Capítulo 18

 

 

 

 

 

O Rei Coração Fechado pareceu confuso.

«Mas, se abrir a gaiola, o pássaro fugirá.»

«Se quiserdes aprender o que é o amor, devereis abrir a gaiola»,

disse Meg.

O rei abriu a gaiola do pequeno pássaro azul.

Imediatamente, o pássaro levantou voo e voou pela janela aberta.

O rei olhou Meg com uma sobrancelha erguida.

«Parece-me que a única coisa que aprendi

foi a libertar um pássaro.»

«Sim?», perguntou Meg.

«O que sentis?»

O rei franziu a testa.

«Perda. Vazio.»

excerto de REI CORAÇÃO FECHADO

 

 

 

– Então acreditais que conseguiremos? – Mrs. Dews inclinou--se para diante com o entusiasmo iluminando-lhe a face. Havia avidez nos seus extraordinários olhos castanhos.

St. John acenou afirmativamente, espantado pela sua vitalidade. Como podia não se espantar? Era um contraste tão extremo com o corpo imóvel de Clara no piso de cima.

Afastou o pensamento terrível e concentrou-se na resposta à sua pergunta.

– Sim, claro. Pedi já à minha secretária que enviasse os convites para visitar o lar de órfãos.

Mrs. Dews mordeu o lábio.

– Quantos haveis enviado?

– Convidei pouco mais de cem pessoas.

– Oh! – Ficou muito imóvel, arregalando os olhos, enquanto a mão se movia para segurar o pulso de uma criada, uma mulher chamada Nell.

St. John ficou abalado pela presença da criada na segunda visita de Mrs. Dews à sua casa. Na primeira, chegara sozinha e quase vibrava com a excitação da sua ideia: abrir o Lar para Crianças Desventuradas e Abandonadas a visitas, esperando despertar o interesse de um patrono potencial. Era um esquema ousado, mas era também astuto. Visitar os desgraçados, em prisões, hospitais ou em manicómios, era uma atividade bem-vista em Londres por aqueles tempos. A maioria vinha apenas observar aquelas pobres almas com risinhos culpados, mas muitos ofereciam também quantias em dinheiro às obras de caridade que visitavam.

– É muita gente – disse Mrs. Dews, soltando a criada.

– Sim, mas pertencem todos às melhores famílias. As famílias para quem a caridade está na moda. – St. John arqueou uma sobrancelha considerável.

– Sim, claro. – Mrs. Dews alisou as saias negras com uma mão. Tremia ligeiramente e St. John sentiu um ímpeto desvairado de se aproximar para a consolar.

– Parece-vos que conseguireis estar pronta a tempo? – perguntou, unindo as mãos atrás das costas.

– Creio que sim – disse ela, parecendo um pouco aliviada pela mudança de assunto. – Já limpámos as paredes e o chão. Winter tem ouvido as crianças recitar vários poemas de cor e Nell esteve ocupada a remendar as roupas das crianças.

– Ótimo. Pedirei à minha cozinheira que prepare uma quantidade generosa de ponche e bolos de gengibre no dia anterior para serem entregues bem cedo na manhã da visita.

– Mas já haveis feito tanto – exclamou Mrs. Dews. – Não desejo que tenhais despesas por mim.

– Fá-lo-ei pelas crianças – recordou-lhe St. John em tom delicado. – Sentir-me-ia uma pessoa horrível se não contribuísse para o nosso pequeno plano. Não é nada.

– Nesse caso… – Esboçou-lhe um sorriso tímido coroado por olhos muito vivos.

Não conseguia perceber como Caire podia deixar aquela mulher escapar-lhe entre os dedos. Voltou-se rapidamente, fingindo olhar o relógio de porcelana sobre a lareira.

– É tudo o que pretendeis?

– Oh! Sim, claro – disse ela atrás dele, parecendo um pouco magoada. – Não pretendo ocupar-vos mais tempo, Mister St. John. Fostes já muito útil a mim e ao nosso lar.

St. John firmou o maxilar para se impedir de gaguejar um pedido de desculpas. Em vez disso, curvou-se numa vénia um pouco rígida.

– Bom dia, Mistress Dews.

Partiu a seguir, após uma vénia graciosa, e foi só a criada a dirigir-lhe um olhar curioso sobre o ombro. Esperou até a porta da sua biblioteca se fechar antes de se dirigir à janela com vista para a rua. Viu-a atravessar a rua com passos ligeiros e graciosos, com uma mão sobre a touca para se precaver contra o dia ventoso. A criada caminhava a seu lado em vez de seguir atrás dela e pareciam conversar. A sua figura vestida de negro tornou-se diminuta e, no momento seguinte, tinha desaparecido, engolida pela multidão londrina.

St. John deixou a cortina escapar-lhe dos dedos.

Olhou a biblioteca à sua volta, mas, apesar dos livros, jornais e tudo o resto, parecia despojada e solitária depois da visita dela. Saiu e subiu a escadaria até ao segundo piso. Não era frequente visitar Clara àquela hora. Habitualmente, dormia depois das noites invariavelmente agitadas. Mas, naquele dia, percebeu que não conseguiria manter-se afastado. Sabia que chegaria um dia, talvez em breve, em que deixaria de poder subir as escadas para a visitar.

Bateu à sua porta e abriu uma nesga logo a seguir. A velha criada que era a companhia constante de Clara olhou-o da cadeira junto à cama antes de se erguer para avivar a fogueira.

St. John aproximou-se da cama e olhou para baixo. O cabelo de Clara teria acabado de ser lavado. Estava espalhado sobre a almofada branca, brilhando. As madeixas eram de um castanho intenso com laivos ruivos que passavam a misturar-se com fios grisalhos. Deu consigo a acariciar-lhe o cabelo. Clara dissera-lhe certa vez que o cabelo era o que tinha de mais belo e St. John espantara-se por descobrir que as senhoras se referiam a si mesmas naqueles termos. Espantara-se e sentira-se também afetuosamente divertido.

– Godric – sussurrou ela.

Olhou para baixo e viu que os seus olhos castanhos se fixavam nele. Outrora, tinham sido tão belos como os de Mrs. Dews. Naquele momento, apenas a dor era visível.

Curvou-se e aplicou-lhe um beijo cuidadoso na testa larga.

– Clara.

Sorriu-lhe, erguendo ligeiramente os cantos dos seus lábios pálidos.

– A que devo esta visita?

St. John sussurrou-lhe ao ouvido:

– A uma ânsia profunda e irresistível de ver a mais bela mulher do mundo.

Riu-se. Era o efeito que pretendera, mas o riso transformou--se em tosse prolongada que lhe fez estremecer o corpo inteiro. A enfermeira aproximou-se imediatamente.

St. John recuou, olhando com paciência dorida enquanto o espasmo de Clara acalmava gradualmente. Quando passou, o suor ensopara-lhe o cabelo e a sua face estava mais pálida que a almofada. Mas olhou-o e sorriu.

St. John engoliu em seco, sentindo um aperto na garganta.

– Perdoa-me por te ter incomodado. Queria apenas que soubesses que te amo.

Clara estendeu-lhe uma mão trémula.

Aceitou-a e viu os seus lábios formularem em silêncio as palavras:

– Eu sei.

St. John forçou-se a sorrir antes de se virar e sair do quarto da sua mulher.

 

 

A TARDE APROXIMAVA-SE DO FIM quase uma semana depois, quando Temperance bateu à porta de Polly. Depois da recuperação de Winter, tinha feito recados com Mary Whitsun para preparar a visita ao lar, mas era importante que visitasse Polly naquele dia.

Polly abriu a porta com Mary Hope dormindo nos seus braços e com um xaile cobrindo-lhe um ombro.

– Mistress Dews, Mary Whitsun, entrai. Fico mesmo contente por vos ver.

– Mary Hope está melhor? – Temperance sussurrou a pergunta enquanto entrava nos aposentos modestos. Viu os filhos de Polly dormindo juntos na cama. Mary Whitsun avançou em bicos de pés para recolocar no sítio o cobertor que uma das crianças tinha pontapeado.

– Sim, está. – A ama de leite sorriu enquanto olhava o bebé. – A febre foi-se e tem mamado bem. Acredito que sobreviverá, senhora.

– Graças a Deus. – Temperance fechou os olhos, aliviada. Os bebés morriam com tanta frequência. Era uma boa surpresa encontrar um que conseguisse vencer a febre em tão tenra idade.

Mas Mary Hope não estava ainda livre de apuros.

– E os teus filhos?

– Nunca contraíram a febre, graças a Deus – respondeu Polly. – Saudáveis como cachorrinhos.

– Obrigada, Polly. – Temperance decidiu recompensar a ama de leite.

– Podeis pegar-lhe? – perguntou Polly. – Acaba de adormecer e ainda não tive tempo de me arranjar.

Estendeu a criança e Temperance recordou as palavras de Lazarus. Dissera-lhe que recusara tocar o bebé. Hesitou apenas um segundo antes de aceitar o corpo pequeno e quente nos seus braços. Mary Whitsun espreitou-lhe sobre o braço e ambas olharam com agrado os dedos minúsculos e delicados que se encostavam a uma bochecha rosada. Temperance sentiu lágrimas nos olhos.

– Sentis-vos bem, senhora? – perguntou Polly, preocupada, enquanto prendia o xaile no corpete.

– Sim – murmurou Temperance enquanto limpava a cara contra o ombro. – Esteve tão perto.

– É verdade – afirmou a ama, prontamente, voltando a pegar no bebé.

– É inútil amá-los, não é? – sussurrou Temperance. Olhou Mary Whitsun, que continuava encantada pela face minúscula do bebé.

– Sim. Receio que o melhor seja não tentar – respondeu Polly. – Basta um olhar às suas carinhas e ficamos perdidas, não é?

– Sim. É isso mesmo.

Temperance deu as boas-noites a Polly e fechou a porta com cuidado depois de sair. Quando ergueu o olhar, viu que Mary Whitsun a olhava.

– O bebé viverá, senhora?

Temperance sorriu.

– Creio que sim, Mary.

– Fico muito feliz – afirmou Mary, sisuda.

Desceram as escadas que chiavam e saíram pela porta do edifício de Polly. Temperance ergueu um olhar desconfortável para o céu. O Sol começava a pôr-se.

– Temos de voltar para casa antes que escureça.

Mary apressou o passo a seu lado.

– É verdade que o Fantasma de Saint Giles sai quando escurece para caçar raparigas?

– Onde ouviste isso?

Mary baixou a cabeça.

– Ao filho do talhante. É verdade?

Temperance franziu a testa.

– É verdade que algumas raparigas foram magoadas, sim. Mas não precisas de ter medo desde que fiques na escola. Sobretudo à noite.

– Ficareis em casa?

Temperance franziu novamente a testa, olhando Mary. A rapariga fixava o olhar no chão enquanto avançavam.

– Preciso de fazer recados, naturalmente…

– Mas e se outro bebé precisar de ajuda durante a noite? – Mary mordia o lábio.

– É minha obrigação ajudar bebés órfãos em Saint Giles – afirmou delicadamente Temperance. – Onde estaria Mary Hope se não tivesse ido buscá-la?

Mary não disse nada.

– Mas quase não preciso de sair depois do anoitecer – afirmou Temperance. – Não precisas de te preocupar, juro.

Mary acenou afirmativamente, mas continuou a parecer preocupada.

Temperance suspirou, desejando conseguir tranquilizar Mary, mas, enquanto o assassino continuasse à solta, seria difícil fazê-lo.

Quando regressaram ao lar, havia mais trabalho para fazer e Temperance enviou Mary Whitsun para supervisionar as raparigas mais pequenas na limpeza das paredes do corredor.

Quando Temperance subiu as escadas para o seu quarto naquela noite era bastante tarde. Os preparativos da abertura do lar para a visita foram cansativos. De cada vez que acreditava que estava quase tudo pronto, surgia outra tarefa e precisava de encontrar forças para se ocupar dela.

Dobrou uma esquina na escadaria, examinando o corrimão. Precisava de ser polido, mas melhorar-lhe o aspeto não contribuiria para convencer algum patrono potencial de que o lar não estava assim tão necessitado de financiamento? Aquele era o dilema motivado por todas as decisões relacionadas com a limpeza e o aprumo do lar. Questionava-se sobre todas as decisões, mesmo quando Winter lhe dizia com voz baixa que fazia um bom trabalho e que não devia preocupar-se. E, por baixo de todas as decisões, havia uma tristeza profunda. Colocando a questão em termos simples, sentia saudades de Caire. Deu consigo a pensar na opinião dele acerca das suas decisões, querendo discutir com ele os seus problemas e pequenas alegrias. Queria estar com ele.

Mas tinha arruinado essa possibilidade, não? Deixou cair os ombros ao pensar naquilo enquanto passava a última esquina na escadaria envelhecida, chegando finalmente ao piso mais alto do lar. Caire pensara que o desejava apenas para manter um relacionamento sexual, satisfazendo os mais baixos instintos. E, sendo verdade que ansiava por voltar a tê-lo nos seus braços, as suas emoções eram mais complexas que isso.

Hesitou no topo das escadas, segurando uma vela de chama trémula para iluminar os seus passos quando aceitou finalmente algo que sempre soubera. Sentia por Caire muito mais do que luxúria.

Um soluçar prendeu-se-lhe na garganta antes que conseguisse suprimi-lo. Sentira-se tão sozinha antes de o ter na sua vida. A sua ausência naquele momento reforçava apenas a solidão que sentia. Tinha os seus irmãos e irmãs, as crianças e Nell, mas, mesmo com a sua família, sentia-se isolada. Só com Caire podia sentir-se livre com todas as suas falhas. Caire percebia as suas necessidades sexuais e, por mais espantoso que isso fosse, gostava dela mesmo assim. Desejava-a mesmo assim. Era tão libertador estar com ele! Saber que podia ser ela mesma. Que podia ser ela mesma, totalmente, sem que isso o repelisse.

Olhou o corredor esquálido em que se encontrava. Sozinha. Estava tão sozinha.

 

 

FOI SÓ MEIA HORA depois do início da visita que Temperance decidiu que corria bastante bem, apesar de tudo.

Tinham tido um início bastante atribulado com os primeiros visitantes. Uma senhora com uma pluma enorme no cabelo acompanhada por um cavalheiro anafado com peruca aberta tingida de um negro improvável e contrastando com a face envelhecida. Chegaram um pouco cedo, imediatamente antes das cinco horas. Joseph Tinbox fora o único a ouvir bater à porta e, quando foi abrir, começou por recusar deixá-los entrar dizendo que era demasiado cedo e que deviam ir-se e voltar à hora certa.

Felizmente, Nell seguira Joseph Tinbox nesse momento, encontrando-o quando estava prestes a expulsar os visitantes. Um pedido de desculpas insistente e duas taças do ponche de Mr. St. John contribuíram muito para apaziguar a indignação do casal. Depois disso, chegou uma sucessão de pessoas de fino trato. Em tão grande número que, em dado momento, as suas carruagens faustosas tinham entupido o extremo de Maiden Lane, motivando a curiosidade dos moradores. Alguns tinham mesmo trazido cadeiras, sentando-se de cada lado da rua para observar o cortejo de nobres.

Sim, tudo corria bastante bem e, se o ponche não se esgotasse e se conseguisse impedir Winter de iniciar uma discussão política com um cavalheiro jovem de casaca amarela atroz que insistia em fazer comentários idiota, talvez conseguissem sobreviver ao dia.

Temperance sorriu e cumprimentou com um aperto de mão uma senhora vivaz com vestido cor de ameixa enquanto a ouvia exclamar qualquer coisa acerca dos «pobres coitados». Partia e, apesar da infeliz escolha de palavras, parecia genuinamente comovida pelo orfanato.

– Quem é? – murmurou Nell atrás de Temperance.

– Não sei, mas demonstrou bastante entusiasmo – sussurrou Temperance.

– Não, não falo dessa. Quem é aquela?

Temperance olhou sobre o ombro da última visitante, vendo Lady Caire avançar sobre o empedrado, contorcendo a boca num esgar de repulsa. Vestia um vestido de brocado azul e dourado completamente desadequado e segurava a mão de um cavalheiro de peruca ruiva e casaca roxa. Os espetadores de Maiden Lane mostraram-se bastante impressionados por ela, com muitos acotovelando-se uns aos outros para a verem passar. Felizmente, Mr. St. John viu que se aproximava e intercetou-a, parecendo apontar-lhe a arquitetura bastante deprimente do lar. Mas não conseguiria detê-la para sempre.

– Não! – gemeu Temperance.

– Que foi? – silvou Nell, surpresa.

– É Lady Caire – murmurou Temperance. – É bastante horrível.

Ouviu uma gargalhada abafada vinda de trás.

Temperance voltou-se e percebeu, horrorizada, que não estavam sozinhas. Lady Hero, envergando um vistoso vestido azul-prateado, conseguira entrar no pequeno corredor e, pior ainda, era evidente que tinha ouvido o que dissera.

– Oh. Sinto muito – murmurou Temperance, começando uma vénia e mudando de ideias a meio, erguendo-se demasiado depressa. – Não queria… ou seja… hmm….

– É verdade que é bastante horrível – disse Lady Hero, esboçando um sorriso vago. – Mas, para seu crédito, ouvi-a discutir a situação das crianças pobres noutras ocasiões.

– Deveras? – perguntou Temperance com voz contida. Olhou novamente a rua. Lady Caire parara para discutir alguma coisa com o seu acompanhante. Temperance voltou-se novamente para Lady Hero. – Então é possível que esteja interessada no nosso lar?

– Parece-me que sim. Tal como eu – disse Lady Hero quase timidamente. – Sabeis que fiquei órfã aos oito anos?

– Sinto muito. Não sabia.

Lady Hero retirou importância ao seu pedido de desculpas.

– Foi há muito tempo. Mas muitas são as senhoras que se interessam, de uma maneira ou de outra, pelo bem-estar das crianças pobres.

– Oh – foi a resposta nada eloquente de Temperance. Não lhe ocorrera procurar uma mulher como patrono. De alguma forma, imaginara que um patrono seria alguém como Sir Stanley Gilpin. Um homem mais velho e rico. Quando, na verdade, deveria ter-se concentrado apenas na exigência de riqueza. Sorriu a Lady Hero. – Que maravilha!

Lady Hero sorriu.

– Talvez possais mostrar-me o lar.

– Com certeza – disse Temperance. Mas Winter desceu as escadas nesse momento.

– Irmã, viste Mary Whitsun? – Havia uma ruga vincada entre as sobrancelhas de Winter.

– Não desde esta manhã. – Voltou-se para Nell.

A criada encolheu os ombros.

– Devo procurá-la?

– Se não te importares, Nell – pediu Winter.

Nell subiu apressadamente a escadaria.

– Sereis Mister Makepeace – disse Lady Hero.

– Apresento-te Lady Hero Batten, Winter – disse Temperance.

– É uma honra conhecer-vos, minha senhora. – Winter curvou-se.

– Dizia a Mistress Dews – começou a senhora, mas Nell voltou com passos apressados. Puxava Joseph Tinbox por um braço.

– Diz-lhe o que me disseste a mim – ordenou Nell a Joseph. – Diz-lhe para onde foi Mary Whitsun!

– Foi-se embora – disse Joseph, sem rodeios. Os seus olhos castanhos estavam arregalados e a sua face parecia tão pálida que as sardas se destacavam. – Disse que estava tudo bem. Que estavam todos demasiado ocupados.

Temperance sentiu um frio gélido no peito.

– Demasiado ocupados para quê?

– Veio uma mulher e disse que havia um bebé que precisava que o fossem buscar – explicou Joseph. – Mary foi com ela.

Temperance olhou a porta. O céu começara já a escurecer e a noite alastrava por St. Giles, movendo-se com a agilidade de um gato vadio.

Santo Deus. Mary Whitsun andava por St. Giles à noite com um assassino tresloucado à solta.

 

 

LAZARUS DEAMBULOU pelas ruas de St. Giles enquanto a tarde chegava ao fim. O Sol começava a pôr-se e os raios ténues recuavam lentamente dos edifícios altos, dos beirados e de uma miríade de tabuletas ondulando ao vento. Lazarus evitou pisar o cadáver de um gato na sarjeta e seguiu caminho.

Estava perto, tão perto, de encontrar o assassino de Marie. Viera a St. Giles uma e outra vez e sentia que aquela viagem poderia ser a última para o melhor e para o pior. O perigo cercava-o e afiava as garras, esperando um movimento em falso.

Com perigo ou sem ele, algo dentro dele sentia que era justo equilibrar a balança. Precisava de ver o assassino de Marie ser punido antes de conseguir voltar a Temperance. E precisava de voltar a vê-la. Com urgência. Não tinha dúvidas de que deixaria de conseguir respirar se não pudesse tocar-lhe, falar com ela. Se não voltasse a ver aqueles espantosos olhos salpicados de ouro e a forma como espelhavam o que Temperance sentia.

Mas, antes disso, precisava de encontrar o assassino de Marie.

Para isso, tentara por três vezes falar com Tommy Pett na semana anterior. O rapaz teria de saber algo sobre a ligação entre a sua irmã e Mãe Coração-Tranquilo. Mas, de cada vez que visitara o estabelecimento de Mrs. Whiteside, Tommy não estivera presente. Talvez uma visita mais tardia conseguisse encon-trá-lo.

Quinze minutos depois, virou para a Running Man Lane, seguindo as suas curvas consecutivas até chegar ao pátio onde se situava o bordel de Mrs. Whiteside. Enquanto se aproximava, ouviu choro e vozes erguidas. Os últimos passos foram em corrida.

O que viu quando chegou ao pátio foi invulgar: as mulheres (e os rapazes) da noite erguiam-se ali, muitas empunhando velas ou lanternas. Havia quem discutisse e quem chorasse enquanto outras se mostravam atordoadas e silenciosas. Nesse momento, Pansy saiu do bordel, com Jacky, o seu enorme guarda-costas, atrás dela. Lazarus começou a abrir caminho entre a multidão enquanto Jacky erguia as mãos enormes sobre a cabeça, batendo com uma na outra, silenciando o pátio de forma eficiente.

– A casa foi revistada. Não resta ninguém no interior. O perigo passou – anunciou Pansy com voz grave. – Voltem todas para dentro.

Jacky voltou a bater com as mãos e, um a um, os trabalhadores do bordel começaram a entrar.

Uma mulher volumosa vestida com seda roxa apoiou as mãos nas ancas.

– E como podemos ter a certeza de que é seguro voltar?

Pansy fixou nela um olhar severo.

– Porque eu digo que é.

A mulher corou e entrou, arrastando os pés.

Lazarus avançou e Pansy viu-o. Ergueu o queixo.

– Não sois bem-vindo aqui.

Não deixou que as palavras o demovessem. Fosse ou não bem-vindo, sentiu que haveria algo importante dentro do bordel.

– Que aconteceu? – perguntou.

– Nada que mereça a vossa preocupação – murmurou ela, voltando-se e entrando.

Sem pensar, Lazarus segurou-a pelo ombro antes que desaparecesse no interior e sentiu Jacky a seu lado antes de o ver. O guarda-costas era um homem corpulento, mas era lento como qualquer homem do seu tamanho. Lazarus esquivou-se com facilidade ao golpe e esmurrou-o na barriga. Jacky deixou-se cair de joelhos no chão.

Pansy reagiu com um ruído de pânico e rodeou os ombros largos do guarda-costas com os seus braços minúsculos.

– Parai!

Lazarus recuou, mas manteve os punhos erguidos. Não subestimaria Jacky.

Pansy suspirou. A sua face deformada parecia envelhecida.

– Seja como for, é como se já estivesse morta. Entrai.

Jacky ergueu-se com dificuldade, fixando em Lazarus um olhar de desagrado, mas afastou-se para o deixar passar.

Lazarus entrou no bordel com os pelos da nuca arrepiando-se. O guarda-costas matá-lo-ia de bom grado. Só a vontade de Pansy o impedia de atacar.

Não fez qualquer outro comentário, levando-o pelas escadas acima. Algumas pegas permaneciam nos corredores, trocando mexericos, mas, quando viram a madame, desapareceram nos seus quartos. Pansy parou diante de uma porta a meio do corredor superior, fixando em Lazarus um olhar imperscrutável antes de a abrir.

O cheiro foi a primeira coisa que sentiu. O fedor a entranhas e sangue. O corpo na cama tinha sido esventrado. Tal como Marie. Aproximou-se, vendo as manchas escuras no chão e olhando a face lívida. Era Tommy. A expressão do rapaz era estranhamente serena, pairando sobre a violência sofrida pelo seu corpo.

Lazarus olhou Pansy. Fixava o horror na cama, mas, quando percebeu que a olhava, apontou-o com o queixo.

– Descei comigo. Preciso de uma chávena de chá.

Fechou a porta depois de saírem e desceram as escadas em silêncio, dirigindo-se para a sua pequena saleta. Pansy sentou-se na sua cadeira especial, indicando a Lazarus que se sentasse à sua frente.

– Chá, Jacky. – Vendo que o gigante não se movia, acenou com a cabeça, parecendo cansada. – Está tudo bem. Lorde Caire não me magoará.

O guarda-costas grunhiu e saiu.

– Morreu como Marie e as outras prostitutas – disse Lazarus com voz baixa. – Conheceria o assassino.

Hmm. – Pansy pareceu refletir, apoiando o queixo num punho.

– Mistress Pansy.

Suspirou profundamente, olhando-o.

– Sim, sim. Claro que conhecia o assassino.

Lazarus semicerrou os olhos.

– Também conhece o assassino.

Enfrentou o seu olhar sem vacilar.

– Sim. Também o conheço.

– Quem é, Pansy?

Ergueu a mão e a porta abriu-se. Jacky entrou, trazendo um delicado tabuleiro de chá nas mãos enormes.

Pansy sorriu-lhe enquanto pousava o tabuleiro.

– Obrigada, Jacky. Podes guardar a porta?

O homem corpulento olhou Lazarus com desconfiança e saiu.

Pansy esperou até a porta ser fechada. Depois, olhou Lazarus.

– É a proprietária desta casa. Controla todas as prostitutas no seu pequeno canto de Saint Giles. Cada uma precisa de lhe pagar uma parcela dos seus ganhos, mesmo que o pagamento seja apenas de alguns pennies. Marie recusou. E Tommy… aquele tolo…

Abanou a cabeça, enojada, e encheu uma chávena de chá.

Lazarus forçou-se a permanecer pacientemente sentado.

Pegou na chávena cheia, mas limitou-se a olhar o chá.

– Penso que tentou chantageá-la. Penso que terá sido isso a motivá-la a agir. Veio visitar Tommy esta noite e partiu apressada. Tommy saberia quem matou a irmã e, depois de começardes a fazer perguntas, calculou que lhe pagaria para manter o seu segredo. Era bonito, mas não era muito esperto.

Lazarus fechou os olhos. Estava tão perto.

– Quem é, Pansy?

– Mãe Coração-Tranquilo.

Sentiu a pulsação acelerar. «Finalmente.»

– A alcoviteira que gere a taberna de gim?

Os lábios de Pansy contorceram-se.

– É muito mais que isso. É a mulher mais poderosa nesta parte de Saint Giles. E é também a mais perigosa. Vistes Tommy. Fê-lo numa casa cheia de gente. A sua raiva está descontrolada. Deixou de se querer proteger.

– Mas porquê matar Marie e as outras prostitutas de forma tão dramática?

Pansy encolheu os ombros.

– Para assustar a concorrência, os seus aliados e as suas pegas… Para assustar todos os que a rodeiam.

Lazarus franziu a testa.

– Corre perigo.

– Creio que me matará antes do fim da semana – disse Pansy com frieza, bebendo finalmente o chá. – A mim, a quem considerar que a traiu e a quem se atravessar no seu caminho. Devereis ter também cuidado. Já matou Tommy para o impedir de falar convosco… e com Mistress Dews.

Lazarus arqueou as sobrancelhas, sentindo-se mais alarmado.

– Com Mistress Dews?

Pansy pousou cuidadosamente a chávena sobre o tabuleiro.

– Creio que Mãe Coração-Tranquilo vê Mistress Dews como uma espécie de rival pelo controlo de Saint Giles. Não lhe agrada que salve as crianças que preferiria vender… ou prostituir.

– Parece-lhe que irá atrás de Temperance Dews?

– Já o fez.

– O quê? – Lazarus sentiu o alarme deixar-lhe os músculos tensos.

Pansy olhou-o com um fatalismo terrível e trágico nos olhos.

– Uma das raparigas da casa trouxe uma rapariguinha na noite passada… a que agrada a Mistress Dews.

– Mary Whitsun.

– Sim. Mãe Coração-Tranquilo levou-a consigo quando partiu.

Lazarus ergueu-se, correndo para a porta enquanto as últimas palavras de Pansy ecoavam à sua volta.

– E acredito que Mãe Coração-Tranquilo pretenderá atacar Mistress Dews através da rapariga.