camisa de dormir do chão e susteve a respiração.
Winter endireitou-se apressadamente, mas Silence vira já o corte longo nas costas.
– Santo Deus! Como fizeste isso?
Enfiou a camisa de dormir pela cabeça abaixo. Quando a cabeça reapareceu, ostentava um esgar de desconforto.
– Não é nada. Por favor, não digas a Temperance. Deixá-la-ia ainda mais preocupada.
Silence franziu a testa.
– Mas onde fizeste isso? Parece uma facada.
– Nada que se pareça. Caí. – Pareceu comprometido. – Na rua, no outro dia. Embati contra a roda de uma carruagem e o aro de ferro rasgou-me o casaco.
– Que estranho. Parece mesmo que alguém te espetou uma faca. Ou uma espada, suponho. – Silence tentou olhar por cima do ombro, mas Winter encostou-se à almofada com uma ligeira expressão dorida. – Limpaste o ferimento?
– Estou bem. A sério que sim. – Forçou um sorriso para motivar a sua concordância. – Admito que posso ter negligenciado o ferimento no início e que isso poderá ter provocado o meu desmaio, mas sara bem agora.
– Mas…
– A sério, Silence – disse. – Conta-me agora como estão as coisas contigo.
– Oh. – Passou-lhe cuidadosamente o tabuleiro para o colo, assegurando que ficava suficientemente apoiado para não entornar nada. – Bom… William zarpou novamente.
Winter ergueu o olhar da colher cheia de sopa.
– Tão cedo?
Afastou o olhar, ocupando-se a ajeitar a roupa de cama.
– O comandante de outro navio adoeceu de repente. William garantiu-me que seria bem pago por regressar ao mar tão pouco tempo após a viagem anterior.
– Ah – disse Winter, não querendo tomar partidos.
– E fui jantar a casa de Concord na outra noite e mostrou-se bastante frio. Asa deveria estar lá também, mas não veio. Nem sequer enviou um pedido de desculpa. – Silence ergueu uma almofada, apertando-a para que recuperasse a forma. – De certeza que não lhe darás importância, mas Concord sugeriu que fui seduzida por Mister O’Connor, mesmo depois de lhe dizer que não foi esse o caso. Parece-me que não acredita em mim, Winter. Parece-me que Temperance também não.
Terá golpeado a almofada com demasiada força porque uma pequena nuvem de penas saiu por um canto.
– Compreendo – disse Winter lentamente, olhando a almofada danificada.
– Lamento. – Silence colocou novamente a almofada sobre a cama e aplicou-lhe uma palmada delicada. – Mas acreditas em mim, não acreditas? Sabes que Mister O’Connor nunca me tocou e que só me disse que passasse a noite com ele. E foi o que fiz. Passei a noite no seu quarto, mas não aconteceu nada. Nada de nada! Acreditas em mim, Winter?
Silence ergueu-se, cruzando os braços sobre os seios num gesto protetor enquanto o fitava com ansiedade.
– Acredito – respondeu Winter devagar – que és a minha irmã e que, independentemente do que tiver acontecido, continuarei a amar-te e a apoiar-te.
– Oh – sussurrou ela. E lágrimas estúpidas começaram a acumular-se nos seus olhos. Pois era a coisa mais doce que Winter poderia dizer. E também a mais horrível. Era evidente que também não acreditava nela.
– Silence…
– Muito bem – disse ela sem o olhar. Não podia fazê-lo sob pena de irromper em lágrimas ou de lhe bater. Nenhuma das possibilidades teria resultado positivo. – Vou descer para ver se Temperance precisará da minha ajuda na cozinha.
– Silence – chamou Winter quando a irmã alcançou a porta.
Não se virou, mantendo o olhar fixo na mão sobre a maçaneta da porta enquanto dizia com voz rouca:
– O que foi?
– Já pensaste em ajudar-nos aqui de forma mais permanente?
A pergunta foi tão inesperada que Silence se virou para olhar Winter.
Fixava nela um olhar grave.
– A tua ajuda ser-nos-ia útil, sabes?
– Porquê? – sussurrou ela.
Winter pestanejou e olhou o seu prato de sopa.
– Creio que poderia ser igualmente benéfico para ti e para nós.
Pensava que estava arruinada. A compreensão foi repentina e tão inteiramente indesejada que Silence ficou sem palavras.
Winter ergueu os olhos para ela. Estavam repletos de arrependimento e mágoa.
– Pensa nisso, pelo menos. Por favor.
Acenou com a cabeça de forma trémula e partiu rapidamente sem responder. Não conseguiria fazê-lo.
Ninguém acreditava que tinha saído intocada do quarto de Mickey O’Connor. Nem os seus vizinhos, que trocavam sussurros quando passava por eles, nem os lojistas, que voltavam as costas e fingiam estar ocupados quando entrava nas suas lojas, nem William, que permanecera mudo enquanto Silence o via fazer as malas e partir. E nem mesmo Asa, Concord, Verity ou até Temperance ou Winter. Até a sua família acreditava que tinha mentido para encobrir algum pecado terrível.
No mundo inteiro, não havia quem acreditasse nela.