image
image
image

Capítulo 12

image

Doces roubados são os melhores. 

—Colley Cibber

O relógio bateu, mas Calum não tinha percebido que era tão tarde. Com o último gongo, ele tirou os óculos e beliscou a ponta do nariz. Ele percebeu, com a mesma consciência súbita que sentia ao acordar de um sono profundo, que tinha se perdido em seu trabalho novamente. Ele se recostou na cadeira e se espreguiçou com um gemido baixo.

Ele já tinha feito isso algumas vezes, perder-se no trabalhocomo agora, quando ele sabia que mais um navio vindo da Escóciadeveria atracar em algum momento nas próximas duas semanas. A experiência lhe ensinara que o navio poderia chegar já no dia seguinte.

Ele respirou profundamente e esfregou os olhos, depois passou os dedos pelo cabelo escuro e descansou a cabeça entre as mãos por um momento. Ele precisava estar pronto. Tudo naquele navio era sua responsabilidade. Ele colocou seus óculos.

Ele olhou em volta e percebeu que estava escuro lá fora. O relógio acima da lareira mostrava que era um pouco depois das duas da manhã. Ele estava trabalhando sete horas sem parar. Quando ele ficava imerso em seu trabalho, como esta noite, Calum acabava se esquecendo da hora.

Mas o tempo era uma das poucas coisas que ele não tentava controlar. Para um homem que vivia uma vida ordenadamente, que vivia uma rotina e necessitava de coerência como ele, o tempo era um amigo. Isso dava a ele uma estrutura na qual trabalhar, o ajudava a descobrir novos níveis de eficiência e a selecionar métodos que controlassem a vastidão e as demandas de seu trabalho.

Calum tinha desenvolvido sistemas para tudo. Ele sempre vestia suas roupas em uma determinada ordem: calça, camisa, cinto, meias, sapatos, e ele os colocava em seu quarto para que pudesse se vestir enquanto caminhava até a pia. Economizava tempo.

Sua cama era enorme, mas ele dormia sempre do mesmo lado e colocava travesseiros no meio para não amassar o outro lado enquanto dormia. Dessa forma, ao acordar ele só teria que dobrar o lençol com os cantos perfeitos de um lado. Demorava apenas metade do tempo e lhe permitia alguns minutos extras necessários para tarefas como fazer a barba. Sua barba escura era tão grossa que ele precisava barbear o rosto duas vezes: a cada manhã e novamente à tarde.

Ele entendia que às vezes podia exagerar por causa do seu desejo de certa rotina militar, mas ele aceitava isso. Seus métodos foram o que lhe fizeram ser bem sucedido. O mesmo senso de ordem meticuloso que Eachann sempre o provocava, na verdade, permitia que Calum se concentrasse intensamente.

Ser organizado lhe deu a liberdade de se concentrar completamente em uma tarefa, o que, por sua vez, permitia que ele tirasse trinta horas de um dia de vinte e quatro — para ter mais tempo, e o tempo era a base pela qual ele planejava seu dia e sua noite, e como ele tinha aprendido a se organizar e a organizar a sua vida. Ele vinha fazendo isso com tanta eficiência e por tanto tempo que sua rotina era tão parte dele quanto o vínculo de sangue que ele compartilhava com Eachann.

Ele respirou fundo e se levantou, alongando-se. Seu irmão ainda não tinha voltado.

Calum foi até a janela e olhou para a baía. Tudo o que ele viu foi uma espessa névoa branca que fazia parecer que o mundo terminava do lado de fora de sua janela.

Era a parede impenetrável de névoa que engolia as ilhas todo mês de setembro. Eachann tinha dito que o nevoeiro chegaria ao início deste ano. E isso tinha acontecido.

Calum se virou, pensando que seu irmão devia ter decidido ficar em terra. Atravessou a sala e colocou alguns troncos na lareira de pedra, depois varreu algumas das cinzas que tinham se acumulado na lareira.

Ele voltou a se alongar, depois parou por um momento e poliu o suporte de latão para a lenha, e se virou para polir um candelabro e alguns suportes de livros ​​em forma de cabeças de leão. Ele colocou os suportes de livros de volta no lugar e passou o pano sobre as encadernações de couro, depois se certificou de que cada lombada em relevo estivesse alinhada com a próxima. Ele se virou e olhou novamente pela janela, pensativo e nervoso.

Eachann sabia que o tempo estava prestes a mudar. Ele até tinha desistido das tortas de mirtilo para poder levar as mulheres de Fergus de volta à praia, ir até a escola dos filhos e voltar à ilha antes que o nevoeiro chegasse. Ele tinha dito isso antes de sair.

Seu irmão tinha uma habilidade incomum para entender o tempo, algo que poucos daqueles que viviam nas ilhas podiam. A maioria deles, inclusive Calum, vivia com o clima da mesma forma que alguém vive com um animal selvagem transformado em animal de estimação. Eles vivem com a imprevisibilidade constante.

O tempo aqui era uma coisa indescritível. Inferno, os pescadores que ganhavam a vida do mar falavam dos humores do clima, e todos os habitantes da ilha sabiam que quando você vive em uma ilha, o tempo domina o que você pode e não pode fazer.

Calum supôs que havia alguma coisa inata com a qual seu irmão tinha nascido — um instinto, um dom especial que o fazia ver e saber o que os outros não podiam. Eachann tinha um toque mágico também com os animais. Calum tinha visto seu irmão olhar nos olhos ferozes de um cavalo assustado e acalmar a fera quando nada ou mais ninguém pôde.

Mas o dom de Eachann não se limitava a cavalos. Calum tinha visto uma águia pousar no enorme braço estendido de seu irmão, como se o orgulhoso pássaro esquivo fosse um pardal pousando em um galho de árvore. Ele o vira olhar um lobo nos olhos e fazê-lo fugir, e ele podia andar até um veado e fazer o animal comer flores silvestres da palma da sua enorme mão.

Um estrondo alto de repente ecoou pela casa, seguido pelo som de passos subindo as escadas de pedra. Calum se virou quando a porta se abriu.

Eachann estava ali parado, com as crianças adormecidas nos braços fortes. Uma cabeça loira e encaracolada, Kirsty, estava apoiada em um dos ombros e a cabeça ruiva espetada de Grahamno outro.

"Eu preciso da sua ajuda," Eachann disse.

Calum tentou pegar Kirsty, mas os braços dela estavam tão apertados no pescoço do pai que ele teve que tirá-los primeiro, então a pegou, franzindo a testa para Eachann.

"Eu vou lhe explicar mais tarde. Ajude-me a colocá-los em uma cama."

"Na sua parte da casa?"

"Claro que não." Eachann saiu pela porta e desceu o corredor oeste em direção à escada que levava à parte de Calum na casa.

Seus hábitos e o modo como os dois viviam eram tão parecidos quanto as Highlands e o deserto do Saara. Então, para manter a paz entre os irmãos, eles usaram há muito tempo a sabedoria de Salomão e dividiram a casa em duas partes iguais.

Bem no meio. A metade que era de Calum vivia arrumada e em ordem. A metade de Eachann, não: ele limpava os cômodos com menos frequência do que o seu estábulo.

"Nós vamos ter que colocá-los em um dos seus quartos."

Eles entraram em uma pequena e elegante sala da ala oeste, onde cada um colocou uma criança em uma cama limpa. Calum alisou as cobertas sobre a pequena Kirsty, que parecia ter crescido desde a última vez que a vira. Ele dobrou o lençol com um canto preciso e enfiou-o debaixo do colchão.

Ela abriu os olhos sonolentos por um minuto e olhou para ele. "Tio Calum." Então suas pálpebras se fecharam e um pequeno sorriso apareceu nos cantos de sua boca. "Estamos em casa," ela sussurrou, e um segundo depois ela estava dormindo.

Ele se perguntou como seu irmão lidaria com os filhos dessa vez. Eachann não conseguiu lidar com eles depois da morte da mãe deles e, embora Fergus e Calum tivessem tentado ajudar, Eachann teve que levar as crianças para o continente. Quando ele voltou, ele disse pouco para Calum, exceto que eles precisavam ficar no internato, e não correndo soltos pela ilha.

Antes que Calum pudesse ter outro pensamento, Eachann saiu pela porta e desceu a escada de dois em dois degraus.

No último degrau, ele parou e disse: "Siga-me."

“Por quê?” Calum gritou, mas seu irmão já estava no corredor e saindo pela porta da frente.

Calum o seguiu para a névoa tão espessa que ele teve que parar na base dos degraus da frente até que a voz de Eachann o atraiu para a estrada. "Onde diabos estamos indo?"

"Você vai ver em breve," ele falou através da névoa.

Calum seguiu o som da voz de Eachann, pensando enquanto caminhava que os filhos de seu irmão, especialmente Kirsty, eram muito parecidos com o pai deles. Eachann sempre tinha sido inquieto e um pouco selvagem.

Enquanto Calum respeitava as regras do jogo da vida e fazia as coisas de uma maneira segura e lógica, Eachann fazia suas próprias regras. Os irmãos raramente concordavam em como as coisas deviam ser feitas. Idade, tempo e respeito os ensinaram a aceitar e deixar que o outro agisse de sua própria maneira. Embora tenha tido momentos difíceis ao longo dos anos, e por nada mais além da sanidade de Calum,ele tivesse desejado que ele e Eachann fossem mais parecidos.

Alguns instantes depois, suas botas fizeram um som oco no ancoradouro. Em um fino e vacilante ponto de névoa, ele viu a sombra de Eachann quando ele pulou no convés do barco antes que a névoa espessa se fechasse novamente e sua forma desaparecesse. “Venha a bordo, Calum. Preciso da tua ajuda."

"Onde diabos você está? Eu não consigo ver nada."

"Aqui." O repentino brilho amarelo de uma lamparina queimava através da névoaa poucos metros de distância.

"Onde é aqui?" Calumsubiu a bordo.

"Na popa, ao lado do tanque de cavala."

Calum foi apalpando o caminho ao longo do convés, murmurando para si mesmo: “Cavala? Desde quando Eachann começou a pescar?“

Ele se juntou a seu irmão, que estava parado completamente em silêncio, mas sorrindo o mesmo sorriso perverso que ele tinha quando batia em alguém, ou quando vencia o arremesso de caber nos jogos anuais ou quando ele sujava de propósito a cama sempre limpa de Calum.

"Eu trouxe algo para você, irmão. Um presente."

Calum suspeitou que essa fosse outra das piadas doentias de Eachann. "Um presente?"

“Aqui está à resposta para todos os nossos problemas. Algo que eu decidi que nós realmente precisamos." Eachann se inclinou e levantou a tampa da trava.

Houve um ruído abafado que soou como uma gaivota presa no alto de um palheiro.

"Olhe você mesmo." Eachann entregou-lhe a lamparina.

Calum segurou a lamparinae olhou para dentro do tanque. Ele viu o que parecia ser algum tipo de monstro — com um enorme caroço. Um pacote molhado de seda e pele branca,e quatro braços que se agitavam e um pé dando chutes aqui e ali.

Levou um momento para ver que o caroço não era um monstro, mas duas mulheres amordaçadas e encharcadas, vestidas em caros vestidos de noite de seda e enroladas firmemente em uma antiga rede de cavala. Elas estavam se mexendo e batendo uma na outra, cada uma lutando para tentar se sentar.

Calum disse uma maldição e olhou para Eachann. "Mulheres? Você trouxe mais mulheres?"

“Sim.” Eachann encostou-se ao corrimão com os braços cruzados. "Não apenas mais mulheres, mas algo muito melhor." Ele acenou para as mulheres. "Essas são as nossas noivas."